pub

Fotografia: Redferns / Getty Images / Robin Little
Publicado a: 15/10/2025

Durante mais de duas horas, o agora conhecido como Eventim Apollo prostrou-se perante a magnificência da eterna voz da neo-soul.

D’Angelo: memórias de um regresso triunfante a Londres

Fotografia: Redferns / Getty Images / Robin Little
Publicado a: 15/10/2025

Mais de duas horas depois do início, nenhuma das mais de 3500 pessoas presentes na primeira de duas noites que D’Angelo esgotou no histórico Hammersmith Apollo (agora conhecido como Eventim Apollo) consegue permanecer sentada. O clima é de puro arrebatamento. D’Angelo está sozinho em palco a interpretar o tema que fez dele uma estrela há 15 anos graças a um ultra-erótico e icónico vídeo — “Untitled (How Does It Feel)” — e ninguém duvida estar perante um dos maiores cantores soul de sempre. As últimas duas horas foram construídas para provar isso mesmo, que D’Angelo merece um lugar ao lado de Marvin Gaye e James Brown, de Sly Stone e de Prince — porventura os seus mais fortes modelos.

O final do concerto foi pensado para sublinhar a importância da banda de oito elementos que acompanha D’Angelo em palco, tudo músicos de excepção: três vozes de apoio, incluindo a exuberante Kendra Foster, dois guitarristas, entre eles Jesse Johnson — lenda dos Time que acompanhou Prince no arranque dos anos 80 —, um Chris Dave na bateria absolutamente brilhante que consegue soar como uma SP 1200 nas mãos de J Dilla (D’Angelo não disse “on the drums”, quando o apresentou, preferindo um mais revelador “on the beats”), um teclista incrível e, claro, o pilar de todo o som do homem de “Brown Sugar”, o absolutamente gigante Pino Palladino no baixo. Um a um, todos foram abandonando o palco sob uma chuva intensa de aplausos que traduziu o reconhecimento do público perante uma prestação perfeita. Sem notas a mais, sem fogos de artifício desnecessários em termos técnicos. E com Pino Palladino a brilhar seguro, fluído e absolutamente brilhante.

Uma palavra mais sobre Pino Palladino. Ele é o que se costuma apelidar como “musician’s musician”, dono de um currículo de topo que inclui trabalho de estúdio e de palco com gente como Peter Gabriel, Gary Numan, Tears For Fears, David Gilmour ou Chaka Khan. É um mestre de estilo, dono de um som grande, mas líquido, que parece ter aprendido em igual medida na tradição do jazz e na escola jamaicana. Ontem à noite, a sua performance só pode ser descrita como sublime. Nenhuma outra palavra lhe fará plena justiça. E D’Angelo, claro, reconhece o calibre do senhor, a única cara branca na sua banda, e não só o apresenta por último como lhe dá o lugar derradeiro no desfile de saída de palco que marca o final do concerto. O público corresponde com uma explosão de aplausos.

D’Angelo geriu a noite como um amante experiente: preliminares intensos que deixam claro que esta noite só quem com ele divide a “cama” importa — o público, obviamente —, momentos de força e de calma alternados para aumentar o êxtase e depois uma libertação final orgásmica que recompensa quem a ele se entregou sem reservas. A metáfora sexual não é descabida: em palco D’Angelo é sobretudo uma sex machine, como James Brown, cheio de grunhidos carnais e gestos de uma fisicalidade pura. Ainda que Black Messiah tenha um contexto político — a frase “All we wanted was a chance to talk / instead we only got outlined in chalk”, do tema “The Charade” resume de forma brilhante toda a problemática que desembocou em Ferguson — não é o Marvin Gaye de “What’s Going On” que D’Angelo evoca, antes o mais carnal e sexual cantor que fez de “Let’s Get It” On um dos mais puros momentos de baby making music de todos os tempos. Ontem não houve tempo para discursos, nem para mensagens profundas. D’Angelo veio para fazer amor com o seu público, não para conversar.

O concerto foi sobretudo devotado a Black Messiah: temas como “Prayer”, “1000 Deaths”, “Ain’t That Easy”, “Really Love”, “The Charade”, “Sugah Daddy” ou “Back to the Future” foram alvo de revisitações reverentes ao espírito do disco, com momentos de tensão e libertação, com camadas de caos e de açúcar, com arranjos complexos, mas nunca gratuitos. E depois houve espaço para o passado: “Brown Sugar”, que foi um dos melhores momentos de uma noite irrepreensível, com um arranjo de palco simplesmente brilhante, ou “Lady” remeteram para o primeiro álbum de D’Angelo, que completava então duas décadas de existência, e “Left & Right”, “Chicken Grease”, “One Mo Gin”, “Feel Like Makin’ Love” e, claro, “Untitled (How Does It Feel)” asseguraram forte presença nesta noite da obra-prima Voodoo.

Houve temas que foram alvo de versões longas, com paragens e rearranques orquestrados para levar o público ao êxtase, com a banda sempre suspensa das ordens de D’Angelo, como em tempos os JB’s do mestre Brown. Esta Vanguard — é este o nome da banda creditada até na capa de Black Messiah — soube rockar como o melhor Prince, soar jazzy, sobretudo nas introduções de alguns temas, como os Steely Dan, mas também teve momentos de psicadelismo fumarento à lá Funkadelic e de angularidade modernista como os Cameo ou os Time de Prince, com o baixo a desenhar figuras geométricas em torno da voz do líder. O que não houve, e isso é extraordinário num concerto de mais de duas horas, foi um momento menos conseguido, morno, em que o público se tenha perdido, nem que por um segundo apenas.

D’Angelo cumpriu o milagre da ressurreição e apresentou-se no Hammersmith Apollo sem artifícios cénicos de qualquer espécie, só com música, daquela que marca o tempo. Fez duetos irrepreensíveis com o público e deixou tudo em palco: o corpo, o suor, a alma e a voz que vai dos registos graves aos agudos como um bem afinado carro de alta cilindrada vai dos 0 aos 100. Uma perfeição que certamente se repetiu na noite seguinte.



*Este texto foi originalmente publicado no Blitz e remonta ao concerto que D’Angelo deu a 20 de Fevereiro de 2015. O alinhamento do espectáculo foi o seguinte.

pub

Últimos da categoria: Reportagem

RBTV

Últimos artigos