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Fotografia: Marta Pina
Publicado a: 04/08/2023

17 anos depois, o disco chega ao vinil através da Príncipe.

Como os DJs Di Guetto plantaram a semente que fez explodir a batida de Lisboa

Fotografia: Marta Pina
Publicado a: 04/08/2023

18 de Setembro de 2006. Para muitos miúdos, era o início de mais um ano escolar. A hipótese de conhecerem novos colegas, novas turmas, mostrarem as novas roupas, as novas músicas que andavam a ouvir e contarem aquilo que haviam feito no Verão. Estrategicamente, foi também o dia escolhido pelos DJs Di Guetto para lançarem a sua compilação de batidas que se tornaria um marco.

As fusões entre kuduro, tarraxo, funaná, techno ou house cruzando os ritmos da África lusófona com a electrónica europeia espalharam-se como um vírus. Não só naquele ano lectivo, mas durante todos os outros que se seguiram. Foi a semente que fez explodir um movimento em torno dos “sons do gueto” de Lisboa, hoje composto por dezenas e dezenas de DJs e produtores, num panorama em constante expansão e transformação.

17 anos depois, a Príncipe fez uma selecção dos temas originais para reeditar em vinil duplo o disco dos DJs Di Guetto colectivo de Marfox, Nervoso, N.K., Jesse, Fofuxo (hoje conhecido por F Flava) e Pausas —, de forma a honrar o seu legado e a celebrar este álbum que foi uma autêntica pedrada no charco. A edição está disponível a partir desta sexta-feira, 4 de Agosto, e o Rimas e Batidas aproveitou para mergulhar no passado, contar a história deste projecto e fazer um retrato do legado que os DJs Di Guetto deixaram.



Um super colectivo da periferia de Lisboa


Marlon Silva, que cresceu na Portela, em Loures, teve a sorte de ter um computador em casa desde muito cedo, no final dos anos 90. Além disso, tinha um primo, António “Toni” Gonçalves, que era DJ no Mussulo, importante discoteca africana de Lisboa. Estavam os dois elementos reunidos para que o jovem Marlon se interessasse por música e começasse a explorar os softwares rudimentares que iam aparecendo quando ainda era bastante novo. O nome artístico Marfox surgiu antes da música era a soma das primeiras três letras do seu nome com “fox”, graças ao jogo da Nintendo Starfox, muito popular na altura entre os miúdos do bairro.

Foi no início dos anos 2000 que começou a partilhar online os edits que ia fazendo. Nascido em Portugal mas de origens são-tomenses, era inspirado pelo kuduro angolano e pela electrónica do norte da Europa. “Tentava fazer fusões”, explica ao Rimas e Batidas. Em 2004, conheceu, numa festa na Quinta do Mocho, outro bairro de Loures, o DJ Nervoso, com quem passou a aprender a produzir. “Era difícil acompanhar porque eu estava muito verde, não conseguia perceber tudo.”

Criado em São Tomé, Nervoso veio para Portugal em 1997, já adolescente. Sempre fora fã de música, e em Portugal deixou-se inspirar pelo DJ Charmoso, também da Quinta do Mocho, que passava música africana. Em 1999, aos 16 anos, arranjou o primeiro emprego, um trabalho no McDonald’s. “O meu primeiro salário foi gasto em cassetes de kuduro e kizomba que comprei na Praça de Espanha”, conta. Foi acumulando cassetes até ter um saco cheio. Quando as famílias da Quinta do Mocho deixaram as barracas e foram realojadas nos prédios construídos pela autarquia, a mãe de Nervoso comprou um computador lá para casa, para que Nervoso pudesse partilhar com as irmãs.

Nessa altura, começou a gravar CDs que lhe emprestavam e a tentar arranjar todos os softwares de DJ a que conseguia ter acesso. Por volta de 2001 ou 2002, começou a passar música nas festas do bairro desde kizomba a rap, passando por reggae ou kuduro, tinha de tocar todo o tipo de música, para agradar a toda a gente que ali vivia. Mas Nervoso destacou-se por uma fusão em particular: gostava de misturar kuduro com techno, subgénero electrónico em voga nos bairros, que conviviam bem num DJ set graças à semelhança dos BPM.

Pouco depois, conhece um produtor de kizomba no Catujal que o apresenta ao Fruity Loops, o famoso software de criação de música. Nervoso até já tinha o programa instalado no seu computador, mas nunca o tinha testado à séria. A partir daí, começou a fazer as suas experiências, conquistando conhecimento e servindo, depois, enquanto mentor para Marfox.

Passemos a outra história. Do outro lado de Lisboa, no Bairro do Pombal, em Oeiras, Pedro Cardoso dava os seus primeiros passos em 2003. Na música, assinava como N.K.. Filho de pai português e mãe angolana, as suas referências de produção eram os kuduristas de Angola, desde DJ Malvado a Sebem, passando por Salsicha e Vaca Louca. “É que eu nem ia ouvir os Tiësto que por aí andavam, era mesmo só de Angola”, conta. “Gostava realmente daqueles ritmos e quis tentar reproduzir aquilo, mas dentro do meu contexto.”

No início, N.K. nem sequer sabia que havia outras pessoas a fazer música como ele ou a olhar como ele para aquilo que se fazia em Angola. “O Marfox mostrou-me um mundo que eu não conhecia bem. Eu estava fechado nas músicas que vinham de Angola e o Marfox mostrou-me que, afinal, éramos mais a fazer isto aqui. Até então, eu não tinha muito ideia disso. Quando ia a festas de bairros, ouvia músicas que eram muito boas, mas não fazia ideia de que eram produzidas pelo Marfox ou pelo Nervoso. Pensei que eram de artistas de outros países. E afinal eram deles, também eram músicas feitas nos subúrbios de Lisboa. Fiquei maravilhado.” Nesta altura, estes produtores começaram a trocar impressões através do chat do MSN.

Depois, dá-se uma ligação à Linha de Sintra. “Há sempre uma história romântica por trás das coisas que mudam o mundo”, brinca Marfox, entre risos. “Eu tinha uma namorada em Massamá e ia sempre lá ter com ela. Praticamente todos os dias, saía da escola em Chelas, apanhava o comboio e ia para Massamá. E numa dessas idas… Eu andava sempre com uma t-shirt com o meu nome, a dizer DJ Marfox. E hoje em dia toda a gente critica as colunas bluetooth, mas na altura era muito comum nós andarmos de telemóvel ao peito a dar música. Então lembro-me de ir no comboio, da Amadora para Queluz, e um dos elementos que viria a ser dos DJs Di Guetto viu-me com a t-shirt e disse: ‘tu é que és o Marfox? A gente curte bué do teu trabalho’. E eu acabei por nem ir ter com a minha namorada nesse dia [risos]. Não fui para Massamá. Foi assim que conheci o DJ Pausas e o Fofuxo, e fui diretamente para casa do Fofuxo, em Barcarena. Foi assim que tudo começou.” O sexto elemento dos DJs Di Guetto, Jesse, era de Massamá e já era amigo de Pausas e Fofuxo. A ligação estava feita para que o colectivo, aos poucos, se tornasse oficial a partir de 2005.

O processo foi bastante orgânico. Eram todos jovens afrodescendentes da periferia de Lisboa, com as mesmas referências musicais e o interesse em explorar coisas novas enquanto DJs e produtores. 

“Na altura ninguém produzia propriamente. Fazíamos tipo edits. Pegávamos em músicas, fazíamos loops e misturávamos”, explica Marfox. “Também havia um grupo de dança que eram os Máquinas de Kuduro, os DJs Di Guetto é que faziam as mixes para eles dançarem. Nós andávamos com eles e eles também foram um grupo muito importante em toda a periferia: iam às escolas, eram chamados um pouco por todo o lado, e nós éramos os produtores deles. Andávamos como irmãos, todos juntos, íamos para a praia, havia uma ligação muito forte. Foram anos incríveis.”

Embora Nervoso fosse um DJ mais experiente e representasse uma figura de mentor para Marfox, nesse período Marlon Silva associou-se mais aos três DJs da Linha de Sintra, que também ainda andavam na escola e estavam mais numa fase de descoberta. “Saía da escola e ia ter com eles.” Começaram a trabalhar em músicas juntos, agarrando-se às bases instrumentais uns dos outros e construindo por cima. “Começámos todos a partilhar projectos, dicas… Aprendemos todos juntos de uma maneira muito rápida.” “Às vezes íamos à casa uns dos outros, de bairro em bairro. Por exemplo, eu criava uma base rítmica e depois chamava o Marfox e ele construía por cima daquilo que eu tinha”, acrescenta N.K.

Ainda assim, não havia propriamente bases nem exemplos por onde se pudessem seguir. “Não havia tutoriais do YouTube nem formação, nós não sabíamos nada… Não havia qualquer grupo para o qual pudéssemos olhar. Estávamos a fazer tudo às cegas. Hoje, um miúdo pode dizer aos pais que aquele ou o outro é DJ e vive da música. No nosso tempo, havia uma resistência muito grande da parte dos nossos pais”, contextualiza Marfox.

Como partilhavam computadores com irmãos ou outros familiares, muitos dos beats em que estavam a trabalhar iam aparecendo online ou eram partilhados de telemóvel em telemóvel, de MP3 em MP3, à revelia. “O meu irmão mexia no computador, o irmão do outro mexia no computador, e toda a gente falava de nós, então algumas músicas eram espigadas, como a gente dizia.” 

Surgiu, então, a ideia de reunirem as melhores músicas para um disco. “O Marfox era um bocado o líder do grupo, foi ele que pegou nas músicas que tínhamos, as que ainda não eram públicas, e fizemos uma compilação”, revela N.K.


A estética sonora do álbum


Para quem ouvia o kuduro que se fazia em Angola e outros géneros musicais da África lusófona, havia claras diferenças em relação à música que os DJs Di Guetto apresentavam. A dos produtores criados em Portugal era muitas vezes mais frenética e pesada, já que existia uma grande componente de música electrónica ligada à cultura ocidental. Além disso, não havia uma cultura de MCs kuduristas por cá. Ou seja, começou desde o início como um movimento musical unicamente instrumental, o que também o distinguiu do kuduro.

“O facto de estarmos em Portugal e o nosso meio social condicionou a própria escolha de instrumentos, que fez com que tornasse a música mais electrónica ainda, à nossa maneira, mais agressiva, com sintetizadores mais agressivos, muitas camadas de ritmo. Às vezes eram cinco kicks, não era um [risos], para ter aquela estética”, explica N.K.

“Hoje em dia, com a quantidade de informação que tens e a quantidade de coisas que podes ter no Spotify ou no YouTube, a maneira como te conectas com o outro lado do mundo rapidamente… Nós não tínhamos isso. Tínhamos o techno, que conhecíamos, ouvíamos o Carl Cox e essas coisas todas, e tínhamos o kuduro que vinha de Angola. Bué CDs que recebíamos. E querias criar algo parecido com aquilo, mas sempre que estavas no processo de criação, sempre que ias escolher um sample, se calhar ias para o techno. Tem a ver com o espaço onde estás. Eles em Angola não ouviam tanto techno. Podiam ouvir outras coisas, música de países com que fazem fronteira, mas aqui ouves rádio, vês televisão, ouves coisas que te vão empurrar para aquilo. O nosso processo criativo de escolha de samples era totalmente diferente. E os DJs Di Guetto conseguiram evidenciar-se porque construímos músicas próximas daquilo que ouvíamos e que eram próximas dessa comunidade periférica de Lisboa. Se mostrares a um português de Lisboa o som de Angola, os beats de kuduro, ele pode dizer que é fixe. Mas se mostrares os DJs Di Guetto, ele vai estar mais familiarizado com aqueles samples. Porque já ouviu na Oxigénio ou onde seja… Os DJs Di Guetto são isso. A mistura do que consumíamos aqui com a maneira como queríamos construir a nossa Luanda”, argumenta Marfox.


O impacto do disco


Marfox descreve o lançamento do álbum como uma “febre” e um “fenómeno”. “Já sabíamos que estava tudo mais ou menos à espera do disco. Toda a gente à nossa volta queria ouvir.” O projecto foi disponibilizado online, para download gratuito, quando vários dos produtores eram ainda menores de idade. Marfox, por exemplo, tinha apenas 17 anos. Estava tudo a começar para eles.

Entre os temas que mais impacto geraram encontram-se “Drift Furioso”, “Isto é Kazu Bite”, “Un Bes Bai”, “Mãe Gorda”, “Techno” ou “Tarraxo Nervoso”, entre outros. Muitos chegaram aos ouvintes como faixas soltas, até porque o disco não tinha propriamente um conceito nem uma edição física. Era antes uma compilação dos melhores temas que tinham feito. Além disso, a Internet não era tão acessível quanto hoje e a informação não era transmitida de forma tão directa, numa era anterior à disseminação das redes sociais.

“A variedade de sonoridades fez com que as pessoas se aproximassem dos DJs Di Guetto. Por exemplo, o Jesse ia sempre para uma coisa mais techno-kuduro, trouxe um público diferente. Eu com o funaná… Muitas pessoas diziam que os seus beats favoritos eram completamente diferentes dos favoritos de outra pessoa. Havia muita variedade.”

O facto de serem de várias zonas de Lisboa, e terem backgrounds distintos, também terá contribuído para a diversidade de sons e para que o grupo tivesse um impacto maior, justifica N.K. “O bairro onde eu vivia em Oeiras era maioritariamente de cabo-verdianos e alguns portugueses. A maneira como eu fazia música era condicionada pelo meu meio. Quando abria a janela, ouvia música cabo-verdiana. E sinto que isso trouxe alguma agressividade à minha música. Da mesma forma que o Marfox, com um meio mais são-tomense e angolano, acabou por levar essa influência para a música dele. No grupo tínhamos uma mixórdia que fez com que, quando uníamos forças, cada um de nós era o representante artístico de cada bairro. Isso acabou por fazer a diferença.” Eventualmente, Pausas mudou-se de Queluz para a Margem Sul. Assim, os DJs Di Guetto estavam presentes tanto daquele lado do rio como na Linha de Sintra, de Cascais e da Azambuja, unindo os grandes pólos suburbanos de Lisboa.

“O impacto foi além daquilo que esperávamos”, diz N.K. “Porque o disco reverberou pelo gueto mas, depois, foi lá para fora. Ou seja, parece que este disco quebrou barreiras e teve um impacto inédito. Para um grupo de miúdos do bairro que faziam músicas genuínas e puras por amor, de repente estava em França e noutros países… Até no Japão se ouviu.”

Foi nessa altura que os DJs Di Guetto começaram a ser contactados para actuações no estrangeiro primeiro, nos países com fortes comunidades lusófonas; até chegarem a um público nativo desses territórios. Enquanto colectivo de seis DJs, cada um com as suas vidas, nunca conseguiram viajar nem actuar todos em conjunto. Mas foi a partir daqui que partiram à conquista do mundo e que a batida de Lisboa se espalhou além fronteiras.

“Lembro-me de que o Pausas e o N.K. foram tocar à Suíça, eu também cheguei a ir a França… Um dos temas, o ‘Un Bes Bai’, um funaná, tocou muito na comunidade cabo-verdiana em França, Luxemburgo, Inglaterra, Espanha… E fui tocar a esses sítios todos por causa dessa música. E vias que a mentalidade lá estava muito mais à frente da mentalidade da noite africana cá, dos clubs. Estamos a falar de 2007 ou 2008. E aí percebes: estão-me a contratar, com um bom cachet, para tocar as minhas músicas? E diziam: ‘não te estamos a contratar para tocares mais nada, só queremos que toques as tuas batidas e os teus funanás’. E foi isso que me fez pensar. Se essas pessoas podem aceitar que eu faça esse trabalho, porque é que em Portugal, onde nasci e fiz a música, não aceitam? Lá fora percebiam a força que vinha desta música e hoje o fenómeno do afrohouse é a prova disto. Tenho o maior orgulho nisso”, diz Marfox.

Foi um caminho de aprendizagem com várias curvas e contracurvas. Eram miúdos distantes da indústria musical, que foram aprendendo enquanto faziam, sem grandes referências palpáveis. “Os cachets que praticávamos nas festas onde íamos, nos baptizados, nos aniversários, eram irrisórios. Só que nós não tínhamos noção das coisas. Tu és um miúdo da periferia, toda a gente a mandar-te mensagem… Tu achas que és o maior do mundo e nem percebes bem a importância que seria ter alguém a explicar: vocês agora têm de fazer isto, têm de fazer aquilo.”

Uma das melhores experiências para N.K. aconteceu numa actuação pela Europa. “Quando cheguei lá, não esperava aquilo. Era um palco completamente underground. Só pensava: ‘Meu Deus, o que é que estas pessoas vão querer? Será que querem mesmo a nossa música? Deve ter havido algum engano. Contrataram-nos porquê?’ Mas depois percebi que só queriam que nós tocássemos aquilo que fazíamos. Então aquilo parecia uma rave. Transformaram a nossa música num festival de techno. Foi uma experiência muito interessante, senti-me livre para tocar aquilo que sei, senti-me em casa. ‘Afinal era mesmo isto que vocês queriam.’ E era aquele ambiente que nós imaginávamos quando estávamos em casa a fazer música. Foi quando percebemos: as músicas saltaram do underground em Portugal e foram parar ao underground de outros países.”

Embora o grupo nunca tenha chegado oficialmente ao fim, acabou por se dissipar de forma tão natural quanto começou. Cada um estava numa fase distinta da vida e procurava coisas diferentes. 

“Íamos lançar uma reedição do disco com temas inéditos que nunca saíram, mas isso acabou por não avançar”, explica Marfox. “Depois um teve propostas para ir trabalhar para Espanha, outro era mais velho e tinha contas para pagar e filhos para alimentar… Nem todos tínhamos o mesmo foco, determinação e energia ao mesmo tempo e foram acontecendo muitas coisas. Na altura ninguém vivia da música. Nem nós nem ninguém à nossa volta. O que tinhas eram os DJs que tocavam nos clubs de música africana. E eles tinham outra maneira de estar e de se posicionar. Não tinhas como pensar: vou só viver desta música, da batida. O mercado queria-te moldar para tocares outras coisas, como kizomba ou o que fosse. O mercado não aceitava o nosso registo, a nossa música ainda era muito estigmatizada… Era muito complicado ires tocar a certas discotecas, havia muitos bloqueios por parte dos colegas DJs da altura. Eu, como não tinha filhos e estava na escola, vivia com os meus pais, estava tranquilo. Não tinha esta pressão que eles tinham de ter de tocar o que os outros queriam para receberem ao final do mês. Eles precisavam daquele dinheiro e eu respeito isso. Eu recebia convites mas dizia: se não querem isto, não vou. Comecei a posicionar-me assim.” 

Visionário do movimento, Marlon Silva acabou por conhecer, em 2007, a estrutura da promotora Filho Único, que admirava o seu trabalho vanguardista. Estavam os ingredientes reunidos para que a editora Príncipe se formasse em 2011, profissionalizando a batida de Lisboa, dando oportunidades a muitos jovens DJs e produtores para editarem música à séria, e iniciando um processo de democratização que os levaria, aos poucos, a ocupar espaços centrais na noite de Lisboa e a ganhar atenção mediática, muito também na imprensa internacional. Em 2014, DJ Marfox terá sido o primeiro músico português a ser destacado na célebre revista norte-americana Rolling Stone.


O legado do álbum e a importância da reedição


Basta olhar para o panorama atual da batida de Lisboa para identificar de imediato a influência de Marfox e companhia. Quantos DJs e produtores não têm o seu nome artístico terminado em “fox”, assumindo essa herança e selo de qualidade? 

“Se calhar 60% ou 70% dos DJs que fazem música actualmente são filhos dos DJs Di Guetto”, argumenta Marlon Silva. “Uns assumem mais, outros menos, mas acabam por ser. Fomos a inspiração para toda uma geração. Claro que nos inspirámos em fazer beats como o Znobia ou outros nomes de Angola, mas, depois, a responsabilidade, estando nós longe de Luanda, passou toda para nós.”

Acima de tudo, o sucesso dos DJs Di Guetto terá inspirado muitos outros miúdos dos bairros que tinham na música a sua maior paixão, e que a viam como uma das formas mais eficazes para alcançar a tão desejada mobilidade social. “Através de nós, aquilo espalhou-se e houve muita gente que apareceu. Fico feliz. Servimos de mentores e de inspiração para muita gente”, reconhece Nervoso.

“Penso que fomos a esperança de muitos miúdos que estão no bairro, que viram que, se nós conseguimos, eles também conseguem. Então, em vez de a nova geração estar em casa sem fazer nada ou em más ondas, acabaram por apostar as forças deles na arte. Tendo como referência o nosso disco e o nosso grupo. E muitos conseguiram, que é o que nos deixa mais felizes. Penso que continuamos a ser a inspiração de muita gente que nasce nos bairros e não só”, acredita N.K.

Além disso, a música que faziam (e continuam a fazer) está directamente ligada à identidade das periferias de Lisboa, ao caldeirão multicultural construído nos bairros no Portugal pós-colonial. Para Marfox, “foi a primeira compilação que representou o negro europeu de Lisboa”. “O que é que o negro europeu de Lisboa ouve, o que é que faz? Podem falar de hip hop, mas globalmente, o que é que foi exportado daqui? Foi esta música, que ficou rotulada como música de Lisboa.”

“Teve o efeito de tu acreditares que és português. Quando não tens referências, e nós não tínhamos só tínhamos jogadores de futebol, e alguns artistas, mas nascidos nos países de origens e tinham essa identificação com os países de origem… A música que eu faço não é feita em São Tomé, em Angola ou Cabo Verde. É uma música criada aqui para nós daqui. Nós somos isto. Podemos ser tudo e mais alguma coisa, mas somos isto. E, depois, para um português não eras português e para um angolano não eras angolano. Esta música veio dizer que nós somos isto. E quantos DJs, grupos, quanta música apareceu depois disto… Nós olhávamos para a força do hip hop, mas aquilo não nos representava como um todo. E isto representa-nos como um todo. Sejas negro, branco ou indiano, toda a gente se sentia representada por esta música. As tuas vivências na escola, a multiculturalidade dos bairros de Lisboa. Esta música representou isso, deu-nos essa identidade.”

Marfox explica também a relevância desta reedição: “Na altura só queríamos ter música e sermos reconhecidos pelas pessoas, e depois aquilo tornou-se um movimento. Agora fica registado como um marco histórico. Foi através disto que tudo aconteceu. Hoje em dia, e isto é normal acontecer porque as pessoas se ligam a outras coisas, temos muitos fox que andam aí que nem sabem de onde veio o nome porque já não se inspiram em mim, inspiram-se noutra pessoa e nem sabem a história… É importante e gratificante. Hoje a Príncipe só existe, em parte, graças a esta música toda que também veio através desta nossa compilação.”

N.K. salienta ainda a importância de existir agora uma reedição em vinil, depois de a Príncipe já ter feito o (re)lançamento digital do disco há 10 anos. “Para mim a importância é ímpar. É o materializar de algo que não existia de forma física, é como se fosse um nascimento. É como se fosse a consolidação de todos os nossos sonhos daquela época. É uma celebração.”


Os discípulos dos DJs Di Guetto


De Tristany aos Afrokillerz, de Pedro da Linha aos Studio Bros, passando por todos os grandes nomes que emergiram da Príncipe ao longo dos anos, o impacto dos DJs Di Guetto foi amplo e contribuiu para transformar a música e a sociedade portuguesa.

Rogério Brandão, que viria a tornar-se conhecido como Nigga Fox, conheceu as batidas de Marfox e N.K. através do seu irmão, um aspirante a DJ que assinava como Jio-p. “O meu irmão conhecia o Marfox. Ele é que me meteu também a fazer música, a instalar o Fruity Loops. E os sons deles inspiraram-me e deram-me aquele boost para fazer música”, conta Nigga Fox ao Rimas e Batidas. Embora vivesse no Lumiar, curiosamente tornou-se colega de escola de Marfox em Chelas, quando já tinha iniciado as suas primeiras experiências na produção musical.

“Foi na escola que tive ligação directa ao Marfox. Mandava-lhe as minhas músicas e ele curtia e também partilhava com o pessoal. Ele e o N.K. eram os que mais me chamavam a atenção. Eu curtia muito a maneira como o N.K. produzia. Ele na altura metia samples do MSN. ‘Uau, como é que ele fez isto?’ Só me deu vontade de também fazer, despertou-me bué a curiosidade para a música. O Marfox lançou o ‘Drift Furioso’, que também me chamou muito a atenção, estava todos os dias a ouvir aquilo. ‘Meu Deus, quem é que faz isto?’”

Haveria de se formar mais tarde outro colectivo, os Piquenos DJs Di Guetto de Firmeza (Quinta do Mocho), Maboku (Queluz) e LiloCox (Casal de Cambra) , um grupo que dava continuidade ao caminho traçado pelos pioneiros e que também unia várias zonas da periferia. Lançaram em 2013, através da Príncipe, um EP conjunto com os Blacksea Não Maya, antes de cada um dos seus membros seguir a sua própria trajetória com sucesso.

Na Quinta do Mocho, incontornavelmente o bairro mais ligado a este movimento, os Studio Bros de Famifox e Nunex que iniciaram o seu percurso com o nome Alto Nível Produções também começaram na música, desde sempre, influenciados por aquilo que os DJs Di Guetto tinham feito. 

“Influenciou uma grande geração de DJs que andam por aí agora. Por exemplo, a marca fox é a história disto tudo, não é? Arrastou muita gente, tal como o Nervoso aqui no bairro”, explica Famifox, que se tornou vizinho da frente de Marfox quando este deixou a Portela e se mudou para a Quinta do Mocho. “Naquele tempo eu pedia ao Marfox todas as músicas que eles tinham [risos]. Porque eles tinham umas cento e tal, e só editavam algumas.”

“Lembro-me de o Marfox ir sempre à Quinta do Mocho ter com o Nervoso, que lhe dava umas indicações. E ele depois passou-nos essa visão: ‘o Nervoso deu-me indicações, mas eu depois criei a minha referência e identidade’. E foi por isso que nós também lutámos e lutámos para criarmos a nossa. Portanto, o Marfox tem uma grande influência no nosso processo de fazer música até hoje”, recorda Nunex.

Em Algueirão-Mem Martins, Tristany foi outro dos músicos que se deixaram inspirar pela febre. “Primeiro eu ouvia sons na escola que eram passados por infravermelhos. Depois, quando a Internet e o YouTube começaram a ser mais uma cena, comecei a ver vídeos de kuduro. E muitos deles tinham músicas dos DJs Di Guetto”, explica. “E depois também foi uma questão do diz que disse, de começar a associar as coisas. Curiosamente, até comecei a seguir mais a sério os Piquenos DJs Di Guetto, e depois é que percebo a escadinha toda. Fiz o movimento inverso. Era música do telemóvel, untitled, eu não tinha noção. E quando começo a seguir o trabalho deles como grupo, é que fico a perceber: ah, afinal este som que eu ouvia era daquela pessoa… Foram tempos de escola, de pura meia riba kalxa. Eles também são a base da existência do meu primeiro álbum, é uma celebração daquilo tudo que existia na altura.”

Pedro da Linha, produtor e DJ criado na Damaia, partilha a memória de Tristany associada à dança. “Eles faziam alguns dos sons que eram utilizados nos vídeos com altos toques, gravados atrás dos pavilhões da escola e na rua, de quando o pessoal era todo mais puto aqui na zona”, recorda. “Quando havia listas, nos intervalos, sons como o ‘Mãe Gorda’ ou o ‘Drift Furioso’ do Marfox eram claramente os que incendiavam tudo.”

“Na altura era uma cena completamente nova e, pessoalmente, sinto que continua a ser algo novo e fresco, que não é possível reproduzir noutro local. Os kuduros que nos chegavam de forma mais fácil eram sons com letra e mais preenchidos, tipo Bruno M, Rei Helder e Gasolina. Do nada, tens o que para nós era um grupo de putos a fazer cenas super cool e instrumentais mega pesados. Influenciou-me no ponto de vista de como é possível brincar com loops e samples, criar tools e temas de club que aparentam ser mais simples do que são e que criam uma cena de, para quem os ouve, não vai dar para estar parado. O jogo de camadas destes temas, ouvindo em 2006 ou em 2023… Continua a ser muito porreiro para mim interpretar, pensar sobre eles, e ainda trago muitas destas dicas para o que faço hoje em dia num contexto club.”


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