CD-R / Digital

David Bruno

Miramar Confidencial

Edição Independente / 2019

Texto de Rui Miguel Abreu

Publicado a: 27/12/2019

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A ideia da fantasia aplicada à música traduz, normalmente, uma determinada ambição de liberdade por parte dos criadores que adoptam esse tipo de enquadramento conceptual: um agente secreto soviético a operar nos tempos da Cortina de Ferro usando a música como veículo para a passagem de mensagens altamente secretas, que foi como Armando Teixeira imaginou a misteriosa saga de Vladimir Orlov nos dois primeiros registos do seu projecto Bulllet, datados de 2002 e 2004; a história de amor dos progenitores como fio narrativo para um hoje mítico trabalho instrumental (que tem prometida sequela) que cimentou os créditos de produtor de Sam The Kid aquando da edição de Beats Vol. 1: Amor, também nos idos de 2002; ou, para dar apenas mais um exemplo, a anónima produção de música “exótica” para filmes rádio e TV que guiou os Cool Hipnoise no seu terceiro álbum, lançado há quase 20 anos.

Ao contrário do que se possa pensar, a adopção de uma ideia com contornos estéticos muito concretos pode não limitar, antes permitir ao criador que tome esse tipo de decisão algumas liberdades que poderiam não ser bem recebidas fora desse quadro conceptual. E David Bruno transformou essa premissa numa forma muito própria de arte, sublimando o Norte suburbano normalmente arredado dos mapas do “glamour” e do “bom gosto”: o das feiras e romarias, dos cafés de mesa de fórmica com televisão permanentemente sintonizada na CMTV, das marisqueiras que não alteram a decoração desde o boom da construção civil do início dos anos 90, dos carros “quitados” com jantes que custam mais do que o próprio “bólide” e dos velhos centros comerciais hoje tomados por lojas de compra de ouro em segunda mão. Na era da gentrificação globalizante que vai inexoravelmente esvaziando identidades regionais em nome de uma normalização preocupante, esta luta solitária de David Bruno tem uma dimensão quase heróica, uma possível leitura de resistência e uma clara densidade política, ainda que essa possa nem sequer ser a intenção primeira do homem que é também parte fundamental da equação Conjunto Corona.

Depois de O Último Tango em Mafamude, trabalho de 2018 em que pegou no estímulo duvidoso da obra de Marante e de outros cantores do mesmo género para erguer um romântico retrato de um certo amor lusitano movido a beats e solos de guitarra de conjunto de baile, David Bruno propôs em 2019 que assistíssemos ao “filme” Miramar Confidencial, tomando livre inspiração na banda sonora dos piores filmes de acção da década de 90 (pensem em Steven Seagal ou Jean-Claude Van Damme, as figuras de acção que, aliás, inspiram a capa do novo registo), na cena vaporwave e no lado mais lo-fi do hip hop, para nos entregar um retrato necessariamente vago (e tão difuso quanto a imagem de alguns filmes VHS de videoclube, gastos de tanto uso) de um certo Portugal feito de empreiteiros e patos-bravos, esquemas de ilegalidade certa e locais que a memória esqueceu num tempo que já não existe.



Essa vénia a uma certa ideia de passado é inteligente porque não se pretende dar aqui qualquer tipo de espessura jornalística ou densidade antropológica a um retrato que é claramente livre, desproporcionado e eventualmente até pouco rigoroso por adoptar um enquadramento simples. Mas essa é a tal liberdade que um artista se permite quando adopta uma qualquer premissa que pretenda apenas ser um ponto de partida para a sua própria imaginação, uma sugestão, um guia. Claro que procurar mais do que esboços de enredo e substância narrativa num trabalho que é, acima de tudo, instrumental equivale a desvalorizar o poder da imaginação: apesar de ter uma tradução visual de longa duração, Miramar Confidencial não é um filme, mas uma sucessão de quadros soltos unidos apenas por um delírio muito pessoal que nem todos poderemos descodificar (e tenho a certeza que o delicado pontapé na gramática que resulta em “N Gosto K M Mentem” é tanto fruto de desbragado sentido de humor quanto de atento estudo empírico de um determinado linguajar que ainda resiste na boca de muitos clientes que passam a vida aos balcões de alguns cafés desses subúrbios que David Bruno calcorreia em busca de inspiração).

Interlúdios a cargo de Samuel Úria, Fernando Alvim ou Carlos “Este Senhor” Afonso e colaborações pontuais de Mike El Nite (na verdadeira tour de force que é “Interveniente Acidental”, a pérola mais refinada deste rosário) ou Minus & MrDolly (enquanto Alferes Malheiro), além, claro, do sidekick Marco Duarte na guitarra são pequenos bónus num registo que nunca disfarça com alguma demão injustificada de verniz o seu baixo orçamento (o “disco” foi lançado em CD-R a emular os DVDs piratas das feiras…), tomando aliás as suas limitações – técnicas e estéticas – como marcas de estilo, o que é salutarmente diferenciador numa era de refinamento constante dos valores de produção, tanto ao nível musical como de vídeo.

O que é essencial reter neste novo trabalho de David Bruno é o facto deste insaciável amante de Gaia e do grande Norte ainda não tomado pelo turismo de massas ter criado o seu universo próprio, alheio a vagas de fundo que vão varrendo a produção nacional, insistindo numa portugalidade de que quase todos os outros criadores fogem a sete pés, e conseguindo fazer isso apoiando-se numa música que não tem realmente paralelo, que descarta hoje comuns “efeitos especiais” proporcionados pelo avanço da tecnologia em favor de uma visão teimosamente desalinhada, comprometida apenas com os tais limites da visão a que este produtor tem sido fiel desde o início, a fazer lembrar os verdadeiros prodígios que, à falta de uma competente equipa de produção, as personagens de Be Kind Rewind faziam a partir de grandes clássicos da cinematografia global: o cuspo, a fita-cola e o cartão funcionam quando têm por aliados não só a imaginação do criador, mas também, e talvez sobretudo, a dos espectadores. E eu cá estou incondicional e irremediavelmente sintonizado no mesmo cumprimento de onda (média, pois claro) de David Bruno.


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