pub

Fotografia: Renato Cruz Santos
Publicado a: 01/08/2020

O sucessor d'O Último Tango em Mafamude e Miramar Confidencial é um mergulho nas memórias de infância de David Besteiro.

David Bruno: “Do início ao fim do álbum, eu carrego no botão do saudosismo e não o largo mais”

Fotografia: Renato Cruz Santos
Publicado a: 01/08/2020

Foi no Parque da Quinta das Devesas que nos encontrámos com David Bruno. Até a escolha do local, ainda que suportada por motivos logísticos, parece-nos fiel ao trabalho do músico. Um palacete antigo que também é um jardim de camélias, com estátuas de cervos na escadaria que são “o plano inicial de um filme de terror”.

Esta mistura de aleatório, kitsch e peso histórico está presente no cenário e no próprio dB, na mistura que também é a sua personalidade “real” e a sua persona criativa. Ele vive intensamente o que cria, e é talvez por causa disso que consegue encontrar um valor e por vezes glamour extraordinários nas pessoas, espaços e vidas que nunca foram devidamente reconhecidos e valorizados.

O seu terceiro lançamento enquanto David Bruno, Raiashopping, centra-se em Freixeda do Torrão, a aldeia dos seus avós, onde passou uma grande parte da sua infância. David continua a ir lá, organizou a festa da aldeia em 2011 e “podia perfeitamente ter sido presidente da Junta”, contrabalançando a terrível desertificação que esta enfrenta. Clicando no botão da nostalgia “ao fundo, até fazer curto circuito”, fez a vontade aos conterrâneos e a sua aventura musical viu-se finalmente no local que o viu crescer. Fomos conhecer as histórias que a fizeram e que fazem brilhar os olhos de dB.



O videoálbum de Raiashopping faz-se com filmagens de festas, anúncios de televisão antigos e gravações caseiras. Onde vais buscar este material precioso?

Eu perco muitas horas a ver arquivos de vídeo e a digitalizá-los. Mesmo se não tivesse feito o álbum, o processo tinha sido espectacular por esse trabalho. O vídeo para este álbum é, até hoje, o que alimenta mais a história, porque não consiste só em pedacinhos e colagens de material dentro do contexto que eu escolho por serem engraçados; são a própria história da música. Por causa disso são os que a ilustram melhor.

Faço isso para todos os discos, seja para Corona seja para dB. O vídeo ajuda a perceber a história que eu estou a contar. Não me importa muito a qualidade, não me importa que seja low budget. Aliás, até fica melhor sendo low budget, porque a música e o espírito do projecto também o são. Ajudam a pintar o quadro, e a dizer ao público o que deve ver quando ouve a música.

Como o input visual é mais imediato, cria-se uma ponte directa com o imaginário que estás a criar.

Pois, coloca-te mais rapidamente no imaginário. Dá-te logo uma sugestão do que é. Depois podes imaginar à tua maneira, mas já estás mais ou menos colocado num sítio. E neste álbum esse sítio é claro, é a minha infância e os anos 90 passados em Freixeda do Torrão, numa aldeia pequenita com 200 pessoas no interior norte de Portugal. São os imigrantes, a fronteira com Espanha, as compras em Espanha, os bailes de Verão.

Freixeda do Torrão é só um objecto de memórias ou continuas a ir lá com frequência?

Até começar a ter mais concertos, que me roubam os fins-de-semana, eu ia lá uma vez por mês. Se bem que ainda é uma estocada. São quase 300 km, é atravessar Portugal de um ponta à outra.

Eras assíduo!

Para teres uma noção, organizei a festa da aldeia em 2011. Há uns anos, se me tivesse candidatado a presidente da Junta, tinha ganho na boa [risos]. Eu passava muito tempo lá e gostava imenso. O meu avô tinha um café e eu passava muito tempo lá e nos outros cafés com pessoas mais velhas, só a ouvi-las. Era um clash completo. Eles pensam de forma distinta, não conhecem as tuas referências, têm interesses totalmente diferentes. Só que já andam aqui há muito tempo, têm muita sabedoria e cultura. Agora não vou tantas vezes quanto gostava, mas se fosse músico a tempo inteiro tinha aquela rotina de latifundiário de passar dois meses na cidade e um no campo [risos].

Tendo em conta essa assiduidade, tu acompanhaste o crescimento da aldeia ao longo dos últimos anos. A par da desertificação, o que mudou?

A desertificação já acontece há muitos anos. Freixeda sempre foi uma terra de emigração, basta dizer que ambos os meus avós estiveram emigrados muitos anos, embora tenham nascido lá, a minha mãe esteve em França muitos anos, o meu pai viveu em Moçambique. Sei que Freixeda já teve 1500 habitantes, e que depois do 25 de Abril recebeu muita gente das ex-colónias e que foi para lá morar outra vez. De resto, sempre foi uma terra de emigração.

A principal diferença que eu noto, até dentro da minha casa, é que as gerações mais novas deixaram de valorizar a aldeia. Por exemplo, a Páscoa, o Natal e a Festa de Verão eram alturas religiosas para as famílias voltarem à terra e se reencontrarem. Vinham de França, de Luxemburgo e de outros países. Havia um hábito forte em regressar. Mas com o tempo, começaram a morrer as pessoas mais velhas, os avós, os pais, etc., que eram o principal motivo para as famílias regressarem. Então as pessoas começaram a abandonar Freixeda. Comecei a ver as casas vazias, cada vez menos pessoas na aldeia.

Se com este álbum conseguisse que as pessoas se lembrassem da aldeia dos avós e fossem lá passar um fim-de-semana, já era uma grande vitória para mim. Queria que olhassem com outros olhos para as suas aldeias. No interior de Portugal, as aldeias têm muita história. Parecem desertas, mas se tu perderes um bocadinho a falar com os locais descobres muita história e cultura.

É um fenómeno cruel. No entanto, neste período de férias ainda vês vida. Como está a Festa da Aldeia de Freixeda hoje em dia?

Também com menos pessoas. Até na procissão há dificuldade em arranjar gente para pegar nos santos [risos]. E isso é um bom barómetro, porque antigamente as pessoas até pagavam e haviam guerras para pegar nos Santos. A realidade deu uma volta por completo, e é uma pena. Enquanto defensor da cultura clássica portuguesa, da mesma forma que puxei a brasa à sardinha de Gaia, achei que esta era a altura de falar da Freixeda do Torrão e das aldeias do Interior. Outro aspecto que me influenciou a fazer este álbum foi a morte das minhas duas avós, porque também notei que com isso a minha família perdeu motivos para voltar. Os entraves começaram a falar mais alto. “Dá trabalho”, “a viagem é longa”, “mais vale passarmos aqui o Natal”. Fiz o álbum sem data para sair, e o COVID deu um empurrão. Porque a altura de lançamento ideal seria o mês de Agosto, por ser o mês dos imigrantes, mas em outros anos isso seria impossível.

Falaste nas tuas avós: elas são referenciadas no álbum?

Sim, no “Café Central”: “Banquinho na lareira com a Avó Maria”.

Pensei que essa avó não era literal, que era uma personagem.

Pode ser. O café do meu avô também não se chamava Café Central, mas acho que deve ser o nome mais comum de café. É um dado adquirido que, se só há um café numa aldeia, em princípio chama-se Café Central [risos]. E com a “Avó Maria” também se passa isso. Imagino que milhares, se calhar milhões de pessoas, tiveram ou têm uma avó Maria.

Uma avó Maria que conta “histórias de lobisomens e bruxaria”?

Se calhar, mas não as histórias que a minha avó me contava. Esse conto é o do Lobisomem da Mêda, que dizem que foi a personagem que influenciou o filme Tarzan [risos]. Há um documentário da RTP2 chamado Albano Jesus Beirão: Fenómeno do Mal. Este Albano Jesus Beirão tinha uns ataques onde caía no chão aos gritos, andava de quatro patas, pulava e trepava edifícios. E o documentário dá um aspecto científico à questão. A minha avó sempre me contou essa história dos “labisomens”, como dizem lá, que eram homens que se transformavam em cavalos. Quando se transformavam, ficavam a correr toda a noite, malucos, com uma força sobrehumana. Supostamente, até há uns anos, havia lá na aldeia um senhor que tinha sido “labisomem”, o Curino.

Ele admitia que tinha sido “labisomem”?

Não admitia mas diziam que ele tinha vergonha [risos]. De qualquer forma, a minha avó sempre contou essa história e dizia que a maneira de lhes tirar essa maldição era, quando eles se estavam a transformar, picá-los e fazê-los sangrar. Depois da minha avó morrer, eu vi este documentário e tive um momento “não acredito no que estou a ouvir”, quando referem que o Albano deixou de ter esses ataques quando apanhou uma facada por causa de uma dívida de jogo [risos]. E bate certo com o que a minha avó dizia sobre fazer os “labisomens” sangrar. Pode ter sido uma história comum da zona que passou de boca em boca.

A pesquisa que fizeste para este álbum, ao contrário dos anteriores, foi mais íntima, por estar ligada às tuas raízes.

Exacto. Não foi preciso um guideline para inventar histórias, como o Adriano Malheiro Caloteiro no Miramar Confidencial. Para o Raiashopping, precisei de me lembrar de histórias. É o caso do “Praliné”, do “Salamanca by Naite”. O “Doucement” é uma homenagem ao Graciano Saga, do “Vem Devagar Emigrante”, da “Amiga Emigrante”, a temática é sempre a mesma. As rimas “Faites attention avec le camien/ Porque eles vêm tolos em contramã“ ouvi-as em Freixeda num café e guardei-as até hoje [risos]. O resto da letra são o nome de localidades de um dos trajectos que os emigrantes de França faziam, sendo que Benavente é uma referência à “Vem Devagar Emigrante”: “Foi tudo tão de repente, pertinho de Benavente”. Ele refere Benavente várias vezes, e foi por isso que o incluí.

O Graciano Saga é uma das musas inspiradoras do Raiashopping?

É, até no visual. Não sei se já viste o look do Graciano Saga, mas parecia o Al Pacino no Carlito’s Way.

Na intro da “Doucement”, tens um excerto de uma repórter com um discurso super passivo-agresssivo sobre os hábitos de condução dos emigrantes.

Antigamente havia muita sinistralidade e consumo de álcool nas estradas, e os jornalistas eram muito cruéis a abordar esses assuntos. Nessa intro, a repórter diz: “Os imigrantes têm péssimos hábitos de condução, comem muito, bebem bastante e raramente param para descansar”. Eu descobri uma reportagem sobre o consumo de álcool na infância que, por ser tão chocante, não consegui pôr. Os jornalistas vão a uma aldeia remota e o repórter diz: “Infelizmente nesta aldeia as crianças começam a beber aos 10 anos de idade”, e surge um plano de um puto de 10 anos a beber um copo de vinho. Aquilo foi nos anos 90 em Portugal mas parece que estás no Cazaquistão. E os jornalistas sempre a malhar, a pintar uma imagem dos aldeões como animais burgessos. Hoje em dia era impossível publicarem isto, seriam logo destruídos. Mas na altura não davam hipótese.

Ainda sobre os temas do álbum, o que me intrigou mais foi o do “Flan Chino Mandarim”, porque a letra não se relaciona directamente com o título (marca de pudins instantâneos). Nesta falas de ires encher garrafões de água ao volante da tua bicicleta, num dia quente de Verão.

Essa música é direccionada para as minhas avós. Quando eu ia lá em criança, elas faziam sempre Flan Chino Mandarin porque sabiam que eu gostava. Essa letra retrata as tarefas que me mandavam fazer na rua. “Vai encher o garrafão de água à fonte”, “agora vai andar de bicicleta”. E eu ia andar de bicicleta todo armalhão com o meu Casio e levava o rádio, que já na altura gostava muito de ouvir música. Eu associo sempre andar de bicicleta naquelas paisagens aos Dire Straits, que ouço desde pequeno e por quem sou fanático. Depois das tarefas, sabia que ia chegar a casa e que as minhas avós me iam impingir Flan Chino Mandarin.

Essa é capaz de ser das poucas letras que não tem erros gramaticais propositados. Eu escrevi com os erros comuns da aldeia, que mistura o português com o francês, para as letras serem mais genuínas. No “Salamanca by Naite” é com o espanhol, e também se baseia numa história real. Foi numa passagem de ano onde fomos jantar a um restaurantezinho que tinha um menu de passagem de ano. E quando vem o prato e o vinho, num jarro, um amigo meu armado em esperto disse: “Eu não quero um jarro de vinho, eu quero uma garrafa de vinho” [risos]. Depois cobraram-nos 30 paus por uma garrafa que não valia nada.

Outro erro é o da caixa dos frutos do mar da “Julian”, que são os frutos de mar da Guylian, só que ditos por um gajo que se está a armar para a namorada… É a mesma coisa com os “Praliné”, na altura parecia algo muito chique.

Na última entrevista que deste ao Rimas, disseste que tocavas na tecla do saudosismo e que tinhas noção de que era “um ponto fraco para os portugueses”. Raiashopping, estando especialmente ligado à emigração, é o nível seguinte da tua experiência com o saudosismo?

Sim, mas não só com a emigração. É com a emigração, com a memória dos avós de aldeias mais pequenas, com o momento do baile de Verão e do velhote que dança primeiro com a mulher, depois com uma rapariga jeitosa, com o mês de Agosto e o reabrir das fronteiras. Do início ao fim do álbum, eu carrego no botão do saudosismo e não o largo mais. Mas não o faço para vender, faço-o porque é o motor que usei para construir o disco.

Eu fico muito orgulhoso em pensar neste videoálbum como um objecto que fica para memória futura. Se tiver filhos, posso-lhes mostrar como era antigamente. Podem ver a terra, as caras das pessoas, os estilos das pessoas, a forma de falar, aquele momento surreal no café em que tens sete gajos bêbados a mandar malgas de vinho, a tocarem e a cantarem ao mesmo tempo músicas diferentes, e chega o filhos de um deles ao balcão e pede um bollycao [risos]. É um clássico da zona, e um momento que documenta muito bem o lifestyle local e a minha memória de quando era pequeno.

É óbvio que há um respeito e carinho profundos por estas pessoas. Se te puseres no lugar dos locals a ver o Raiashopping, como achas que reagiriam? 

Eles conhecem os meus álbuns anteriores e já tinham perguntado quando eu fazia um disco sobre Freixeda. Já mostrei o Raiashopping a diversas pessoas da terra, e tirei uma conclusão: eles não percebem a parte pirosa [risos]. Começam a comentar as referências e as letras como se fossem uma coisa séria, e para mim isso é a prova de que o álbum está bem feito. A parte fixe para eles é a de quando vêm as imagens dos locais, reconhecem-nas e reagem. “Olha o Gildo!”, e cenas do género.

A minha família não percebe muito bem o que é que eu faço, e eu lido bem com isso. Por exemplo, num Natal passado estávamos a ver o FF na televisão e o meu avô comentou: “Olha filho, isto é mesmo parecido com as músicas que tu fazes” [risos]. Eles olham para o álbum como algo sobre a terra e olham para mim simplesmente como um músico.

Sentes-te respeitado de alguma forma?

Sim. Ainda hoje [a entrevista aconteceu no dia 29] o portal A Beira comprou a notícia de lançamento do álbum. A notícia dizia: “David Bruno regressa à infância no álbum Raiashopping” e eles complementaram com “Um regresso à infância em Figueira de Castelo Rodrigo”.


pub

Últimos da categoria: Entrevistas

RBTV

Últimos artigos