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Fotografia: Vera Marmelo / Gulbenkian Música
Publicado a: 04/08/2024

Entre as cordas que nos prendem a atenção.

Espvall Rocha Lobo e Mendoza Hoff Revels no Jazz em Agosto’24: da preguiça ao espreguiçar

Fotografia: Vera Marmelo / Gulbenkian Música
Publicado a: 04/08/2024

Ao segundo dia do ciclo maior de música jazz entramos nos domínios das cordas electrificadas e do que isso acarreta nas doses de estamina sonora. As cordas metálicas implicam tensão e despertam atenção uma vez bordejadas e conduzidas com tangedoras mestrias. A dupla proposta, no primeiro dos dias de concertos que ladeiam o momento de jantar, tinha boa dose de guitarras, violoncelo, violino e… uma cítara. 

A muito fresca tríade que formam Helena Espvall em violoncelo, Maria da Rocha em violino e
Norberto Lobo em guitarra eléctrica, todos com elementos adjacentes que agrupamos no cada vez mais amplo chapéu de nome electrónica, apresentava-se numa quase primeira vez. A estreia aconteceu no fim de Fevereiro último na Sociedade Musical União Paredense, como que num oráculo a justificar a chamada ao palco do Auditório 2 da Gulbenkian para uma reestreia, de maior projecção que se adivinha. Estes músicos não se repetem, têm inscrito os seus nome em diversas e criativas formações de improvisação e música livre. Helena Espvall é hoje sinónimo do violoncelo improvisado, forma parte das Lantana, e tem inscritas colaboração sempre férteis junto a outros músicos, de Tó Trips a David Maranha, passando por Vítor Rua ou Sei Miguel. Volta a palcos do Jazz em Agosto depois da passagem em 2022 no quarteto Turquoise Dream de Tashi Dorji. Maria da Rocha é violinista e também em ocasiões violetista, abrangendo a música electrónica modular, conjugando a linguagem da exploração sonora pela improvisação livre num valioso processo autoral. Tem em Beetroot & Other Stories, pela Shhpuma em 2018, um destemido ensaio de 13 capítulos. Para muitos, Norberto Lobo é um dos guitarristas mais idiossincráticos de hoje, com desempenhos a solo que se tornaram manifestos de beleza sónica da guitarra electrificada, e construiu no recém editado duo com o Yaw Tembe um precioso espaço de refúgio com Abrigos pela Facada Records, em mais um dos muitos lugares que vai mapeando com a sua música.  

Mas importa entender antes Espvall Rocha Lobo, a soma dos nomes singulares que compõem este projecto, como de um autor novo, pronto a servir musica irrepetível. Desde logo na instrumentação com que desenham as primeiras sonoridades do espaço que haveria de tomar o tempo de uma só peça musical, em contínuo, em que as mudanças foram compostas por força das alterações das ferramentas. O chão de palco é um tapete de pedais e cabos condutores — também nisso esta música é um contínuo. Espvall surge de violino amparado pela electrónica modular num sintetizador Mother-32, Rocha de guitarra eléctrica ao colo e no regaço de Lobo há uma misteriosa cítara — instrumento de cordas esticadas sobre pequena caixa de ressonância. Afinal há aqui um lado ancestral, este é considerado como possível antecessor das guitarras modernas. Mas Lobo demonstra outra abordagem — nada ortodoxa — ao instrumento, ouvem-se daí arpejos e não os esperados glissandos, vê-se até uma técnica que vem das guitarras com slide

É uma música lânguida, com pendor que seduz e embala sem se impor, que chama para um estado que vagueia no antes-acordar e o proto adormecer, num rebuliço bucólico em deixar-se ir ou prender-se para não perder pitada, num jogo permanente interior da escuta. A esteira drone servida por Espvall é permanente e efectiva, que os pizzicatos requintam e melhor definem, e as cordas metálicas dedilhadas um mistério que Rocha e Lobo cintilam. Já é a preguiça às páginas tantas que nos comanda no espaço sónico, confortável, e por isso as hormonas internas do prazer sobrepõem-se às da máxima atenção, mais próprias dos estados de alerta. Aceita-se com leveza a sedutora doçura do nada fazer. Dolce far niente, tão fundamental para o decréscimo do ritmo dos dias — os do ano e num mais que isso os da vida neo-qualquer coisa lá de fora. Sim, porque aqui há uma bolha, uma redoma frágil suportada na candura da melodia. O momento ajusta-se a uma subtil nova realidade com a substituição de instrumentos, sem quebra de encanto algum, Rocha é violoncelo e Lobo guitarra. Espvall Rocha Lobo é como um ser renovado pelos instrumentos que prosseguem na “névoa de consciência”. A música pode bem ser servida nesses estados ainda enigmáticos, mas com que se lida diariamente, do sonho acordado e numa semiconsciência do real. 

Outros na música têm assumido essa exploração como os happenings de Robert Rich na Califórnia, nos meados dos oitenta com os sleeping concert ou mais recentemente na Nova Zelândia, o duo de electrónica Jeremy Mayall e Kent Macpherson, em To Sleep, com o violoncelista Yotam Levy. Mais por perto no final do ano podemos experienciar a Manta Amniótica no Teatro Ribeiro Conceição em Lamego, numa iniciativa que experienciámos de música ao vivo tocada ininterruptamente durante toda uma noite deitados em palco. Aí terão espaço e tempo Espvall Rocha Lobo, que inscrevem a sua música — mesmo sem um propósito assumido — em campos de fruição de estados de consciência que cabe experimentar e ousar.



O mesmo instrumento — a guitarra eléctrica — serve no Anfiteatro ao Ar Livre à noite outro propósito vital na música — o estímulo constante e efervescente, um certo e afirmativo acto de espreguiçar, como quem se prepara par o que vem. E o que em seguida acontece é da ordem da permanente inquietude. Mendoza Hoff Revels, pode ser lido também como um nome de um novo ser, vindo de Ava Mendoza em guitarra eléctrica e Devin Hoff em baixo eléctrico, compositoras no serviço de algo novo. No que resta, com Revels entende-se um claro manifesto do sentido da diversão, do festim sónico neste caso abordando um lado ruidoso, em que tanto resistem como se divertem com música associada ao seu instrumento. Essa força completa-se em palco com James Brandon Lewis no saxofone tenor e a bateria de Ches Smith, assim como em Echolocation, que editaram pela AUM Fidelity no último outono. É um disco feito de pujantes vivências em sessões de estúdio, que em muito poderiam ter vindo de prestações com um público por diante. Já que para Mendoza, Hoff, Lewis e Smith esta música serve-se do mecanismo de propagação de ondas sonoras para localizar o que está por diante, num assumido acto de tocar para ver melhor. A forma coesa e cúmplice com que o fazem vem de trás, antes da música, conhecem-se “aí há uns bons 25 anos, outros há 30 anos” comenta no final e com satisfação explicativa Ava Mendoza sobre a razão do bom entendimento na música. 

Esta música que é feita da guitarra e baixo como força motora essencial, mas a composição é assumida além e referem que: “Partilhámos a escrita destas peças, embora sem os selos consideráveis de James Brandon Lewis e Ches Smith, elas não soariam como soam aqui.” Pelo que a bateria e tenor proporcionam uma vitalidade à partida fundamental na diabolização alcançada em muitos temas. O segundo tema da prestação — “Diablada” — foi composto por Mendoza e é disso grande exemplo, em que os uníssonos de guitarra e tenor são feitos para empurrar — para deixar o diabo à solta por aí —, estimulados sem cessar por um linha de tempo e ritmo incansável. Ao terceiro tema, Mendoza faz uso da guitarra para um blues sujo no melhor sentido sonoro, convidando Smith a uma bateria com bolas de feltro, como que para limpar e suavizar e se receber de Brandon Lewis uma melodia redonda que Mendoza passa a acompanhar em harmonias que amparam. Ao quatro tema, “Ten Forward”, cuja autoria se deve a Devin Hoff, é no próprio baixo que se encarrega de gizar o começo feito de um destempero em linhas encantatórias onde é sobreposta a voz melódica do tenor, acompanhada de riffs abrasivos,  mas onde não perdemos, nem por instantes, o ferocidade vinda de Brandon Lewis. Isto é a complementaridade notável que vem da possibilidade de ter os mesmos músicos em destintas formações no mesmo festival. Do vivido da sessão inaugural do Jazz em Agosto — James Brandon Lewis’ Red Lily Quintet — não saberíamos tão de pronto deste mesmo outra voz de Lewis. Em “Interwhining”, Mendoza mostra-se entre o virtuosismo e o esplendor que lhe assentam bem, antes mesmo de se ligar a um diálogo entre o baixo e bateria, numa toada jazz-funk que muito justamente tem ligado esta formação a Prime Time de Ornette Coleman, o que fica notório com a chegada do tenor a percolar o espaço. Para no tema seguinte deixarem evidente outra das boas fontes influentes a que vão beber Mendoza e Hoff — o hardcore dos seminais Black Flag, há ecos disso na linha de baixo.

A parte final do concerto fica inscrita com um par de músicas mais, as que faltam para completar as editadas da formação — tocando os oito temas de Echolocation. Smith é um baterista com recursos e destreza inesgotáveis, pela forma como desenvolve a sua linguagem percutida quer pela energia empregue, contensão não pertence ao seu léxico — antes retirar-se de cena, algo que aconteceu um par de vezes. Mendoza aplica uma técnica extensiva sobre cordas digitadas no braço da guitarra que podemos comparar a execução de uma peça tocada em koto. De “New Ghost” ouvimos um passeio sobre ruínas, onde a guitarra surge rasgando a paisagem que sustenta uma carga pairante e misteriosa que a melodia assobiante do tenor torna respirável até ao ponto em que a mescla das intersecções entre as ondas emitidas e recebidas satura a comunicação possível. Aqui chegados, ficamos a pensar na capacidades daqueles como os morcegos — e que voaram rasantes à plateia—, todos aqueles que fazem da ecolocalização um mapeamento preciso do espaço em volta. Serão Mendoza Hoff Revels capazes disso e isso foi o que nos quiseram mostrar? Voltam ao palco do Anfiteatro ao Ar Livre para se mostrarem tão gratos pelo que receberam de volta com os seus processos comunicantes, tudo o que queriam saber estava conhecido. Deles, também nós, tivemos tudo.


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