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Fotografia: Cláudio Ivan Fernandes
Publicado a: 06/05/2024

Pipocar é o álbum de estreia do artista angolano.

Eddie Pipocas: “O lo-fi é um dos filhos do hip hop”

Fotografia: Cláudio Ivan Fernandes
Publicado a: 06/05/2024

A pandemia de COVID-19, iniciada em 2020, contribuiu para que Eddie Pipocas descobrisse um talento até então desconhecido: a produção musical. Inspirado pelo canal Lofi Girl no YouTube, que ganhou evidência durante os meses de lockdown, ele comprou alguns equipamentos e cursos de produção para tentar algo novo. Assim, paralelo ao trabalho jornalístico, começou a criar beats de lo-fi. Em 2022, lançou “Alvíssaras” e começou a conquistar um público.

“Eu, claramente, depois do primeiro single fui me inscrever em todos os fóruns de lo-fi, comprei pacotes e pacotes de samples, tentei perceber se era mais fácil produzir no Logic ou ir para outros programas de música”, diz ele. “A verdade é que existe um grande público. Só no Brasil, eu ’tou em 2 ou 3 grupos com mais de 5 mil pessoas… Imagina, quantos de nós trabalhamos em casa? Quantos de nós procuramos mil formas para não perder o foco? A verdade é que ficamos muito tempo focados no trabalho, então, o lo-fi e o home office fundiram-se. Então, não dá pra você entrar num estilo sem ter uma base, sem saber quem está por trás dele, quem são os donos e senhores desse estilo”.

Focado, e com alguns milhares de ouvintes, Eddie lançou no início de 2024 o álbum Pipocar, que na cultura angolana significa “está bom, está a correr bem, ’tá no hype“. É sobre o projeto e seu mergulho de cabeça no lo-fi que Pipocas fala nesta conversa via Zoom de 30 minutos, estando ele em Paris, na França, e eu em Campinas, interior de São Paulo, no Brasil.



Não faz muito tempo que você começou a produzir, né? Quando surgiu esse interesse pelo lo-fi?

Eu começo a fazer produção na pandemia. Tipo, eu morava no centro de Lisboa e o gajo que morava no prédio à frente do meu chama-se Mistah Isaac. É um angolano que vive em Lisboa faz uns 40 anos… é um excelente produtor, que é especialista em jazz e blues. O gajo é fera nessa cena, estás a ver? E então, apesar de fazer quase tudo sempre digital, também uso muitos instrumentos… e muitas vezes, quando eu precisava de um separador de uma cena mais específica, eu procurava o homem. E para não ficar meio abandonado, eu dava uma escapadinha na casa dele e assim fui aprendendo, falando outras coisas. O gajo trabalhava com duas ferramentas que eu tenho, o Logic e o Final Cut. Aí, fui treinando pra passar o tempo e as coisas começaram a sair. Fiz o primeiro single, que é o “Pipocar”, com a base toda que ele tinha, fiz da forma que ele me ensinou que tinha que fazer. E a partir daí fui desenvolvendo em casa, fui mostrando pra ele, e de repente o Eddie Pipocas tinha um single. Depois com o treino fui dando corda, dando corda, aprendendo muito no YouTube, muito Domestika… eu devo ter uns 30 cursos de produção. Então, foi isso.

Essa produção é 100% digital? E o que te inspira a fazer essas produções?

Irmão, imagina, eu tenho duas cenas. Eu trabalho com o Mistah Isaac até hoje, e ele toca instrumentos de verdade. Eu não sei tocar instrumentos, companheiro. Vou confessar uma coisa pra ti e espero que não conte a ninguém: nem escrever à mão eu sei mais [risos]. Eu escrevo há tanto tempo no teclado, que não sei mais escrever à mão. Quando chego pra assinar alguma coisa, a minha assinatura nunca é a mesma. Aí, eu pergunto se não podem me enviar o documento digital pra eu usar assinatura digital. Então, eu não tenho grandes artes nas mãos, elas não fazem grandes maravilhas. Eu estava a namorar um curso de piano de verdade, mas além da MPC e Maschine, eu não sei tocar mais nada. E quando preciso de um instrumento, eu procuro um instrumentista. Alguns singles, como “Moamba de Milho” e o próprio “Pipocar”, foram tocados pelo Mista Isaac. Depois tem o “Amizade”, que é um sample de um grupo de rap angolano, que eu procurei um guitarrista e um percussionista pra tocarem.

Então, tudo é produzido na MPC.

Tudo, tudo, tudo. Tipo [pega a MPC e mostra na câmera]: essa é a base. Eu acho que uma das grandes motivações para eu continuar a produzir e lançar esse álbum, foi que eu comprei todo esse material com os dois primeiros singles que produzi. Assim, não teve aquela luta com a patroa de: “Olha, eu preciso de dinheiro pra isso…” A música fez eu investir na música, então facilitou o processo.

O que te inspirou a fazer as produções?

Irmão, tem duas coisas que me inspiram muito, muito, muito. Como eu também sou jornalista e escrevo sobre música e cultura, eu recebo um milhão de mensagens e telefonemas de artistas perguntando: “O que tu achas? O que achas disso?” Mas imagina o tempo que foi gasto em estúdio, mais seis meses pra mixar e masterizar, pra eu dizer que não gosto. Eu nunca assumi esse papel… Ainda hoje, continuo a não dar a minha opinião, porque se quiserem uma opinião verdadeira, tragam no começo, não no fim.

Durante o processo, ainda na arquitetura…

Tal e qual, porque está na procura por validação, não está à procura do sim ou não. Hoje percebo isso, mas eu sou angolano. O que fez Angola um país foi a música. Angola e a música são irmãs… há muito poucos países que têm a honra de ter estilos próprios. Da mesma forma que o Brasil tem o samba e tem o funk, em Angola tem o semba e o kuduro, estás a ver? Eu venho dessa base de percussão angolana, tipo, um dos artistas que eu mais ouvi a minha vida toda chama-se Ruca Van-Dunem, e para o tempo em que ele cantava nos anos 80/90 aquilo era um rap pra instrumentais de bolsa. Era um storytelling maravilhoso. Então, eu venho dessa base de ouvir música, de gostar de música há muito tempo. No que eu faço, eu tento pensar em momentos que eu vivi e em como eu desenharia uma trilha sonora para aquele momento. Como nos filmes que têm aquela parte de ação, que vem com um tundun dundun dun… Tipo, que é pra pular o coração. O que eu tenho feito nessa inspiração do lo-fi é fazer a música que faz sentido pra colocar no meu namoro, na ida a um restaurante com um amigo, que há quatro anos não temos condições pra financiar. Então, eu tento pôr uma melodia nisso. E como, claramente, eu sou um bom contador de histórias, mas não um bom compositor… Eu não sei inventar histórias, logo dificilmente seria um escritor. Essa minha evolução musical vai ficar pela instrumentalização. No máximo vou produzir para um cantor fazer uma coisa em cima. Nunca vou pôr uma letra minha, tenho noção disso. Então, eu sou mais o gajo que provavelmente pode fazer a direção sonora de um filme. O lo-fi é porque quase todo mundo caiu no YouTube da menina lá no quarto a escrever, com todos esses influencers de como se concentrar… Nós estamos sempre à procura de uma forma melhor de trabalhar online, principalmente nós que trabalhamos em home office, de estar mais focado. Então, acho que quase todo mundo que trabalha em casa já caiu na cena do lo-fi. Foi a partir daí que fui apanhado. Na mesma altura, o Slow J lançou um álbum de lo-fi na pandemia. Pra mim não tem aquela pressão de lançamento, porque pra mim o mundo lo-fi é um mundo à parte. 

Muitas pessoas acham que músicas instrumentais não dizem nada. Mas elas também possuem mensagem, que serve para algum momento. O lo-fi veio num momento em que as pessoas estavam tensas e desesperadas. O jazz, na maioria das vezes, tem aquela explosão que não serve para o relaxamento, te deixa mais elétrico do que você necessita, e o lo-fi traz essa calmaria. Os seus números também estão bem legais para um álbum de estreia, né? Você acha que tem um público grande consumindo esse tipo de música? 

Irmão, imagina, eu claramente depois do primeiro single fui me inscrever em todos os fóruns de lo-fi, comprei pacotes e pacotes de samples, tentei perceber se era mais fácil produzir no Logic ou ir para outros programas de música. A verdade é que existe um grande público. Só no Brasil, eu ’tou em 2 ou 3 grupos com mais de 5 mil pessoas… Imagina, quantos de nós trabalhamos em casa? Quantos de nós procuramos mil formas para não perder o foco? A verdade é que ficamos muito tempo focados no trabalho, então o lo-fi e o home office fundiram-se. Então, não dá pra você entrar num estilo sem ter uma base, sem saber quem está por trás dele, quem são os donos e senhores desse estilo. E foi isso que eu fui fazer. Eu tenho um público grande, desde o meu primeiro single, mas que está muito espalhado pelo mundo. Ao olhar aqui, eu tenho ouvintes na Austrália, nos Estados Unidos, Itália, Espanha, aqui na França, onde eu vivo hoje… mas eu não tinha um público que fala português, que conhece o Eddie Pipocas. E esse álbum é minha oportunidade de ir atrás dos meus irmãos da Angola, dos meus vizinhos de Portugal, dos manos que estou a conhecer no Brasil. Mas você precisa encontrar quem ouve lo-fi. Quando comecei, eu fiz muitas campanhas com base no estudo de audiência, quais são os países que têm mais lo-fi, os produtores… Conheci uns 4 gajos que moravam no Leste Europeu que hoje vivem de lo-fi em Los Angeles. E tipo, de repente eu sou jornalista há 25 anos e estou a sonhar: “Epá, se isso der certo, eu também consigo ter a vida deles.” Estamos a falar de pessoas com milhões de ouvintes, estás a ver? Só que aí você tem que fazer uma música por semana, e pá, Adailton, eu vou te confessar: não tem como me dedicar como eu gostaria. Eu trabalho poucas vezes. Estamos a falar de 32 horas por mês, e ninguém com 32 horas por mês vira bom de verdade, entende? Eu tenho 3 músicas que foram feitas ao longo de 3 anos. Umas mais rápidas, umas mais devagar, e mesmo assim quem faz o mixer e master não sou eu. Se fizesse ia sair só em 2030 porque eu não tenho tempo pra isso

Na sua visão, o lo-fi faz parte da cultura do rap, do hip hop?

Claramente. Eu desde miúdo não tenho qualquer tipo de vocação pra música. Eu não sei rimar, eu não sei fazer beatbox. A minha vocação pra isso é zero, mas eu sempre me achei um rapper. A minha forma de estar, de me vestir, os meus colares… E acho que, como produtor de lo-fi, eu ’tou dentro da cena de hip hop, estás a ver? Se você for ver os samples, as minhas músicas são muito hip hop. O lo-fi é um dos filhos do hip hop.



De que forma as produções do disco foram criadas? Você parou para fazê-las, ou foi fazendo aos poucos?

Levou um tempo… A ideia inicial era lançar um EP de apenas 6 ou 7 faixas, que era pra sair em outubro de 2023. Só que quando você é um autor não pode colocar um produto na rua sem ter tempo pra ele. Então, esse EP evoluiu. Pensei: “Porque que eu vou lançar um EP de 6 faixas se eu tenho aqui 40 faixas?” O primeiro single que eu produzi, que dá título ao álbum, que é o “Pipocar”, é um misturar do meu nome com um termo angolano, pipocar, que quer dizer: está bom, está a correr bem, ’tá no hype. E juntamente com vários momentos e trilhas sonoras ao longo desses três anos que acompanharam a minha vida, como o “Grão de Milho”, que reflete o desabrochar de quem este Pipocas está a descobrir. Eu tenho 39 anos e me chateio com esse Eddie Pipocas de 39 anos, porque eu sou o gajo que nunca usou sapato, eu tenho 3 ou 4 camisas, e tipo, de repente visto-me, e lá fora ’tou de ténis, calça jeans… aí paro e penso: “Caralho, eu tenho 39 anos e tenho que me vestir como um senhor.” Esse reconhecer-me, aceitar quem eu sou, se eu sou um puto cota ou se eu sou só um puto, estás a ver? “Moamba de Milho”, “Grão de Milho” e “Pipocar” são todas músicas que remetem quem eu sou, com batidas, com os instrumentais, com as letras internas que estão na minha cabeça a cada momento. Esses beats contam a minha vida. Eu já me comprometi comigo mesmo em lançar ao menos um lo-fi por mês daqui pra frente.

Mas tem que ter comprometimento para manter esse fluxo… e também é uma questão industrial que te pede para se manter produtivo. É aquela coisa de “se você não lançar um single todo mês, ou a cada 15 dias, vão te esquecer.”

Existe essa cena dentro do streaming, mas confesso que não ligo muito para a indústria. Como eu também trabalho com muitos artistas em distribuição digital, oriento muita gente em como lançar os seus singles e a forma de preparar. A verdade é que somos reféns das majors… Tipo, por mais que eu faça, gaste todo o dinheiro que eu tenho na promoção dos meus singles ou passe a vida a ligar para que você me entreviste… Porque nós somos reféns, assim como Beyoncé e Jay-Z também são. A verdade é que o Spotify, a Apple Music e as outras plataformas de streaming estão na mesma mesa que essas majors e nós estamos muito abaixo. Então, claramente que eu lanço música com o meu comprometimento, eu estou aprendendo a me dedicar a isso para ser visto. Mas quem quer fazer parte da indústria tem que estar na indústria, e eu sou um jornalista, um crítico… então, eu não estou pronto para estar em ciclos fechados. Não vou me comprometer com a indústria musical. Vou me comprometer comigo, com minhas filhas e minha companheira que já me vê perder os domingos que deveria estar com ela para focar na música. 

É o compromisso que você assume junto aos outros compromissos que você já tem. E é interessante a diversidade da nossa língua portuguesa na lusofonia. No Brasil, pipocar significa outra coisa. É tipo uma pessoa que sempre fala muito, fala que vai fazer várias coisas, mas quando chega na hora de mostrar aquilo, ela desiste porque não sabe fazer aquilo ou tem medo… ela pipocou. Não dá para confiar nessa pessoa.

Yah! Faz sentido…

E a reação do público com o disco?

Adailton… eu confesso que sempre escondi. Os mais atentos sabiam que eu fazia isso. Imagina: eu tenho perfil [no Instagram] aberto há duas semanas, e ele sempre esteve fechado. Eu não tenho Facebook, e a minha relação com o Twitter [agora X]… agora que o Musk pegou naquela cena, eu tenho abandonado. E então, sempre existiu um conflito em mim sobre o que eu faço na produção e sobre os trabalhos à parte que eu faço. Imagina que eu estou a trabalhar num álbum de um grande artista, e aí, por exemplo, eu não consigo colocar esse artista no Rimas e Batidas. Depois, estou eu no Rimas e Batidas. Entende? Sempre foi um conflito pra mim. Por isso, eu não me vendi como um produtor musical. Sempre me escondi. Mas com esse meu descobrir que posso ter algum talento… Quando eu mostro as faixas, quando eu mostro minha segurança, quando eu submeto as minhas faixas naquelas plataformas de pitch e eles fazem aquela avaliação dizendo: “Isso não é lo-fi, isso é zero, por favor melhore e volte aqui.” E quando eu começo a submeter novas faixas e eles me dizem que: “Isso é muito bom, queremos falar sobre ti, temos uma jornalista na Argentina que gostou muito e quer te entrevistar.” Você sempre está evoluindo. Então, não posso guardar isso pra mim. Esse álbum também apresenta o Eddie Pipocas como produtor musical. Por isso, já não me escondo. O público que está a ouvir a minha música hoje está sabendo que esse é meu novo ofício. Confesso também que muita gente ainda não sabe o que é lo-fi, eles estão à espera de que eu faça rimas.

Sua próxima meta é assinar produções de outros artistas?

Olha, eu confesso que é muito cedo. Mas já tenho uma pasta onde tudo aquilo que não se transforma em lo-fi, eu ponho à parte e envio para os meus conhecidos, rappers de quem sou amigo, para ver se eles escolhem alguma coisa dali. Mas dentro da minha cronologia, eu gostaria de me assumir como produtor que trabalha com outras pessoas depois de eu me sentir mais seguro e dedicar mais tempo. Imagina que um produtor de renome cai num beat meu, gosta da cena e depois vai atrás de mim e eu não tenho como entregar o que ele realmente procura… Então, eu preciso estudar mais. E não adianta eu estudar se não praticar. Por isso, eu preciso de mais tempo, e acredito que daqui a dois anos eu vou estar pronto para entrar em estúdio com qualquer rapper ou artista. Tem muitos artistas que me procuram só que não faz sentido eu dar uma produção lo-fi para que alguém cante. Meus bebés foram feitos para serem ouvidos e mais nada.


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