LP / CD / Digital

D’Angelo

Black Messiah

RCA Records / 2014

Texto de Rui Miguel Abreu

Publicado a: 18/12/2024

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A ideia de salvação — ou pelo menos de redenção — foi sempre recorrente na música negra: Sam Cooke a cantar que acreditava na chegada da mudança, Isaac Hayes a vestir a pele de um Moisés negro capaz de guiar o seu povo através das águas abertas de uma sociedade revolta ou Kanye West a vender pendentes com a cara de Jesus e a baptizar um dos seus álbuns com o neologismo Yeezus. O impulso é sempre o mesmo. Em cada momento, há músicos negros que acreditam que a resposta pode estar nas canções. Ou na forma como soltam um determinado lamento, mesmo em canções disfarçadas de simples dor de corno. Que D’Angelo escolha Black Messiah para título do disco que lhe interrompe o silêncio de quase década e meia diz menos do que sente quando se olha de manhã ao espelho do que o que certamente sente quando olha à noite as notícias na televisão. Messias negros, garante ele, são todos os afro-americanos à luz de eventos como os que aconteceram em Ferguson. E compreende-se assim de onde vem o doce caos em que Black Messiah parece estar mergulhado, como se os densos arranjos, o grão analógico, e a mistura procurassem traduzir o tumulto da sociedade americana contemporânea.

D’Angelo parecia ser uma daquelas tragédias a que a música nos habituou: ao brilhantismo absoluto de Voodoo sucedeu-se primeiro silêncio, depois incerteza, e sinais que pareciam apontar para um desfecho dramático — um acidente aparatoso em 2005, prisão em 2010, fotos que evidenciavam um certo declínio físico, principalmente tendo em conta que este era o mesmo homem que tinha feito o icónico vídeo de “Untitled (How Does It Feel)”. Os poucos concertos que D’Angelo foi assinando não chegavam para desfazer o nó na garganta colectiva: o recurso abundante a versões parecia evidenciar o esgotamento criativo do homem que de um só golpe reinventou a soul em 2000. Mas a vida — mesmo a mais acidentada — tem sempre uma maneira de nos surpreender, e antes que 2014 soltasse o seu último suspiro, D’Angelo, sem que nada o fizesse prever, soltou o seu Black Messiah sobre o mundo.

É um disco extraordinário de um cantor e autor extraordinário. Como Marvin Gaye, D’Angelo junta carne e espírito na mesma canção, por vezes até no mesmo suspiro. Como Prince, consegue que os seus falsetos soem demoníacos e angelicais. Como Sly Stone, cruza géneros para se encontrar a si mesmo. Mas as referências não beliscam nem um milímetro do seu próprio génio. Com músicos de excepção como James Gadson, Questlove ou Pino Palladino, com uma produção de luxo, com arranjos que nunca sacrificam um grão de criatividade à ditadura imposta pela normalização das playlists, D’Angelo assegura o presente e reclama o futuro. E toma o mundo de assalto com novos concertos em que surge em plena forma vocal e criativa. O messias negro voltou, de facto. Bem-vindo seja.



*Nota: este texto foi originalmente publicado revista Blitz em 2014 e é recuperado pelo Rimas e Batidas no âmbito do 10º aniversário de Black Messiah.

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