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Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 26/09/2019

O primeiro álbum do duo composto por Vítor Rua e Jorge Lima Barreto foi reeditado este ano pela Golden Pavilion.

Ctu Telectu, um disco lançado em 1982 que ainda soa a futuro em 2019

Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 26/09/2019

A génese, poderia dizer-se, está em vários pontos-chave do princípio da história de um grupo ímpar na música portuguesa. Entre os quais, a pergunta que assinala a matriz inicial do disco de estreia do duo fundado por Vítor Rua e Jorge Lima Barreto. O primeiro conta: “quando o Jorge perguntou: ‘O que é que você quer que este disco seja?’, a minha resposta foi, ‘eu quero um disco que daqui a 30 anos se vá ouvir e ainda seja avançado para a altura!’ e ele disse, ‘Ok, vamos lá fazer um desses!’”. E assim foi.

Os Telectu nunca terão sido uma banda fácil de rotular. Mais facilmente, já em pleno século XXI, colocamo-los entre a música improvisada, a electrónica, o jazz avant-garde, e por aí. O primeiro álbum, Ctu Telectu, é, no entanto, ainda de uma fase de transição. Vítor Rua, vindo dos GNR, “era do rock, e de repente”, revela, em conversa tida a propósito da reedição deste marco da música portuguesa, é “confrontado com música de todo o mundo, desde esquimós ao jazz, da electrónica à concreta, etc”. A influência de Lima Barreto, musicólogo e músico dos Anar Band, expandiu o seu imaginário sonoro. Depois de se conhecerem, a faísca deu-se: “marcámos logo uma sessão para fazermos uma jam, portanto, para improvisarmos, coisa que não era comum em mim, ou seja, eu improvisava mas no rock ou no folk, ou nas tipologias musicais que até ali abordava, mas nunca tinha estado com ninguém a fazer música de improvisação total, coisas desse género. E isso aconteceu depois dum encontro no mais tarde chamado Estúdio Pinguim, no Porto, com o Luís Carlos. Foi aí que tive o primeiro encontro com o Jorge: ele a tocar Fender Rhodes e eu no baixo. Vimos que a coisa correu muito bem e imediatamente o Jorge começa a congeminar aquilo que viria a ser Telectu.”

Além de ainda ser um primeiro disco, de se estar a transitar para o que seria um projecto mais voltado para o minimalismo repetitivo, a própria formação para as sessões de estúdio era mais próxima duma banda rock do que dum projecto de electrónica. Tóli César Machado, dos GNR, toca bateria em Ctu Telectu: “ensaiávamos diariamente com ele, não só com os GNR, tanto que depois o convidei para produzir o (António) Variações, ou produzir a Manuela Moura Guedes e tocar nos discos deles os dois”. Inicialmente, Rui Reininho foi considerado para vocalista, mas a dupla entendeu que se estariam a aproximar em demasiado dos GNR e dos Anar Band, já que o homem das vozes nos GNR assegurava guitarra nesse seminal duo experimental que Lima Barreto tinha criado. Dr. Puto acabria por ser a escolha para a voz (algo enterrada na mistura final, diga-se) que se vai escutando pelo disco. Um nome desconhecido e misterioso: “Dr. Puto era José Carlos Militão. Eu só soube o nome dele verdadeiro agora que tive de procurar no Facebook a ver se existia. Então tive de me lembrar, ir perguntar a um amigo meu ‘como é que se chama o Dr. Puto?’”. José Carlos Militão, ou Dr. Puto, surge neste enredo sem ser verdadeiramente um cantor. Um diletante, aparece por escolha de Lima Barreto numa tipologia de diálogo semelhante à dos Can na mesma situação, desvenda o músico: “o que é que cantas? David Bowie? Então canta aí um bocadinho. Pronto, vais cantar connosco.”.

Inicialmente, admite Vítor Rua, o próprio Jorge Lima Barreto tinha a intenção de não ser extremista no experimentalismo do primeiro disco de Telectu. O músico afirma que o teclista terá pensado dentro dum enquadramento próximo: “’Ora, deixa ver. A pop está aqui a dar isto. Então deixa lá meter um baterista e deixa meter lá um vocalista. Eles querem um cantor, pode ser que isto passe na rádio’. Talvez também houvesse da parte do Jorge assim uma espécie de sentir que tudo estava a dar, então aquilo também ia dar quase de certeza absoluta, e podia. Mas já com a ideia de que, provavelmente, se não desse, haveria outro caminho, plano B, já há muito tempo bem definido, que seria o duo. E realmente depois foi isso que aconteceu. O disco não acabou por ser como viria a ser a seguir o Belzebu, já sem baterias, sem vozes e já mais electrónico e dentro duma corrente absolutamente minimal repetitiva. O Ctu Telectu é para mim um disco rock. Agora se é rock art, ou rock experimental, ou rock underground… isso não sei, mas que é rock, é!”.

O facto dum disco deste carácter, com tamanha inovação para o contexto cultural português, de composição e estética musical angulosas, ter a sua edição garantida pela Valentim de Carvalho poderia, à época, ter parecido algo estranho. O caminho até aí trilhado, não só pelos GNR, mas também pelo próprio Vítor Rua ajuda, no entanto, a perceber a edição de Ctu Telectu– “[o Francisco Vasconcelos] conhecia também a minha qualidade como produtor e músico a concretizar as coisas, porque tinha acabado a produção do 1º disco do Variações e do primeiro disco da Manuela Moura Guedes”, sublinha Rua, procurando explicar as razões para a associação à Valentim de Carvalho.

Na conversa tida com Rui Miguel Abreu de recolha de informação para as notas de capa da presente reedição, o músico confessou que se recorda de ter o tempo mais contado nestas sessões de estúdio que nas de GNR, naturalmente. Enquanto os GNR tinham já justificado a sua posição na editora com as vendas dos seus singles, o duo seria uma nova aposta. Além do prenúncio atrevido que Independança já trazia, com o tema “Avarias” a durar 26 minutos, por exemplo, a proposta para Ctu Telectu era a de um disco muito mais experimental. Ainda rock, mas de vincado carácter exploratório. Segundo Rua, a direcção da Valentim foi muito pragmática: “O Francisco diz, ‘vamos editar este disco porque para isso é que temos músicos como o Marco Paulo, que são músicos que nos dão uma garantia, um conforto comercial, para depois podermos dar-nos ao luxo de editar discos de prestígio, como este’.”



“Avarias” funcionou não apenas como uma espécie de teste da capacidade de encaixe da Valentim de Carvalho, mas mas também como o primeiro passo para o que viria a ser o álbum de estreia dos Telectu, tanto ao nível estético como composicional. É a transição do mundo GNR para o universo de Rua e Lima Barreto. “Foi uma produção em tempo real. Se aí, no ‘Avarias’ já elevámos a fasquia para coisas desse género, no Ctu Telectu seria pura ficção científica”. A filosofia experimental e inovadora do álbum inicia-se nos títulos das faixas, retirados de obras do emblemático Phillip K. Dick – a quem o disco é dedicado em parte –, autor duma vasta literatura à volta da temática da ficção científica e da inovação tecnológica. Na ideologia composicional bebeu-se mais na filosofia criativa e técnica de Brian Eno, que encarava o estúdio como um instrumento, “Paço de Arcos transformou-se num instrumento”, decididamente.

Sobre a recepção dos concertos por parte do público, Rua esclarece: “Nós de repente demos meia hora de ‘Avarias’, não é? Era tudo aos berros, a assobiarem-nos. Lembro-me que conseguimos pôr as 20 mil pessoas sentadas no chão, coisa que eu acho que não aconteceu em mais nenhum concerto que me lembre”. E as apresentações também eram feitas em quarteto — a passagem para o mundo da música minimal repetitiva electrónica ainda estava a dar os primeiros passos. Esta sonoridade (veja-se mesmo na “Do Androids Dream Of Electric Sheep?”) e tipologia de performance podia estar mais próxima por exemplo duns Pink Floyd pós-Barret ou duns Talking Heads mais etéreos e atonais em “Eye In The Sky”.

Para uma futura biografia deixamos estes dois tesouros revelados a Rui Miguel Abreu por Vítor Rua.

Numa fase final da produção do disco, Pedro Vasconcelos, produtor do disco, irmão de Francisco Vasconcelos – a quem o disco foi também dedicado pela aposta na edição –, chama-o com entusiasmo para ouvir o que estava a ser feito. Apesar da bênção da Valentim de Carvalho para a edição de Ctu Telectu, como já mencionado, Francisco reage às gravações da seguinte maneira: “Mas… Isto não é nada. Estás doido? O que é isto? Isto não é nada, isto não serve para nada. Tu estás louco”. 37 anos depois é reeditado como disco influente de uma das bandas mais icónicas da música electrónica portuguesa.

Por fim, o psicadélico solo de “Ubik” surge de uma fortíssima ressaca do guitarrista. A música estava já planeada para essa presença da guitarra, mas Vítor Rua chega em péssimo estado aos estúdios e, paranóico, demora na sua entrada no tema, com a fita já a correr. “Finalmente, o Toli vê que eu não entro e começa a entrar com o prato de choque. (…) Eu finalmente dou esta nota. Isto é uma coisa visceral, eu nunca tinha tocado assim na vida. Tudo me custava como se a gravidade fosse dez mil toneladas. Eu estava a tocar e a racionalizar tudo, a dizer: ‘Epá, este não. Não, este fica melhor. Não, este não fica tão… Ai, isto é horrível… Mas ele não está no tom. Como é que eu faço para estar no tom?’”. Ao contrário do penoso processo que o levou até àquele momento, o feedback dos ouvintes não poderia ser melhor : “As pessoas que ouvem isto a dizer ‘este é dos solos psicadélicos mais extraordinários que eu já ouvi’. Eu naquele momento estava tudo menos psicadélico! Estava a racionalizar tudo, a pensar se cada nota era correcta e achava que não, que tudo era mau. E hoje é considerado dos melhores solos de guitarra que fiz alguma vez na vida, mas fiz sob essa condicionante, de repente, depois de quase de ter morrido de overdose (…) estava numa auto-crítica tão grande que pensava que era a pior coisa que eu alguma vez tinha feito na vida. Depois quando oiço à posteriori, considero das coisas que se calhar [mais] marcou. Ainda hoje o som que gosto de guitarra é este, é isto que eu tento…”

Décadas depois, o disco é reeditado pela Golden Pavilion em vinil. Hoje mesmo, Ctu Telectuserá debatido por Rui Miguel Abreu, Nuno Galopim e António Barreiros na nova sessão de Sob Escuta na Fnac Chiado, em Lisboa, pelas 18h30.


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