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Publicado a: 16/10/2015

DJ Firmeza: “Tenho de mostrar que valeu a pena ensinarem-me a produzir”

Publicado a: 16/10/2015

[TEXTO/FOTOS] Ricardo Miguel Vieira, em Londres

 

“Estás nervoso?”, pergunto a DJ Firmeza. Estamos no Dance Tunnel, um club numa cave sombria entalada entre uma concorrida pizzaria e uma papelaria em Dalston, centro de Londres. A entrada, uma porta negra sem uma simples inscrição que a localize, é indistinguível entre as luminosas lojas que preenchem a avenida. Cá dentro está escuro breu, smoke machines empestam o ar e tornam ainda mais imperceptível quem está à nossa frente. Há apenas uma luz vermelha a assinalar a cabine do DJ – Marfox está neste momento nas misturas, enquanto Firmeza anda de um lado para o outro na pista de dança, olhos fixos no chão, ausente em espírito, embrenhado nos seus pensamentos. “Mais ou menos”, responde, erguendo o olhar com concentração, a acenar as mãos de um lado para o outro. “É aquela ansiedade antes de actuar, mas depois passa. Como não preparo nada, vou pensando e planeando mentalmente. Depois fico assim.”

Cilio Manuel, nome próprio, está de passagem por Londres com DJ Marfox e Nídia Minaj para uma noite Clock Strikes 13, uma série de live showcases de editoras que se estende durante quase dois meses e por onde passam reputadas casas como a Lex Records, Hyperdub, Planet Mu ou XL Recordings. A Príncipe Discos é uma das labels convidadas. A casa está cheia. Há muitos britânicos, mas também portugueses e angolanos, manos da Linha de Sintra e Quinta do Mocho, conhecidos dos DJs. Um deles é o irmão de Marfox. Vive algures na zona norte de Londres há vários anos.

Firmeza é um miúdo que se entrega às emoções do momento. Ele próprio o admitiu durante a nossa conversa ao jantar. Contou-me que um dia, após uma actuação na Roménia, ficou de rosto em lágrimas com a recepção do público à batida. Riu-se jovialmente ao recordar o episódio. Já quando lhe pergunto sobre o EP de estreia, A Alma do Meu Pai, não segura um par de lágrimas enquanto recorda o progenitor que faleceu no ano passado. A compilação é uma homenagem a essa figura que o introduziu à música proveniente de Angola.

Já quando falamos de influências, é com deslumbramento que menciona Nervoso, “o melhor DJ do mundo”. O pioneiro da batida do gueto de Lisboa é também uma espécie de figura paternal para o jovem produtor (“se não fosse o Nervoso, hoje não estaríamos aqui a conversar”), não só pela motivação que transmitiu a Firmeza para que fosse parte da revolução sonora que está a acontecer nos bairros periféricos de Lisboa, mas, acima de tudo, pelos conselhos de vida que transmitiu ao rapaz franzino que gosta de arte marciais. Esses ensinamentos certamente fazem parte do caminho que Firmeza percorreu na juventude e que hoje o elevam a um dos mais singulares valores entre os revolucionários da periferia lisboeta.

Depois de largos minutos semi-isolado num canto da cave, Firmeza regressa à pista de dança e sacode nervosismos com uns afinados passos de kuduro. Os mesmos que, mais tarde, vai ensaiar no controlador, enquanto a malta celebra, em bom português para britânico entender, a arte “do gueto de Lisboa para todo o mundo”.

 


Esta não é a primeira vez que vens a Londres, muito menos que actuas fora de Portugal. Como é que tens visto a recepção do público estrangeiro à batida de Lisboa?

Tem sido muito boa, recebem muito bem esta nossa batida. Eles matam-se [na pista- de dança](risos). Sem brincadeiras, recebem muito bem e sentem o mesmo que sinto quando passo música. Procuro transmitir-lhes exactamente o mesmo que esta música me faz sentir.

O público português certamente acolhe a batida de modo diferente do povo londrino, por exemplo. Crias sets ou até sons novos para cada ocasião tendo em conta o público a que te diriges?

Por acaso não, produzo quando calha. Na vida há sempre altos e baixos e há momentos em que me sinto bem disposto e outros que estou triste e aí faço uma música [que reflecte esse estado de espírito]. Agora, criar um set para tocar é uma coisa que nunca fiz. Normalmente não preparo nada, é na hora. Improviso. O que o meu pensamento disser é o que faço.

Quando actuas fora de Portugal com um grupo de outros artistas da Príncipe – como hoje com o DJ Marfox e a Nídia Minaj -, costumas trocar sons com eles durante a viagem? Falam de planos e ideias ou desligam por completo da batida?

Fora de trabalho, eu e o Marlon [DJ Marfox] somos amigos, então conversamos e trocamos ideias diariamente. Com CDM é a mesma coisa, temos uma ideia e partilhamos. Na Príncipe há uma hierarquia, digamos que o Marlon [DJ Marfox] está no patamar mais alto, mas somos uma pequena família. Agora, em viagem, relaxamos, conversamos ou, quando temos tempo, até podemos produzir.


dj_firmeza_2_rmvieiraEu ia a casa do Nervoso, pedia-lhe um beat e ele fazia e eu ficava todo cheio de emoção, ia para casa todo contente, ‘poh, ‘tive com o Nervoso’.


Vocês produzem no avião? Produziste alguma coisa nova com o Marfox a caminho de Londres?

Não, agora tenho um computador novo (risos), o sistema é diferente. Mas, por acaso, em viagens, quando utilizava Windows 7, tinha lá o FL [FruityLoops] instalado e produzia e depois passava para o computador dele e vice-versa. Agora como é o Mac ainda não [produzi].

Parece-me que produzir é para ti um hobby. A menos que estejam a trabalhar por inadiável necessidade, o pessoal em viagens de avião desliga por umas horas: lê um livro ou vê um filme ou joga qualquer coisa no computador ou no tablet… Como é que geres a tua vida para te dedicares à produção?

A minha vida é assim: escola-casa-escola e quando posso vou treinar judo, gosto muito de artes-marciais. Há pessoas que chegam [a casa], sentam-se e têm de produzir. Eu não. Eu já tentei ir por esse caminho, mas há dias em que parece que o computador não nos dá nada. Estou a tentar produzir mas não sai nada. Há vezes em que me sento e estou a ver televisão e um toque daqui, um toque dali e começo a produzir.

Quando tens uma ideia sentas-te a ouvir alguma coisa para te inspirares ou lanças-te directamente ao FruityLoops?

A única pessoa que me inspira é o Nervoso. Ouvir uma malha dele ou o simples acto de estar a conversar com ele é suficiente [para me inspirar]. É o meu DJ favorito. Cada um tem o seu estilo, mas ambos gostamos das mesmas cenas, o que ele gosta normalmente também gosto. O simples facto de me sentar a falar com ele já me dá aquela inspiração para produzir. Então crio [uma música] para lhe mandar.

Ou seja, vais buscar influências a quem está acima na hierarquia da Príncipe…

Falo muito do Nervoso porque, para mim, é o melhor DJ do mundo. Em criança sonhava estar frente-a-frente com ele. Agora cresci e graças a deus a história foi mudando e ele sempre foi uma pessoa humilde, sempre acolheu o nosso trabalho. É mesmo o melhor DJ do mundo. Só o facto de ser o meu ídolo e de estar a falar comigo significa tudo para mim. Façamos de conta: cada ser humano tem o seu ídolo; agora imaginemos que cada ser humano se relaciona com o seu ídolo… Isso é sempre um motivo de inspiração para fazermos o que gostamos porque o ídolo transmite-nos boas palavras. Isso é muito bom. E vindo dele, cinco estrelas.


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O plano que sempre tive desde criança é ver os meus próximos, a minha família, bem e poder dar-lhes alegria. Quanto mais acima estiver, melhor para mim e para os meus, porque estou a batalhar para todos nós.


Como é que chegaste ao contacto com o DJ Nervoso?

Nós somos do mesmo bairro, Quinta do Mocho. Nasci e cresci lá. Eu ia a casa do Nervoso… (risos)… e nem sabia o que era um FL. Sentava-me lá e pedia-lhe um beat e ele fazia e eu ficava todo cheio de emoção, ia para casa todo contente, ‘poh, ‘tive com o Nervoso’ (risos). Sempre apreciei o Nervoso a tocar, mesmo os tiques dele. Quando eu era criança ele já tocava em festas. Vi-o a tocar nas raves do Mocho. Como é um bairro social fazíamos tudo o que queríamos, entre aspas. Lá é o nosso mundo, ninguém nos chateia. O vizinho não chateia o outro, é tudo ao ar livre. Ali temos de saber ver o que nós queremos do nosso dia-a-dia. Lá na escola de Sacavém havia conflitos entre bairros rivais e isso fez parte da minha infância. Fui crescendo a ver aquilo e se não fosse a música, talvez hoje não estivesse aqui a falar contigo. Mesmo assim, no ano passado estava a tirar um curso de Assistente de Apoio à Família e agora estou num outro que não estou a gostar muito – Electricidade. Como tenho a escola atrasada por causa de problemas que tive no passado, pensei agora retomar os meus estudos. Até posso não precisar, mas pelo menos fico com tudo feito. Sempre fui ligado à escola.

O Nervoso não só te motivou a entrares na música como te safou de outros destinos…

Fui vendo o que é melhor para mim e decidi seguir a música. Posso dizer que, graças a ele, hoje sou DJ. Agora até parece estranho falar dele. Quando era criança, podiam pôr a tocar qualquer DJ, mas para mim [o melhor] era o Nervoso. Tudo o que tenho, mesmo as minhas primeiras pastas de música, de kizomba, house, foi ele que me passou. Ele era dos DJs di Ghetto e eu fazia crew com os Piquenos DJs di Ghetto [PDDG], éramos espécie filhos deles e isso é tudo graças ao Nervoso. Ele é que nos ensinou e nós continuámos o caminho. Quando digo que sou o Firmeza, sou-o através dele. Tirando a família e os irmãos, que também sempre foram ligados à música, foi tudo através do Nervoso. E isso é um orgulho para mim.

E de vez em quando ainda lhe vais bater à porta?

Nah, agora crescemos. Mas é sempre uma honra. É como ele me diz: eu sou o melhor DJ do mundo. E eu digo-lhe: ‘tu é que és o melhor DJ do mundo’. É uma honra.

Cresceste e acabas de lançar o teu primeiro EP a solo, Alma do Meu Pai. Qual é a história por trás deste teu primeiro trabalho em nome próprio?

Tudo começou depois da morte do meu pai, a quatro do sete de dois mil e catorze. Pai é pai, está sempre presente nos nossos momentos, mesmo na nossa mente. E ele era um pai ligado aos filhos. Não era rico, não tinha nada para nos dar, mas só a maneira de ser, só a presença, já contava muito. Então, acompanhou-me sempre e viu-me evoluir, via-me a tocar, às vezes fazia-me companhia no quarto quando estava a passar música. E agora sou eu a passar música no quarto sozinho…

Esteve sempre aí para ti e apoiou-te na tua carreira na música…

Quando digo apoiar era mesmo só a presença dele. E quando ele não está presente é complicado.



O facto de ser um EP-homenagem ao teu pai – além do teu primeiro a solo – mexeu com a produção? Procuraste abordagens diferentes das que tens seguido ao longo da tua aprendizagem?

Bem que podia ter feito melodias mais sentimentais, mas a vida é assim, ensina-nos a ser assim. E acho que ele lá em cima também não me quer ver triste, percebes? E ele gosta de música a sério, de batuques a sério. Se tenho estes ouvidos é graças a ele, porque, tirando a minha própria música ou a da Príncipe, também consigo passar um pouco de tudo. Qualquer desafio para mim dá. Porque é isso que gosto. Quero conquistar o mundo como DJ e não apenas com a minha música, porque sei que há muitos artistas, produtores, estilos de música. Para mim, DJ é aquele que passa um pouco de tudo, que sabe passar um pouco de tudo, e é essa a minha função.

O meu pai também gostava de música. Aliás, para mim ainda gosta. Como ainda não vi o corpo dele, porque está em Angola, só quando vir a campa é que vou acreditar que faleceu. São coisas que mexem muito com o meu pensamento, mas a vida é assim. Se a vida é assim, puxei mais por mim. Posso dizer que sou preguiçoso, posso estar a produzir, mas chega a uma altura em que paro. Mas no dia em que produzi “A Alma do Meu Pai”, sentei-me, pensei ‘vou investir um pouco mais em mim’ e deixei-me levar. Quando olhei [para a faixa] já tinha seis minutos. É mesmo aquele som, o meu ritmo, para continuar em frente, porque o mundo não pára, daí A Alma do Meu Pai. Pai é pai e quando se fala em pai talvez puxe mais por mim. Tudo tem a sua lógica, as pessoas não ficam para sempre e isso dói.

É um EP para libertares emoções…

Sim. Por acaso sou [uma pessoa] sensível. Sou mesmo Escorpião, sou sensível. Coisas pequenas mexem comigo. Posso dizer que também chorei quando fui à Roménia tocar porque as pessoas que estavam lá receberam bem a nossa música. Isso é uma alegria para qualquer artista.

Tinha a percepção que és uma pessoa meio misteriosa. A única entrevista contigo que encontrei foi uma recente à Resident Advisor e é mesmo muito curta…

É a minha forma de ser. Não és a primeira pessoa dizer-me isso. Não posso dizer que a minha vida é um mistério porque não é, não faço de propósito. Acontece, é a minha maneira de ser. Não há nenhuma lógica em falar de coisas pessoais. Depende, tudo o que me perguntares, respondo. Mas por minha iniciativa podes querer que não sou de falar. Mas tudo o que quiseres perguntar, eu respondo.


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O meu pai acompanhou-me sempre e viu-me a evoluir, via-me a tocar, às vezes fazia-me companhia no quarto quando estava a passar música. E agora sou eu a passar música no quarto sozinho…


Sendo parte da família Príncipe, como é que procuras distinguir-te dos outros artistas?

Falando no geral, não tenho definição [para o meu estilo]. Até hoje posso dizer que não sei qual é o meu limite. Nasci mesmo para ser DJ e vou morrer como DJ. Eu vejo e gosto de acompanhar o trabalho de outros DJs, reparo num pouco de tudo. Agora estou a conhecer mais estilos, principalmente do estrangeiro. O mundo tem vários estilos de música e há aqueles estilos que mexem mesmo comigo. Posso escutar a música mais inacabada do mundo, mas se tiver alguma coisa que me chama à atenção, gosto sempre de colocar ali no meu desafio, na minha exposição. Desde música dos anos 90 até hoje. É por isso que não me defino.

Mas defines planos de futuro? O que tens na mente para os tempos mais próximos?

Todos temos muitos planos, mas como me meti na música vamos ver como é que isto corre. Sinceramente, sou mesmo assim: um pé à frente e outro atrás. Não sei no que vai dar, veremos. Estou sempre a mudar de planos. O plano que tenho e que sempre tive desde criança é ver os meus próximos, a minha família, bem e poder dar-lhes alegria. Quanto mais acima estiver, melhor para mim e para os meus, porque estou a batalhar para todos nós. Posso dizer que estou a trabalhar pela minha família, que estou a representar Portugal e Lisboa. Eu gosto de viver em Portugal. Eu nasci em Portugal e prefiro viver em Portugal do que em Angola. A minha infância está em Portugal, foi ali que aprendi a falar, que fui para a creche, que tive a minha infância, a pré-escola, tudo e mais alguma coisa. Tenho de retribuir e mostrar que valeu a pena ensinarem-me isto.

Até onde vai a batida de Lisboa e até onde a queres levar?

A batida de Lisboa nem é bem batida de Lisboa, é mais do gueto de Lisboa…

Já a Nidia Minaj, quando conversámos numa Noite Príncipe no Musicbox, havia de facto estipulado que isto é ‘batida de Lisboa’…

Essa batida já é feita há anos, mas há muitos DJs em Lisboa que nunca aceitaram a nossa batida do gueto. Se já o tivessem feito, então há muito tempo que já estaríamos por aqui. Com essa discriminação que nos fizeram, é melhor mesmo chamarmos ‘batida do gueto de Lisboa’, porque é de lá que está a sair. Agora, onde vai parar? Onde deus quiser porque essa música é nossa, é do gueto de Lisboa e é para todo o mundo.

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