Texto de

Publicado a: 13/04/2018

pub

czarface review

[TEXTO] Rui Miguel Abreu

A discussão sobre o que é ou não real no hip hop é provavelmente a mais estéril de todas. O hip hop começou por ser artifício: o sistema de som ligado ao candeeiro da rua para inventar a festa onde só existiam ruínas; o crossfader que soma dois breaks para colar uma “perfeita repetição” que se estende até ao infinito; a agulha, o vinil e a mão certeira do DJ que através do scratch consegue transformar o gira-discos num instrumento; o microfone que permite traduzir a realidade em rimas, em metáforas, em punchlines; o tag que existe para criar uma nova identidade para o writer que obriga o comboio a levar-lhe a notoriedade até longe do bairro; os power moves com que o b-boy passa a vida a desafiar as leis da física e da biologia; o sampler que dá ao produtor o poder de alterar o tempo, a história, a estética, a narrativa…

Inventar, colar, transformar, traduzir, criar, desafiar, alterar: no código genético do hip hop está desde sempre impressa a noção de que a realidade só interessa como ponto de partida, como cenário, como tela em branco pronta a receber novas ideias, novas imagens, novos sons e palavras. Uma nova cultura. Querer fechar essa cultura na redoma da autenticidade — como Wynton Marsalis pretendeu ao querer impor o jazz como música de reportório, como peça de museu que se admira, mas não se renova — é desde logo condená-la à extinção, remetê-la para um catálogo, para um arquivo que se consulta, mas que já não se altera. Um depósito de memórias já desprovido de vida.

Tanto Czarface — o duo 7L & Esoteric com Inspectah Deck dos Wu-Tang Clan — como MF DOOM compreendem a urgência da reinvenção, o poder da fuga, a força da máscara. Alheios ao presente — na verdade, até, alheios ao tempo –, os Czarface têm vindo desde 2013 a criar uma narrativa paralela, transformando o mundo num comic book. Em declarações à HipHopDX logo no arranque de 2013, Inspectah Deck sublinhou a traço grosso essa mesma noção quando defendeu que o projecto Czarface não tinha outros objectivos que não fossem “criar algo digno de se ouvir”. Ou seja, com essas simples palavras Deck recusou qualquer programa de oposição — a uma tendência dominante, ao debate mainstream vs underground, à dicotomia consciente/gangsta, à aparente necessidade de escolher entre as dimensões boom bap ou trap — e sugeriu uma bem mais simples possibilidade: “só queremos criar algo digno de se ouvir”, porque tem valor intrínseco e não porque se alinha com um qualquer ideário mais vasto. E isto, bem entendido, mesmo tendo em conta que metaforicamente o herói Czarface explodiu em cores nas páginas da imaginação do trio “para salvar o hip hop”. O que significa tudo e nada: “salvar o hip hop” pode querer dizer, muito simplesmente, devolvê-lo ao plano da fantasia que é também o da inocência. Regressar à origem. Ao artifício.

DOOM tem feito basicamente o mesmo desde sempre: Operation: Doomsday de 1999 é uma autêntica pedra de roseta que nos permite ler todo o hip hop desalinhado/alternativo/experimental/independente deste milénio e cada novo capítulo da sua impressionante saga colaborativa — lançou projectos com MF Grimm, Madlib, Danger Mouse, Ghostface Killah, Jneiro Jarel, Bishop Nehru, Westside Gunn, cedeu rimas soltas a gente como os Molemen, Quasimoto (outro anti-herói com máscara, esta feita de hélio…), Prince Paul, Gorillaz, Oh No, Captain Murphy (aka Flying Lotus), Vast Aire ou os Avalanches, por exemplo — só deixa mais claro que Daniel Dumile é uma presença monolítica, que não se move um milímetro sequer ao encontro seja de quem for, que ergueu uma dimensão paralela em que habita solitariamente, alheio a qualquer movimentação no mundo real. É a máscara que o protege, que o transforma e que o transporta para essa dimensão. A máscara, aliás, é o artista: há uns anos a Internet agitou-se, sem que isso tenha beliscado a credibilidade de DOOM, quando se percebeu que nalguns “concertos” o MC/produtor se fazia representar por um familiar — a força do “adereço” de metal subtraído ao universo dos comics era tal que bastava para impor a “presença” do artista, mesmo que de facto ele tivesse preferido ficar em casa a ver reposições de obscuras séries B de ficção científica dos anos 50. O que é real, afinal de contas? Só o artifício.

 



Como sempre acontece desde a estreia com Czarface em 2013 (o grupo, entretanto, mostrou-se prolífico ao dilatar a discografia com Every Hero Needs a Villain de 2015, A Fistful of Peril em 2016 e ainda o projecto instrumental First Weapon Drawn editado o ano passado), Deck e a dupla de Boston 7L & Esoteric não parecem preocupados em reinventar a roda ou em mudar as regras do jogo: o seu hip hop faz-se de samples de uma paleta de cores muito específica — cordas dramáticas subtraídas a discos de easy listening, baixos impregnados de soul, baterias mais crocantes do que uma batata frita de pacote –, e manifesta-se em skits construídos com recurso a diálogos de velhos programas de televisão e, sobretudo, através de rimas que existem como um louvor à própria arte da rima e não necessariamente porque há uma mensagem urgente para transmitir.

A palavra a Inspectah Deck, em primeiro lugar:

“I’m in it for the long ride, like I drive a charter bus
Scars and blood, from the deadly bars I bust
In Czar we trust, the army buy they bombs off us
Blog about it naysayer, you can hardly doubt it
Who’s the best? Who’s the worst? We could argue hours”

Ou seja, podiam cuspir barras o tempo que fosse preciso. Esoteric, que por vezes soa ao Jay-Z do início do milénio (elogio), logo depois:

“Generally speaking, each rhyme is five star
Split personality, I ride with a side car
I can’t think of the rhyme, it must be misplaced
It’s on the tip of my tongue like Stan Smith’s face
Hold on – hmm, something ‘bout a fly sound
And how you got no bars like a dry town, so pipe down”

Mais barras, mais rimas, mais algodão doce para entupir as artérias aurais de qualquer b-boy empedernido. E depois MF DOOM, cereja em cima de um bolo coberto de chantilly rimático:

“Disaster, time is a component
Settin’ fire to rappers in a monumental moment
And the game’s potent, it’s like a never-ending quotient
A minute ago it was smiles and hugs, now where the fuck the dough went?
He so bent it’s like he set the shit straight again
Bombs fittin’ to drop and he ain’t even close to sayin’ when
(V-V-Villain) Nothin’ ever stolen
Was given as a blessin’, think the Universe owe him
Got faith in the vessel but know when to keep rowin’
Yeah and get up out your own way when deliverin’ a poem”

Ter fé no barco, mas saber quando é preciso remar, porque o jogo é potente, com um quociente infinito – claro que o universo lhe deve. Muito. (Chequem, por favor, “Bomb Thrown”, festival de fogo de artifício – ah… – no microfone sobre break capaz de erguer b-boys dos túmulos e loop de vozes pop roubadas a um qualquer hit veraneante dos anos 60 na Riviera).

Czarface com MF Doom não oferecem comida saudável, não é peixe fresco para a grelha carregado de ómega 3, não é bróculo cozido, nem frango do campo biológico, nem tisana sem açúcar ou quiche vegan. Este Czarface Meets Metal Face tem gordura saturada, é bifana em molho de 15 dias, salsicha de origem duvidosa, mais creme do que bola, mais açúcar do que farinha, carregado de corantes. Nada aqui é real. Mas é exactamente por isso que é tão bom. MF DOOM quase de certeza que não esteve no mesmo estúdio que os Czarface (está impedido de regressar aos Estados Unidos, ele que tem passaporte inglês), mas partilha com o trio as páginas virtuais deste comic book sonoro exibindo uma pujança que já há algum tempo que lhe escapava (a vida não tem sido fácil para o vilão mascarado). Já Deck, Esoteric e 7L continuam na mesma forma de sempre: mais lúdicos do que um parque de diversões e tão hip hop como as shelltoes do Jam Master Jay. Querem iludir a realidade durante os próximos 45 minutos? É só carregar no play…

 


pub

Últimos da categoria: Críticas

RBTV

Últimos artigos