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Texto: Vítor Rua
Fotografia: Diogo Vasconcelos & Xipipa
Publicado a: 23/10/2020

O encontro com o seu próprio som.

“É o Zeca Afonso?… É o António Variações?… Não! É o Filipe Sambado!”

Texto: Vítor Rua
Fotografia: Diogo Vasconcelos & Xipipa
Publicado a: 23/10/2020

Na Antiga China, um Imperador soube da existência de um excelente pintor, e logo quis possuir uma pintura deste. Assim, foi a casa do pintor e pediu-lhe uma pintura de uma tartaruga, ao que o pintor lhe respondeu: “preciso de três anos, ouro, mulheres e boa comida”. O Imperador acedeu.

Passados três anos o Imperador foi a casa do pintor para ver a sua pintura. Chegado lá o pintor disse-lhe que ainda não tinha o quadro e que precisava de mais três anos e de mais ouro e mais comida e mulheres. O Imperador, irritado, disse-lhe: “dou-te isso tudo, mas se daqui a três anos não tiver o quadro serás decapitado”.

Três anos depois, lá voltou o Imperador a casa do pintor. Chegado lá, viu uma tela em branco. E perguntou zangado ao pintor: “onde está a minha tartaruga?”. E o pintor, pegou no pincel e de um traço só, desenhou a mais bela tartaruga que alguém jamais alguma vez tinha visto.

Pergunta-lhe o Imperador: “Se fizeste esta pintura em segundos, porque é que me pediste seis anos para a desenhares?”. Ao que o pintor respondeu ao Imperador: “Porque primeiro precisava de saber o que era uma tartaruga”.

Filipe Sambado anda há quase uma década a criar o seu universo musical, com criatividade, opíparo bom gosto, profissionalismo e muita arte. Mas — para mim! — é em Revezo (2020) que Sambado “entendeu” o que era a “pop”: a sua pop!

E a “sua pop” é um intrincado mundo de variegadas tipologias musicais ligadas entre si como as galáxias do universo, e que podem ir desde um rock mais complexo e elevado, até à música popular mais alegre e criativa. Para muitos o Filipe Sambado é “o novo Zeca”, para outros é “o novo Variações”, para mim ele é o Filipe Sambado: um cometa na galáxia da pop em Portugal. Alguém que sabe muito bem o que faz, e o que quer fazer, do ponto de vista artístico. Sim, que o Filipe Sambado não é apenas um “bom músico”. Ele é um excelente artista interdisciplinar.

Além de multi-instrumentista, da sua maravilhosa voz, das suas letras admiráveis (inclinem-se mais para a contestação ou para um surrealismo pop), é um excelente performer, produtor e realizador nos seus discos, concertos ao vivo ou dos seus videoclipes, surpreendendo-nos com os seus exóticos e provocatórios mundos de encanto e magia.

Em Revezo, Filipe Sambado — finalmente! — entendeu que não era necessário estar “preso” num estilo musical. Revezo é o instante em que Sambado entendeu que aquilo que ele queria fazer era só seu! Era como se, nos seus trabalhos anteriores, Filipe Sambado precisasse de tempo “para saber o que era a pop” acabando por descobrir algo diferente: o seu estilo!

Mas o que é o “estilo”? O que pretendemos afirmar quando dizemos que “o som do Miles Davis é inconfundível”? O que é “o som Coltrane“? E “o som Hendrix”? O que leva as pessoas a dizerem que “o som dos Beatles é diferente do som dos Rolling Stones”? E o que é “o som Karajan”? Em que difere o som de Ravi Shankar de um outro tocador de sitar? Afinal que tipo de som é este e de que forma o podemos classificar?



Comecemos por investigar a importância da instrumentação: de que forma é importante a escolha do instrumento ou instrumentos para obtermos este som identidade? O som do trompetista Jon Hassell é constituído por ele tocar com 50% de som do instrumento e 50% som de ar; depois usa um processador de som (Eventide) que é um harmonizador (cria várias notas a partir de uma só e estas – as notas – estão em relação harmónica umas com as outras); e, finalmente, temos a parte melódica: as escalas ou modos que ele escolhe para o seu fraseado musical.

Mas será que um outro músico, com o mesmo instrumento, com o mesmo processador e usando as mesmas escalas e modos de Hassell, soa como este? É provável que sim. Mas especialistas irão identificar que não é ele. Da mesma forma que existem centenas ou mesmo milhares de pianistas a tentarem imitar Keith Jarrett e, mesmo assim, conseguimos dintinguir o original das cópias. É como um imitador de vozes de famosos: é uma voz semelhante (tonalidade, expressão, timbre), mas não é igual.

Podemos assim concluir, que o facto de dois músicos usarem instrumentos iguais, ou de se usarem as mesmas escalas ou modos, não faz com que soem igual, que tenham o mesmo som. No caso de um maestro, o caso é ainda mais complexo: o maestro não toca nenhum instrumento, os músicos são sempre diferentes e as músicas interpretadas podem estar separadas temporalmente por séculos. No entanto, mesmo assim, conseguimos distinguir se uma orquestra está a ser dirigida por este ou aquele maestro.

Então se o “som identidade” não é caracterizado pelo som do instrumento; se não tem a ver com o ou os músicos envolvidos (no caso de um maestro e de uma orquestra); e se não tem a ver sequer com a escolha das músicas ou das notas, escalas, ritmos, nelas contidas, o que é que nos faz identificar um som de um músico de outro, tal como uma mãe pinguim consegue descortinar o som da sua cria no meio de milhares de outras crias?

Talvez a resposta a esta questão – que não é simples – seja a de que o som identidade é uma mescla de todos estas variantes: instrumentação, técnicas instrumentais, musicalidade, timbre, ritmo, e toda uma série de idiossincrasias sónicas do individuo ou indivíduos produtores do som musical.

Quando eu ouço algo do Filipe Sambado, reconheço imediatamente as suas idiossincrasias estilísticas, através de todas estas matérias musicais referidas supra. Não podemos “separar” a vida da arte em Filipe Sambado (e ainda bem porque ele é muito bom nas duas coisas!). A forma tão lírica como ele trata de nos provocar é uma lição para as gerações posteriores à sua, e é uma libertação para os jovens mais novos ou da sua idade. Filipe Sambado parece viver sob a máxima do artista Joseph Beuys: “Arte é vida e vida é arte”!

Iniciei este meu ensaio com uma estória da Antiga China, e agora gostaria de terminar com uma outra do Antigo Japão, que conta o seguinte:

Há muito, muito tempo atrás, num templo budista japonês, todos os anos era organizado um concerto de música para flauta. Num desses anos, foi convidado a tocar no Festival um mestre flautista de uma província longínqua que tinha inventado uma nova flauta e uma nova técnica de a tocar. Um a um, os flautistas foram dando o seu concerto até chegar a vez desse mestre. Ele tocou a mais bela melodia que alguém já tinha escutado. No final fez-se silêncio e ouviu-se a voz do monge ancião: “Deus falou”. No dia seguinte, os monges reuniram-se para decidirem que aluno iriam enviar para aprender essa nova técnica com esse mestre e escolheram um jovem virtuoso, pois assim teria mais tempo para aprender com o mestre. E partiram os dois para a província do mestre flautista.

Na primeira aula, o mestre deu ao discípulo uma melodia muito simples para ele aprender e tocar. O aluno esteve um dia inteiro a praticar e no dia seguinte, foi a casa do mestre e tocou-lhe a música. O mestre disse: “Falta-lhe algo”. O aluno, regressou a sua casa e desta vez, praticou durante uma semana inteira. De novo foi a casa do mestre e voltou a tocar a peça. O mestre disse-lhe: “Falta-lhe algo”. O pobre jovem ficou muito triste consigo próprio. Não estava a conseguir realizar o que lhe tinha sido pedido. Voltou a praticar, mas desta vez durante um mês inteiro quase sem dormir. Foi a casa do mestre e voltou a tocar-lhe a melodia e de novo o mestre lhe disse: “Falta-lhe algo”. Aí, o aluno desesperou. Meteu-se no saké e tornou-se num bêbado e vagabundo. Tinha perdido a “face”. Quando anos mais tarde regressou à sua aldeia, foi viver afastado de todos no cimo de uma montanha e lá ficou isolado de todos, envergonhado. Uns anos mais tarde, em que se ia organizar mais um festival, um monge idoso, recordou que ali na montanha vivia um flautista virtuoso e pediu para o irem convidar. Este, sem nada mais a perder, aceitou quase instintivamente o pedido e, pegando na primeira flauta que apanhou, partiu para o templo. Chegado lá, ficou atrás do palco em silêncio e sem falar com ninguém e ninguém ousou também falar com ele. Um a um, os flautistas foram dando os seus concertos, até que chegou a sua vez. Ao subir para o palco, reparou que com a pressa, tinha pegado na flauta nova que o mestre lhe tinha oferecido e que ele nunca a tinha tocado antes. Pegou na flauta e tocou a melodia que o mestre lhe tinha ensinado. No final, fez-se um silêncio e o monge mais ancião disse: “Deus falou”…

Em Revezo de Filipe Sambado, “Deus falou”!


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