Depois da (cada vez mais) longa época dos festivais de Verão, num mercado que apresenta visíveis sinais de estar saturado, a editora Discos Submarinos resolveu lançar o seu próprio festival — obviamente com uma escala muito diferente dos grandes eventos, numa lógica distinta. A primeira edição aconteceu este sábado, 21 de Setembro, no edifício da companhia Teatro da Garagem. E haveria melhor sítio para toda esta música emergir?
Com uma vista esplendorosa sobre a Graça e a Mouraria, metade dos concertos aconteceram no Jardim do Café da Garagem. Só este cenário privilegiado e amplo no centro de Lisboa fazia metade do trabalho: não vale a pena subestimar a importância dos lugares onde eventos como este se realizam, pois determinam grande parte do ambiente e predisposição dos envolvidos, expandindo ou minimizando a experiência.
Por outro lado, algumas performances ganharam um cunho intimista na acolhedora sala do Teatro Taborda. Um festival dividido entre a luz desta cidade vibrante e o escuro característico das salas de espectáculo; entre a dança extrovertida e o recato de um registo introspectivo. É como se lá fora o submarino tivesse vindo ao de cima, para depois no teatro mergulhar nas profundezas do oceano. Duas experiências distintas que acabaram por equilibrar esta primeira edição do festival.
Os primeiros a apresentarem-se em palco, perante as colinas de Lisboa, foram Tape Junk e Pedro Branco. Este ano uniram esforços para apresentar Bolero, um disco que relata histórias imaginárias baseadas em factos reais, um registo narrativo que nos transporta para paisagens áridas e turbulentas da América profunda, crónicas musicais de viajantes e forasteiros.
Ao vivo, naquele que foi um concerto particularmente bem-disposto, a voz e a bateria de Tape Junk cruzam-se com a virtuosa guitarra de Pedro Branco. A dupla conta ainda com o apoio valioso da baixista Mariana Ricardo. Simples mas bastante eficaz, música de horizontes alargados a condizer com a profundidade da paisagem, a pedir que se bata o pé e que se vá bebericando algo fresco.
Para o concerto de estreia na sala do Teatro Taborda, era a vez de Rita Cortezão. Naquela que foi apenas a sua segunda actuação de sempre, a artista soube contornar todos os (assumidos) nervos com o seu humor desarmante e generosidade latente. Tem estado a trabalhar com Luís Nunes, mais conhecido como Benjamim — o homem do leme da Discos Submarinos —, no seu primeiro disco.
Aquilo que deu a mostrar este sábado é, no mínimo, promissor. Canções que falam de anseios e dúvidas existenciais, declarações de amor e histórias de proximidade, a relação entre o seu interior e o mundo cá fora. Letras maduras, facilmente relacionáveis, que deixam antever que Rita Cortezão poderá ser mais uma cantautora de notável qualidade numa altura em que, felizmente, a música portuguesa se afigura repleta de compositoras e intérpretes femininas a dar cartas em nome próprio.
Houve ainda espaço para “Demasia”, um bem executado medley de “Telepatia” (Lara Li) e “É Demais” (Doce). Musicalmente, a maior parte das canções foram tocadas apenas com teclado, despidas de outros elementos. Mas outras ganharam texturas electrónicas e mesmo batidas mais ritmadas, o que fez aumentar a curiosidade com os arranjos do disco. Uma agradável surpresa e um nome a manter, sem sombra de dúvida, debaixo do radar (ou no sonar do submarino).
Voltámos a emergir para o concerto de Beatriz Pessoa, cantora que no ano passado lançou o álbum PRAZER PRAZER e que aqui se apresentou num novo formato, tocando com instrumentistas que se voltariam a repetir ao longo do festival. Foi das actuações que mais apelaram a esse sentido de familiaridade que tanto caracterizou esta primeira edição do Discos Submarinos, com as fronteiras entre plateia e palco muito esbatidas, com os músicos a subirem ao palco para depois voltarem a ser público, para muitos sorrisos, saudações e momentos de cumplicidade entre caras conhecidas, também potenciados por uma lotação relativamente reduzida onde se sentia mesmo essa proximidade.
Beatriz Pessoa mostrou ser uma performer nata, com uma voz com um alcance notável, interagindo com o público e os próprios músicos de forma descontraída. Interpretou o mais recente single, “Violeta”, em tributo à pequena filha que ali estava a assistir ao seu primeiro concerto da mãe; mas também fez uma versão de “Pink Pony Club”, de Chappell Roan. Acima de tudo, em destaque estiveram canções que apelaram a um PRAZER PRAZER de toada pop com muitas influências da música brasileira — ou o disco não contasse com direcção artística de Marcelo Camelo — mas também de espírito indie.
Voltávamos para a sala escura do teatro para uma performance acústica de Velhote do Carmo, que normalmente se apresenta com banda mas que aqui apenas apareceu acompanhado do parceiro Martim Seabra, que consigo produziu o EP Páginas Amarelas, a primeira edição da Discos Submarinos, datada de 2022, e o único disco do músico lançado até agora.
Duas guitarras, versos poéticos que tanto evocam uma aura coming of age como suscitam reflexões e contam histórias, e uma presença magnetizante impulsionada por um ânimo certeiro que envolveu toda a plateia. Velhote do Carmo aproveitou ainda para apresentar um trio de temas novos que muito provavelmente irão integrar o seu primeiro álbum, previsto para 2025, e que deixaram apetite — nomeadamente um single baptizado por um fã como “Sol e Mar”.
Seguia-se Margarida Campelo, uma das coqueluches da editora, que no ano passado, já muito tempo após dar início ao seu percurso na música, lançou um disco de estreia, Supermarket Joy. Um álbum particularmente bem-recebido que apresenta uma pop trabalhada, com muitas nuances de R&B ou neo-soul, com roupagens algo electrónicas. Um híbrido maduro que não é formatado mas também não demasiado vanguardista para o seu próprio bem.
“Faz Faísca e Chavascal”, “Mapa Astral” ou “Love Will Never Be Enough” foram dos temas mais celebrados num concerto em que a artista foi aproveitando para reflectir sobre o processo de construção do disco, partilhando curiosidades e, mais uma vez, convocando os seus pares para cima do palco. Foi o caso de Beatriz Pessoa e Ana Cláudia, que ajudaram a cantar o refrão de “Aura de Panda”. “É uma felicidade poder trabalhar em família, com os nossos amigos”, exclamou antes de convidar todos os músicos da Discos Submarinos para uma celebração colectiva que agraciava o mês de Setembro.
Um outro álbum ganhava destaque em palco no Teatro Taborda poucos minutos depois. VIGIA, de Tipo — o projecto a solo de Salvador Menezes, um dos membros fundadores dos You Can’t Win, Charlie Brown — era apresentado com uma formação composta por Pedro Branco, Tomás Sousa e Inês Sousa. Todos eles participaram na construção deste segundo disco de Tipo, que contou com arranjos de orquestra de Martim Sousa Tavares e participações especiais de nomes como Noiserv, Afonso Cabral ou João Gil.
Editadas em Março, estas são canções que vivem muito da escrita poética e da guitarra acústica, embora muitas vezes adquiram outro alcance sonoro graças aos teclados, à percussão digital e às cordas eléctricas. A pouca naturalidade para o diálogo com o público acaba por se tornar numa honestidade valiosa, quando os pequenos constrangimentos se tornam momentos de humor ou ternura. Um Tipo a que vale a pena prestar atenção.
Como não podia deixar de ser, e como o comandante é o último a abandonar o submarino — ou pelo menos a encerrar as portas do primeiro festival da editora —, Benjamim guardou para o fim a sua performance. De repente, já de noite cerrada, as colinas iluminadas de Lisboa tornavam-se numa tela para o músico projectar a sua epopeia pel’As Berlengas, arquipélago tão real quanto fantasioso na sua obra editada em Abril.
São temas contemplativos movidos a samples e motores electrónicos, embebidos de uma alma indie e experimental que formam uma viagem ausente de urgências, onde o objectivo é mais o caminho traçado do que uma qualquer possível meta. Um verdadeiro submarino que navega em alto mar, ousando cruzar águas pouco exploradas, representando uma jornada muito própria que não liga a formas padronizadas nem ao ritmo da indústria. Música independente que tem espaço e tempo para florescer em editoras e festivais como estes, mais relevantes do que nunca; ou seja, tão importantes como sempre.