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Fotografia: Margarida Campos Lima
Publicado a: 02/12/2024

David Bruno: “Tenho histórias de filhos que dizem ter mostrado a minha música aos pais e eles ficaram fãs”

Fotografia: Margarida Campos Lima
Publicado a: 02/12/2024

2023 foi ano de despedida para David Bruno, fazendo adivinhar uma pausa prolongada na carreira, mas que acabou por ser curta. É, sem sombra de dúvida, uma das maiores lufadas de ar fresco na música portuguesa da última década, fruto do seu conceito artístico altamente peculiar e interessante, devoto à portugalidade e às raízes de David Besteiro, um cidadão do município de Gaia.

12 meses volvidos, surpreende com este regresso que, como descreve, é até precoce, julgando que poderia ter sido bem mais tardio. E em que assenta esta sua rentreé? Gaia. Novamente Gaia — só podia ser. Mudou de residência e, como é claro, isso é uma oportunidade. Vilar do Paraíso é uma das várias freguesias de Gaia, e também o novo “poiso” de David, que aproveitou esta paragem na carreira para desfrutar da sua nova zona habitacional, conhecer novas gentes e recantos, estudar o seu passado e, como é claro… dedicar-lhe um álbum. É exatamente essa a premissa deste Paradise Village, uma viagem de cerca de meia hora por Vilar do Paraíso e tudo aquilo que representa. Nas profundezas da Internet há verdadeiras pérolas sobre esta freguesia, como por exemplo um arquivo sonoro de Pedro Abrunhosa a falar sobre ter trazido as super-estrelas Prince, Shakira e alguns Rolling Stones a este recanto bem rural, conhecido pelos seus palacetes e casas de campo. 

Obviamente, deste gaiense não se esperava menos que uma ode pormenorizada e nutrida dos detalhes mais peculiares possíveis e, por isso, o novo longa-duração de David Bruno é previsível nesse aspeto, mas inovador e arrojado no campo sonoro, talvez fruto de alguns meses mais sossegados e exploratórios para si. A nova adição ao catálogo é, assim, um esforço artístico interessante e refrescante, sem nunca se desligar daquilo que é a sua essência.

O Rimas e Batidas esteve à conversa com David Bruno que dissecou este Paradise Village de cima a baixo, com tempo para falar sobre os concertos de apresentação marcados para 13 de dezembro no Capitólio, em Lisboa, e também na Casa da Música, a 11 de janeiro de 2025, no “seu” Porto.



A última vez que falámos foi também horas antes da última vez que subiste a palco antes deste “ano sabático” enquanto David Bruno. Como foram estes meses para ti? 

Lembro-me perfeitamente, no chamado after em Faro [risos]. Nestes últimos meses tive a oportunidade de… A palavra-chave é: conforto. Essa é a palavra-chave deste álbum, estive muito confortável no meu canto pela primeira vez, a aproveitar ter mudado para uma zona nova que é Vilar do Paraíso, um sítio que costumo dizer que, como na Guerra dos Tronos, está imediatamente para lá do muro, aquele que divide a civilização do resto. Ou seja, daquele lado é Mafamude, que é extremamente urbano e cresceu imenso nos últimos anos, e eu vim para este lado e ainda não tinha tido tempo de ir explorar aqui a zona, ir ao café, conhecer as pessoas, etc. É um ambiente muito rural como eu gosto, já tive a oportunidade de fazer discos sobre ambientes mesmo rurais que é de onde vem a minha família, mas aqui encontrei esse ambiente outra vez, ’tás a ver? Tens o café, a mercearia, tive a oportunidade de aproveitar essa vida, de poder a andar a pé, é uma maravilha, qualquer coisa que precisas… vou a pé, é já ali. Se for um bocadinho mais longe, vou de bicicleta, arranjei a minha antiga e utilizo-a. Portanto, nos últimos tempos tive a oportunidade de fazer isso e de, sobretudo, deixar o disco maturar, podia perder tempo a deixá-lo respirar — fazer, voltar atrás, apagar, repeti. Tive esse conforto e paz que é reflexo de vir morar para Vilar do Paraíso. Acima de tudo, este tempo parado foi algo novo para mim, nunca tinha feito isto, agora estou dedicado à música a tempo inteiro, pude fazer um álbum com muitos detalhes. A palavra-chave deste álbum é “conforto”. 

Uns meses de muita reflexão, sem pressas, certo?

Sim, convidei muita gente para entrar no álbum, alguns aceitaram e outros rejeitaram, uns experimentaram e não deu, descobri a Lena, a Helena Neto, com os seus backing vocals — ela também é back vocalist dos Expensive Soul. Conheci-a há uns anos num tema que fiz com uma malta do Porto, e depois aproveitei a ligação para a chamar e experimentar neste trabalho, que é uma coisa que não fazia muito até agora, sempre fui muito pragmático, também acho que é um bocado fruto da idade. Com a Lena foi muito curioso, porque quando a convidei para entrar no disco, perguntei se achava que encaixava nestes temas e ela disse-me: “Olha lá, como é que sabes que sou de Vilar do Paraíso?” [risos]. Nasceu e cresceu aqui, aprendeu a cantar na academia de música de Vilar do Paraíso, portanto não podia ser mais perfeito. Esse foi o maior achado do álbum! 

Há um ano quando anunciaste esta paragem, pensaste em parar também um ano ou mais/menos?

Pensei que ia ser muito mais tempo. Isto decorreu mais ou menos em 3 fases. Primeiro, eu sempre quis fazer um álbum dedicado a Vilar do Paraíso, porque recebi a medalha de mérito cultural da União de Freguesias de Mafamude e Vilar do Paraíso. Ora, eu já tinha feito um álbum sobre Mafamude a viver em Mafamude, mas nunca tinha feito nada por Vilar do Paraíso. Ou seja, recebi a medalha desta freguesia por arrasto e ainda por cima vim para aqui morar. Já no álbum anterior fazia algumas referências a Vilar do Paraíso, até na música com o Rui Reininho, na altura tinha acabado de chegar cá, e já pensava em fazer algo dedicado ao sítio, mas sem ideias concretas. Andei a fazer a minha vida, a conhecer o pessoal, ir ao café, aqui ainda há muito o hábito de ir beber uma cerveja antes de ir para casa depois do trabalho, algo que não via há anos. 

Recapitulando, nessa primeira fase eu estava só parado mas já tinha esta ideia, só que não pensava “o próximo [álbum] vai ser assim”, isso não, estava só a fazer a minha pausa em paz. Depois, com muito tempo livre, comecei a pesquisar, a explorar aqueles canais de YouTube estranhos, até que descubro o canal do ex-presidente da Junta de Freguesia onde tem lá o Pedro Abrunhosa a dizer que morou aqui e que tinha trazido cá o Prince, os Rolling Stones e a Shakira e eles tinham ficado fascinados. Quem pode dizer isto? E é assim, eu não acredito que o Abrunhosa seja mentiroso, se ele diz é porque é [risos]. Entretanto, começo a investigar um bocado mais sobre a terra, comecei a fazer todas as terças-feiras uma coisa muito engraçada que há aqui, o percurso pedestre de Vilar do Paraíso, que tem partes de estrada, mas também há partes em campos com ovelhas e muitos palacetes. Imagina, Vilar do Paraíso é um bocado parecido com Miramar, porque Miramar tem muitos palacetes e casas senhoriais, que são basicamente casas de praia para as pessoas do Norte. Nos tempos antigos, ir a Miramar para as gentes do Porto era longe, quase como ir ao Algarve. Só que aqui em vez de casas senhoriais, há muitos palacetes, que são as casas de campo. Há um muito engraçado aqui, que é o palacete do Menino d’Ouro, que tem uma grande torre e tem uma história incrível, basicamente é a história do Dino dos Morangos com Açúcar. A torre quase parece um farol, e a história diz que o filho do dono do palacete gostava de balonismo e fez um balão, e o tal Menino d’Ouro entrou no balão, foi-se embora e desapareceu. Depois o pai fez a torre para ver o se via [risos]. Também descobri que a Agustina Bessa-Luís fez um livro sobre esta terra chamado Fanny Owen, um romance sobre a filha de um general inglês, que havia muitos ingleses que tinham aqui quintas. Descobri também que o Manoel de Oliveira fez um filme sobre isso. Enfim, Vilar do Paraíso revelou ser uma terra com muita história, não é só um meio rural. Depois disso comecei a juntar packs de samples e a experimentar músicas sempre numa lógica “à Prince”, ouvi muita música dele, muita pop de Los Angeles. Quando dei por mim, tinha muita coisa gravada, tinha ali um álbum, mas acima de tudo, comecei a pensar naquele bichinho dos concertos ao vivo, de tocar. Ouvi muitas vezes o álbum e dei por mim a rir muitas delas, que é a prova dos nove quando quero lançar um disco, e não o quis deixar na gaveta. Já aconteceu antes, álbuns ficarem na gaveta, mas com este não podia acontecer.

O que te levou a parar?

Senti que estava a fazer muitas vezes a mesma coisa, a tocar a mesma setlist, nos concertos já não retirava tanto prazer, que é o que mais gosto de fazer depois do sampling, meio que se estava a tornar uma obrigação e não um prazer. Foi por isso que parei, mas depois do último concerto no Coliseu, arrependi-me logo [risos]. Mas pronto, senti que tinha de parar para desenjoar e não ser um gajo que toca porque sim. A minha preocupação com este álbum era também parar para preparar coisas para as minhas performances que nunca fiz até agora nas estruturas das músicas, nos arranjos, nos instrumentos, nos backing vocals, algo que sonhava ter há muito tempo. Portanto, estive muito tempo preocupado com isso, pensava se as pessoas iam ter paciência para me aturar e até agora quer-me parecer que sim.

Já tiveste a primeira prova no Gaia Shopping. Como te sentiste?

Foi um sonho para mim. Nessa semana organizei uma espécie de excursão a Vilar do Paraíso para pré-escuta do álbum e veio mesmo muita gente, fiquei tão contente. Muitas pessoas daqui viram a malta toda nas ruas e pensavam que era uma arruada [risos]. Comecei logo aí a sentir que realmente as pessoas queriam que a minha música voltasse e reagiram bem na pré-escuta. Depois, ver o Gaia Shopping à pinha no concerto foi um grande orgulho, um sonho, fez-me sentir querido pelo público, tirou-me essas dúvidas. Nas semanas antes do álbum não estava preocupado com isso, mas quando defini as datas de lançamento, essas dúvidas começaram a surgir, mas até ver parece que continuam a gostar de mim. Vamos continuar a ver…

Essa pré-escuta foi especial, com direito a jantar e tal, lembro-me de ler que estava limitado a 50 pessoas, mas estiveram lá 60 e tal. 

Sim, sim, apertámos a malta toda e tal, para dar espaço… E atenção, eu nesse dia movimentei bem a economia de Vilar do Paraíso, não foi só esse restaurante a encher, foram os outros três ou quatro ao lado. No Mozart Piano Bar, que falo no tema “Azeitona Cocktail”, eles tiveram que fechar a porta e recusar pessoas porque estava lotado! Não ganhei 1 euro com isto, não é para me armar, é porque me deixa mesmo muito contente poder promover aqui a terra e ajudar as pessoas. Era isto que me estava a faltar por aqui antes do ano sabático, sou o gajo que vim morar para aqui mas não era daqui, e agora, depois de conhecer os vizinhos, os cafés, senti-me na obrigação de devolver à comunidade. É assim, parece um bocado ridículo dizer isto, parece que vivia na América e fui para a Suécia, dá para ir a pé de Mafamude a Vilar do Paraíso, mas aqui em Gaia há um bocado essas fronteiras psicológicas, é tipo os Balcãs, fui da Sérvia para o Montenegro que é logo ali, mas há muita rivalidade [risos]. 

Mas olha, a nódoa já saiu do casaco? Ouvi dizer que o jantar deixou marcas [risos].

Essa história foi muito forte… foi o karma a dar-me um estaladão no meio dos dentes. Chegou um rapaz ao pé de mim com um casaco preto e tinha uma caneta prateada para assinar os vinis, que são pretos, e eu disse-lhe a brincar: “Mas queres que te assine o casaco?” Fingi que ia mesmo, mas depois disse que era brincadeira. Entretanto, assino os vinis, ficámos a falar, e ele diz que vinha de Alcabideche, de longe, e pronto, fui-lhe dar um abraço… Borrou-me o casaco todo com a tinta da caneta nos vinis que estava fresca [risos]. Estava armado aos cucos a brincar com ele e pronto, o karma fez a sua parte. Mas ficou tudo bem, o rapaz tinha álcool gel com ele e eu tratei logo de limpar, saiu tudo [risos]. 

O primeiro capítulo deste trabalho, que acaba por não estar nele, o “SUPERXXXTILO”, tem uma segunda vida aqui no disco, com uma versão rebaixada, mas captou-me um detalhe do vídeo, a famosa matrícula NM. É o carro original?

Mais ou menos. Está o carro, mas a matrícula teve ali algum trabalho [risos]. Mas foi esse episódio que me deu o click. Estamos a falar de um presidente da Junta de Freguesia a concorrer, estamos a falar do Abrunhosa a referir que trouxe lá o Prince, a Shakira e os Rolling Stones, e de repente, o herói da noite é o Nando Manuel que estaciona o Fiat Punto preto à porta do evento! Tenho quase a certeza que a lógica foi: “Olhe, não estacione aí que está a haver um evento”. E o Nando disse: “Eu sou daqui, eles conhecem-me, alguma coisa vão ao café dizer para tirar o carro”. Portanto, a estrela passou desses cantores conhecidos para o Nando Manuel, e isso reflete um bocado este meu sentimento e gosto pelas terras. Os heróis de cada sítio são quem lá mora, não é quem vem de fora e arma-se em esperto… 

Já agora, porque é que a versão original do tema ficou de fora do disco e tens esta versão rebaixada, ou diria eu, chopped & screwed à la DJ Screw?

Como a música diz, eu sou honesto, e é essa a qualidade que eu mais aprecio na vida, portanto a música ficou de fora, única e exclusivamente por direitos de autor [risos]. Portanto, essa versão foi a maneira que arranjei de dar a volta à situação, à tugão, à verdadeiro mesmo, pimba, rebaixada [risos]. Mas este rebaixado não fui eu que inventei, isto vem dos mexicanos nas kumbias, fazem um chopped & screwed delas e depois dizem que é uma versión rebajada

Ok, mas isso aconteceu à conta de algum sample?

Sim, sim. Fui protegido pela minha distribuidora, que me avisou e perguntou: “Isto tem um sample, não tem?” Eu disse que não, e eles: “Mas tem, tem, olha aqui” [risos]. Portanto, eles disseram que não podia entrar assim e a minha solução foi esta versão rebaixada. Mas pronto, sampling é das coisas que eu mais adoro, gostava de poder partilhar todos os samples como fazia no início, dá-me mesmo muito prazer isso. 

Neste tema tens esta personagem do Nando Manuel, mas há também outra, que dá nome ao tema seguinte, o Jorge Micael. Quem é esta pessoa?

É o George Michael. Vou-te contar, sempre tive um grande fascínio por ele e quando era mais novo ouvia-o às escondidas. Eram outros tempos, gostava muito da música dele e de o ouvir falar e de ele ser grego, não havia assim muitos gregos na música na altura dele, era um bocado o underdog. É um artista que gosto muito, à semelhança do Prince, por ser também daqueles que produz, escreve e faz todo o seu trabalho, sou muito fã. Neste tema, se ouvires a parte do João Não, é só referências à sua música… quando ele diz “conversamos num sussurro descuidado”, refere-se à “Careless Whisper”, e há mais. Enfim, quando era mais novo não tinha muito à-vontade de dizer que gostava dele, eram outros tempos, mas agora é na boa. Este Jorge Micael surge porque, na altura que trabalhava na RTP e fazia entrevistas de rua, encontrei um casal e perguntei o que eles gostavam de fazer quando estavam tristes, e eles disseram que gostavam de tomar uma bebida e ouvir o James Artur — em vez de Arthur [risos]. James Artur é muito mais potente que James Arthur! Depois disto, comecei a fazer esse exercício linguístico para outros artistas [risos]. Mas pronto, sempre lhe quis dedicar uma música por ser grande fã, durante algum tempo reprimido, é uma homenagem. Já agora, se reparares na minha parte, digo algumas coisas como “lindo” em vez de “linda”, “vestido de noiva” em vez de “vestida de noiva”, nada da minha parte dá a entender que é uma conversa com uma rapariga, portanto mesmo sem querer ser isso, acaba por ser meio um hino gay, de forma muito subtil. 

São várias as referências neste disco… Entre elas o Martin Scorsese, porquê?

No “SUPERXXXTILO” há uma cena a encher umas taças de champanhe, assim vários copos. Essa cena é a imitar uma do filme Raging Bull, com o Robert De Niro, que faz de lutador de boxe que só queria era copos, e quando acaba a carreira tem um bar, e há uma cena em que faz isto, igual ao que repliquei depois. Portanto, copiei essa cena do Scorsese. Tirando isso, diria que é assim uma espécie de influência à David Chase nos Sopranos [risos]. É o ambiente daquela casa com um bar de canto, mesmo à Sopranos à portuguesa.

Ui, e quem é quem na tua equipa dos Sopranos?

Olha… é muito difícil, nunca fiz esse exercício. Mas olha, já sei, o António Bandeiras é o Christopher: problemático, stressado, inseguro, problemas na mente [risos]. Já eu, desengana-te, não sou o Tony. Se fosse algum dos Sopranos, seria claramente o Johnny Sack, o meu favorito!

Também é o meu! Enfim, e o Marquito?

Nenhum, nenhum. O Marquito é muito nórdico, ele é do Minho, a malta lá já são mais celtas e tal, não dava para isto. Eu e o Bandeiras somos mais latinos [risos].

Por falar em máfia italiana, tocas no fim dos teus shows uma versão do icónico tema do The Godfather, não é?

Sim, sim, é um skit do meu álbum O Último Tango em Mafamude, chamado “O Pedrinho”. Nesse tema tens a falar o Guilherme Aguiar, que andou em campanha para presidente em Gaia, e tens vozes deles a falar disso, e depois toca esse tema que é um cover em trompete da música do filme. Toco sempre no fim dos concertos, não posso fugir, estou marcado.



Reparei em dois videoclipes que tinhas um calendário da Celine Dion e outro da Maya, para 2025. Achei isto no mínimo… curioso.

Isso fui eu que mandei fazer de propósito para o vídeo, por causa do “Redlaine”, em que falo de “mulheres quentes”. E pensei: “Que mulheres quentes vou arranjar?” Não quero ser óbvio, nem ter um calendário de garagem com mulheres nuas. Portanto pensei em duas senhoras com muita classe e charme e saíram-me essas. Só para te dizer também que, no “Azeitona Cocktail”, onde aparece o calendário da Celine Dion, aquilo foi gravado numa cave real de um senhor que era mecânico. Aquelas estatuetas com as conchas foram feitas com restos de peças de carro, tinha relógios da Volvo e tal, era engraçado. Aquilo é uma cave real, uma verdadeira man cave, está assim para aí desde os anos 80, tem bilhar, setas e um bar de canto, basicamente servia para o homem fazer os seus convívios e festas. Reparei é que não tinha um calendário. Como é óbvio, se fosse usado regularmente por alguém que tem um sítio daqueles, tinha que ter um, e por isso mandei fazer esses dois. Aquela cave tem muitas relíquias, é perder um tempo a ver o videoclipe do “Azeitona Cocktail” para descobrir mais, está recheado de coisinhas dessas, como por exemplo um dispensador automático de palitos. Posso também dizer que vou oferecer os calendários nos meus concertos!

Outro detalhe que reparei é a tua escolha literária no Vilar do Paraíso. Entre três livros escolhes um sobre columbofilia.

Sim, os outros dois são do João Pina, famoso empresário algarvio. Foi o que mais li para me inspirar na linguagem usada nestas músicas. Não sei se já leste livros dele, mas ele é muito honesto, direto, é confortável de ler. O João Pina é uma grande inspiração neste disco.

E o livro de columbofilia, também leste?

Sim, li algumas partes, aquilo é muito técnico, há coisas já muito avançadas e complexas. Mas tem partes realmente engraçadas, se leres aquilo tudo ficas um craque a criar pombos, aquilo é escrito por um criador holandês. Como não tenho intenção de criar pombos não li tudo, só algumas partes [risos].

Pela minha pesquisa, Gaia tem 15 freguesias, e tu já tens álbuns sobre duas. Ainda há aqui muito trabalhinho pela frente, não é?

Sim, sim. Vão-se separar todas outra vez, mas enfim… Já falei de outras também, já fiz esse exercício. Falo de Arcozelo no Miramar Confidencial, de Oliveira do Douro e Avintes na audio novela Sangue & Mármore, mas ainda faltam muitas, sim. Tenho uma nota com todas essa freguesias e um check nas que já entraram em álbuns [risos]. 

Com tanta ligação a Gaia, não posso evitar perguntar: à semelhança do Plutónio, que quer ser presidente da junta de freguesia de Alcabideche um dia, o David Bruno também quer algo parecido?

Uma vez, numa entrevista ao Expresso, eles usaram como clickbait um excerto meu onde falávamos disso. Perguntaram se um dia queria ser autarca e presidente de junta, e eu disse que sim! Mas atenção, presidente de uma junta de freguesia, não de câmara municipal, isso já envolve muita politiquice e outra capacidade, as juntas são proximidade. Claro que gostava, gostava muito. Um dia, quem sabe, quando tiver uma barriga que dê para usar suspensórios, à Isaltino Morais, ’tás a ver? [risos]

Voltando à música, o tema “Redlaine” despertou-me bastante curiosidade porque lembra-me uma veia mais rapper tua, é uma produção mais clássica desse género.

É, sim. Esse é capaz de ser um dos temas mais J Dilla que fiz até hoje, tem muito essa influência, ele é alguém que influencia muito a minha música. A faixa surge por causa do café aqui ao lado. Um dia passou uma miúda e um dos vizinhos ficou a olhar muito fixamente e disse: “Tu tens que ter calma, tens que desacelerar, porque se continuas assim vamos ter que te por um açaime” [risos]. E claro, o que é que eu pensei? Acelerar… açaime… “Redlaine”, ’tá feito! Falando do J Dilla, os temas mais perto disso são este e o “Eu Não Bebo Coca Cola Eu Snifo” de Conjunto Corona.

Mais algum nome do universo rap neste disco?

Não, esse é o tema mais rap do disco a par do “Love Na Marquise”. Para este disco ouvi muita música da west coast, mas ouvi muito Zapp, Roger Troutman, aquelas bandas que utilizavam na altura os vocoders, que, aliás, eu também tenho aqui. De rap, ouvi muita coisa da west coast como disse, e se prestares atenção, há uma parte no “Azeitona Cocktail” que tem umas back vocals com uma melodia que lembra muito o “You Know How We Do It” do Ice Cube. Em regra geral, o que tentei fazer foi pegar nessa base de rap e aprincezar. Isto é mais música para ouvir num barco, o sítio que mais me imagino a ouvir o disco é aí ou então numa avioneta [risos].

Há mais passagens desse tipo? 

Sinceramente acho que não, mas olha nesse tema do “Azeitona Cocktail” há uma rima dedicada ao Tomás Wallenstein dos Capitão Fausto! Aqui ao lado há o tal bar que falei, que tem lá um piano, e às vezes há malta a tocar lá sozinha ao piano. Uma vez estava lá e pensei nisso, e saiu a referência “sozinho ao piano tipo Wallenstein”. Vais ver, um dia ainda vem aqui tocar a Vilar do Paraíso.

No 10 em 10 tens uma participação sonante: Presto dos Mind da Gap.

Se tu fores ver o documentário sobre o hip hop no Porto, o Não Consegues Criar O Mundo Duas Vezes, fui entrevistado na altura e disse que aqui os rappers utilizavam palavras muito caras, era um vocabulário muito caro, quase de dicionário, mas o Presto era o oposto. Ele usava linguagem simples, com rimas mais simples, e identifiquei-me sempre muito com isso. Entretanto cruzámo-nos muitas vezes e sempre disse que ele era um ídolo meu e que gostava de fazer algo com ele, e assim foi: mal comecei a fazer este beat, tive logo ideia de o encaixar, num género de letra à “Bazamos ou Ficamos”que é um tipo de escrita que vai muito ao encontro ao que digo no “10 em 10”. Foi mais um amigo que fiz, é uma pessoa super humilde. Há muitos cantores mais velhos que me ensinaram muita coisa, destaco o Rui Reininho, nada a ver com tocar e tal, mas sim a forma de estar na música, de colaborar com outros artistas, foi ele que me ensinou mais, e logo a seguir vem o Presto, pela forma tão simples e descomprometida como participa, como recebeu o convite e se interessou pelo tema, como fez a letra — não tinha de o fazer. Foi muito rápido nesse processo, foi o convidado mais rápido no álbum. Depois de lhe mandar a minha parte, demorou poucas semanas a fazer a dele, fomos a estúdio, gravou e ficou feito, foi muito rápido. A música também é assim, mais do que falares e explicares, é sentires o que o tema precisa, as minhas participações sempre foram assim. Mais do que pensar em fazer algo com alguém só porque é conhecido, é sentir que ela faz sentido, que está dentro do espírito daquilo para o que a estou a convidar. Aqui funcionou assim, na perfeição. Estou muito contente em poder partilhar o palco com o Presto.

Qual foi a primeira reação dele ao ouvir este 10 em 10?

No dia a seguir a ouvir, passei no trabalho dele e a reação foi ter gostado muito da música. Não sei se sabes, mas ele é familiar do Repórter Estrábico, que tinha assim umas letras muito nonsense, e em Mind da Gap não tinha muito espaço para fazer isso e aqui sentiu-se confortável a fazer algo um bocadinho diferente, que é uma música romântica.

A parte dele, curiosamente, até fala sobre estrabismo. Algo a ver com esse familiar?

Não lhe perguntei, mas deduzo que sim.

No início da nossa conversa, disseste-me algo curioso, que tens vários álbuns na gaveta. 

Sim, tive packs de instrumentais com rascunhos lá em cima. Há uma questão muito importante que é: como é que tu és um músico e consegues ser consistente e manter a tua linha e ir lançando álbuns que tenham bases comuns e se notem que foram feitos pela mesma pessoa sem fugires muito ao que fizeste antes? Foram esses projetos que ficaram na gaveta. Iria ser uma mudança muito grande, se calhar quando decidir desaparecer de vez durante meia dúzia de anos, posso voltar e dar esse reset. Ou então, pegar nesse estilo de música e fazer um projeto com outro músico, assim não sou só eu, David Bruno. Ainda não tive coragem para arriscar até agora, quando começas defines o teu estilo mas depois não podes fugir demasiado daquilo que o teu público está habituado.

Tens tudo muito bem separadinho. Há o dB, que é rap “puro”, Corona igual mas mais humorístico, e depois o David Bruno que toca mais no R&B e tal. 

Sim, David Bruno é mais abragente e consegue ser ouvido por mais pessoas. Tenho histórias de filhos, nos meus concertos e não só, que dizem ter mostrado a minha música aos pais e eles ficaram fãs. Tenho concertos cheios de gente de uma faixa etária mais velha todos contentes a ouvir-me. Mas depois penso, “vou fazer uma cena de drill?” Essa malta não vai gostar, tenho uma certa responsabilidade com esse público, porque é um público que te é fiel para toda a vida, ouvem e gostam de um tema teu e ficam fãs para sempre, enquanto que os mais jovens são mais de ondas e descartam alguns artistas que gostam rapidamente. Por isso mesmo, não arrisco muito em David Bruno. 

E que outros caminhos musicais gostarias de enveredar?

Já explorei algumas vezes o house, tipo o “Festa da Espuma” que tem ali um toque popular, mas não tenho nenhum som assim mais house de jarda, por exemplo [risos]. Há outro estilo que adoro mesmo e há muitos anos que não oiço ninguém que gostava como no início do século, que é a kizomba, aquela kizomba mesmo 2000s. Adoro mesmo essas músicas, há muitos deste estilo mas que se tornaram muito pop e pouco honestos. Antes tinham uma mensagem mais humilde, quase como cantores pimba, mas a fazer grande som, enfim, são grandes músicos. São dois estilos que gosto e já comecei a explorar, mas não tenho coragem de avançar enquanto David Bruno, quiçá um dia com outra pessoa ou outros projetos. Para já, tenho a minha linha e estou muito contente por segui-la, dá mais trabalho que seguir outras coisas novas e divertir-me, mas no fim compensa quando quem me segue há muitos anos me congratula pelo meu trabalho. Por agora, é desfrutar deste álbum, antes lançava um trabalho e não tinha esse tempo, era logo a produzir e trabalhar mais, fazer outro e outro e outro.

Em comum nisto tudo há o teu amor por sampling. Como funciona isso? Aposto que tens uma coleção engraçada de CDs e vinis. 

Tenho muitos, sim. Mas hoje em dia faço tudo digitalmente. Quando começas a ter que procurar coisas muito raras e entras no universo dos colecionadores, não chegas lá senão for digitalmente. Outro detalhe é que agora uso samples e toco por cima deles, complemento-os bastante, ou seja, não têm aquele protagonismo de antes, é a base. Relativamente à minha coleção, tenho-a no Discogs, tenho lá alguns da minha coleção, tenho umas centenas de vinis, só guardo aqueles que têm alguma coisa especial. Tenho também mais umas centenas de CDs e umas dezenas de cassetes.

Há pouco mencionaste que este momento te proporcionou a oportunidade de elevares a tua performance ao vivo para outro patamar, vamos ver disso já no Capitólio, a 13 de dezembro, e depois na Casa da Música, dia 11 de janeiro?

Sim, posso prometer as coisas diferentes que estão neste álbum também ao vivo. Além disso, vou tocar músicas anteriores e tenho a possibilidade de trazer muitos amigos ao palco. Antes era só eu, o Marquito e o António Bandeiras, mas agora com os meus álbuns e estas músicas, quero que cada concerto seja cada vez mais uma celebração. Acima de tudo, não quero que soe a exibicionismo do artista, mas quero criar um espaço confortável para o público. Basicamente vou tocar este álbum, outros temas, falar com o pessoal e puxar por eles. Para já há estas duas datas e também o Primavera Sound.

E vinis, ainda temos?

Sim, já sobram poucos. Originalmente fiz 150 cópias, mas já vou em 450, tem sido um grande sucesso de vendas. Acima de tudo, acho que este vinil é uma peça bonita que embeleza qualquer canto. Posso dizer que com o Natal a chegar vai também haver novo merch, não quero ter muita coisa ao mesmo tempo, não quero roubar o dinheiro todo às pessoas [risos]. No preço dos bilhetes para concertos costumo dizer isso, costumo ver o preço dos bilhetes mais baratos na casa e tirar 1 euro, pronto. Quero que as pessoas vão aos concertos e que eu não seja um peso financeiro grande para as elas, não é como ires ver Scorpions e tens que andar a poupar e tal, não quero isso na minha vida [risos]. É por isso que eu tenho muitas ideias para merch mas vou fazendo uma de cada vez, porque as pessoas têm mais onde o gastar e eu respeito muito isso, não quero que seja tudo seguido. 

Nada a ver, mas para acabar, quem é o Piki P que aparece no EI OH MARUJO de Corona?

Posso dizer que o Piki P é de Gondomar. A pessoa mesmo, não só a personagem, é de Gondomar.


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