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Fotografia: Renato Cruz Santos
Publicado a: 28/03/2022

As mil e uma possibilidades do instrumento vocal.

COBRACORAL: “A voz não é só melodia e canção. É um discurso que podemos desenvolver”

Fotografia: Renato Cruz Santos
Publicado a: 28/03/2022

O trio COBRACORAL, formado pelas vocalistas Catarina Miranda, Clélia Colonna e Ece Canli, lançou no passado dia 7 de Março o álbum homónimo, que conta com selo Lovers & Lollypops e com produção de José Arantes. Além de ser o seu disco de estreia, o longa-duração apresenta no seu cartão de visita a exploração do potencial da voz através da combinação de diferentes práticas vocais num só universo sonoro – Catarina Miranda explora a oralidade a partir da sua visão enquanto coreógrafa, Clélia Colonna pesquisa os campos do canto polifónico e Ece Canli investiga técnicas de voz expandida.

Com o intuito de sabermos mais sobre as linhas que se cruzam em cobracoral, o Rimas e Batidas sentou-se à conversa, remotamente, com Clélia Colonna para falar sobre o início do colectivo, perceber os detalhes da criação e gravação do disco, como correu a apresentação do grupo no Centro Cultural de Belém, em Lisboa (onde o ReB esteve presente), e o que se segue no futuro para as COBRACORAL.



Queria começar esta entrevista a tentar perceber ligeiramente a história das COBRACORAL. De onde é que surgiu a ideia para criar o colectivo?

Foi um processo longo.  A Catarina e a Ece já tinham um projecto em comum com o Jonathan Uliel Saldanha e já colaboram há muitos anos. Quando eu cheguei ao Porto, há quatro anos, começamos a falar em eventualmente colaborar, mas no início, era mesmo para partilhar as práticas vocais de cada uma de nós. Por exemplo, a Ece Canli tem uma prática com voz expandida, e a Catarina Miranda, que é coreógrafa e theatremaker, tem uma abordagem mais de coreografia ao som, em que o ponto de partida do som é mesmo o corpo, e eu tenho uma experiência também na área da dança contemporânea, mas eu trabalhei, em termos de voz, com polifonia e canto tradicional. Então, essas três coisas diferentes – práticas de voz expandida, a abordagem de som e movimento e a polifonia –, nós pensamos que seria fixe encontrarmo-nos e desenvolver uma prática comum. O início foi assim. Depois, fizemos uma primeira residência — acho que era 2018 — e começamos a desenvolver uma prática própria em pulso – de canto em pulso — com interdependência rítmica e onde nunca podemos sair da estrutura. Começamos a desenvolver essa prática, a fazer improvisações, e foi isso que foi depois a matéria prima para desenvolver o trabalho de composição.

Esse trabalho de improvisação acabou por ser então a base das vossas composições, ou, entretanto, isso já se alterou?

Sim, há vários tempos no nosso trabalho comum. Um é mesmo improvisação. Improvisação pode ser qualquer coisa. Às vezes, não temos uma tarefa, e outra vez, dizemos, “agora vamos cantar em pulso e vamos cantar 40 minutos”, por exemplo. Isso pode ser um ponto de partida. Então, e depois, porque gravamos, quando surge, aparece uma coisa interessante, vamos ouvir e vamos perceber o que é que aconteceu e ver o que é que nós queríamos compor. Então, improvisações é, claro, um ponto de partida do trabalho de composição, mas também havia outros inputs. Por exemplo, a “[ sta-ta-U ]” nós trabalhamos em investigar um pouco essas percussões rítmicas e medianas e tentar desenvolver estruturas rítmicas. Outro exemplo, a “[ Ta-Tu ]”, que é a primeira faixa do álbum foi desenvolvida com um ritmo de nove. Era mesmo o ponto de partida. Queríamos uma coisa caleidoscópica, um ritmo que se transformava e se desenvolvia. Então, por exemplo, a “[ Ta-Tu ]”, o ponto de partida foi mesmo esta imagem de uma coisa extremamente rítmica e não havia nenhuma improvisação ao início para essa peça. E depois também tivemos inspirações ao longo do processo artístico. Por exemplo, nós gostamos de trabalhar hockets, essa relação entre duas performers. Também há uma parte [no disco] que foi desenvolvida sobre essa ideia de hockets. A “[ gɔlfin ]”, a terceira faixa do álbum, foi também desenvolvida com essa ideia de criar uma estrutura horizontal, trabalhar com velocidade, passagem do som no ar, e depois, coisas verticais a cair. Portanto, sim, Improvisações, claro, mas não só.

Ao ouvir cobracoral notei que as quatro faixas do projecto se encontram interligadas. O álbum funciona como uma peça contínua?

Sim. A criação do álbum foi apoiada por um programa da cidade do Porto, Criatório, e o projeto era desenvolver uma peça que fosse uma peça performativa, ou seja, que não é o mesmo formato do concerto tradicional de uma canção. Desenvolvemos temas separadamente, mas depois a pensar na performance, fizemos uma estrutura contínua de cerca de quarenta minutos. Aliás, cinquenta. E depois dessa primeira apresentação no planetário do Porto, em Outubro, fomos aos estúdios da Universidade Católica [do Porto], com o José Arantes e lá gravamos toda a performance [que se ouve em cobracoral]. É por isso que os quatro temas são uma continuidade.

A ideia de interligação foi algo que surgiu durante o processo de composição do álbum?

Não. Aconteceu assim. Mas por exemplo, o segundo tema, “[ kabraʃ ]”, foi desenvolvido a partir de uma das três improvisações que apresentamos no Walk&Talk [festival açoriano onde as COBRACORAL apresentaram, em 2020, a peça corvo / cabras / formigas], e era só uma unidade, mas ao final… Começamos a compor uma coisa antes, que foi a “[ Ta-Tu ]”, e uma coisa depois [a “[ gɔlfin ]”], e então, encaixou na estrutura.

Então vocês reaproveitaram uma das improvisações que apresentaram no Walk&Talk para o disco?

Sim, mas a “[ kabraʃ ]” foi mesmo a improvisação, e depois fizemos um trabalho de escritura a partir dessa improvisação.

Falaste também da questão do movimento de corpos, que é algo que acaba por se refletir na ambiência de cobracoral. Como é que foi depois, em termos de adicionar pequenos efeitos para complementar as vocalizações, decorreu todo o processo de pós-produção do disco? Foi com o objetivo de passar essa ideia de movimento?

Primeiro, o som está sempre em movimento. Também há uma relação óbvia entre o som e o espaço, que é a caixa de ressonância natural. Depois, para o concerto no planetário, o José Arantes achou interessante desenvolver essa espacialização do som e assim havia sempre uma rotação. Uma rotação geral, vamos dizer, entre as colunas. Também a primeira ideia era de utilizar o som surround, para envolver mesmo os ouvidos do público porque o público faz parte deste espaço sonoro. Depois, durante a gravação, há peças que nós gravámos as três vozes juntas, mas também há partes que nós gravámos em voz separadas, e o José Arantes também estava a identificar qual seria o espaço de cada voz. E às vezes há uma voz que tem um tratamento diferente das outras duas, e também temos momentos de paragem, que o som fica mesmo no centro, e outros momentos de rotação e de movimento.

Em termos sensoriais, cobracoral é uma verdadeira experiência, onde cada camada é colocada de forma minuciosa a contribuir para estimular o lado sensorial da música.

Sim. Isso, tenho que dizer, não é só o nosso trabalho. É, primeiro, a maneira de gravar e de mixar do José [Arantes], e depois, o Jonathan Uliel Saldanha fez a masterização. E isso aumentou essa dimensão.

Ainda sobre toda a experiência de cobracoral, algo que se parece observar ao longo do disco é uma tentativa de desconstruir como se pode utilizar a voz enquanto instrumento. Isso foi algo que procuraram explorar?

Sim. Isso, tenho que dizer, é mesmo a pesquisa da Ece Canli, e também interesse forte da parte da Catarina e a da minha, em que a voz é um instrumento. São texturas, intenções, colocações, movimentos também, como mandar um som no espaço, como este som vai tocar o espaço, ou perfurar. Há tantas variações que já podemos… Não é preciso muita melodia às vezes para fazer esta experiência com voz. Por exemplo, o Arvo Pärt, há um documentário no Youtube, não te sei dizer o nome, mas há uma cena fantástica em que ele está a dar uma masterclass a jovens, e está sentado no piano a tocar só duas notas e só a dar atenção a como tocar a nota, qual é a vibração desta corda no espaço. Isso, para mim, é mesmo fantástico. Foi uma coisa, primeiro, ver a voz como um instrumento e o que é que podemos ultrapassar. A voz não é só melodia e canção. Pode ser um discurso que podemos desenvolver. Também com três vozes, e às vezes, porque o estúdio dá essa possibilidade, também, de acrescentar números de vozes, temos nove vozes, harmónicas, que também acrescentam, e conseguimos criar harmonias só neste encontro de três vozes. E isso, a brincar com intervalos específicos. Isso é uma coisa também que, no canto polifónico, acho muito rico, que com três, quatro vozes — esse trabalho não é possível em coro porque perde nuances — é mesmo possível criar muitas harmonias, muitos harmónicos, vibrações, dissonâncias, assonâncias. E a afinação, também, é difícil, só com vozes, porque não temos um ponto de referência que fosse um instrumento estável, mas isso depois dá um espaço de jogo. No início da “[ kabraʃ ]”, por exemplo, nós estamos a brincar com essa definição, ou indefinição, do som.



Já foste falando aqui e acolá ao longo desta entrevista sobre algumas referências para as COBRACORAL. No entanto, não consigo tirar da cabeça a ideia da comparação daquilo que vocês fazem com algumas performances da Meredith Monk. Que outras influências tiveram em conta para este trabalho?

Então, a Meredith Monk é a super referência, claro. Por exemplo, um trabalho que nós gostamos muito é o trabalho da compositora Julia Wolfe, que fez uma colaboração com um trio baseado no Norte da Europa que se chama o Trio Mediæval, numa composição que se chama Steel Hammer, que é um álbum que nós gostamos muito. Também a Mary Jane Leach, que faz composições para, às vezes, nove vozes. A Catarina Barbieri, que faz uma música minimal e progressiva. A Meara O’Reilly, que tem um álbum fantástico que é só hockets [Hockets for Two Voices]. Acho que foram as referências em termos de artistas mais fortes para nós. Também aconteceu que, a Catarina e eu, estávamos separadamente a fazer um training de canto carnático e isso também foi uma inspiração. Também o sistema de Fibonacci, essa progressão, foi a estrutura que inspirou “[ sta-ta-U ]”, que é o último tema [de cobracoral].

Não estava à espera da menção da sequência de Fibonacci. Como é que funcionou estruturar “[ sta-ta-U ]” em torno dessa progressão numérica?

Fibonacci, então, é uma estrutura progressiva e aditiva de números. Um, dois, três, cinco, oito, treze, vinte e um, etc. É assim. E no início, nós pensamos, “ok, vamos pegar numa escala qualquer”, e então, decidimos notas. Tínhamos seis ou sete notas só, numa escala ascendente, e no início, foi em pulso. Então, cada uma de nós tinha uma estrutura quase idêntica, com contas e notas baseada no Fibonacci, mas básico, e em pulso, só com uma diferença de um tempo para nós. E fizemos assim, a passar, a passar, a passar a coisa, e depois, fomos afinando e trabalhando, e agora, não sei se tem muito a ver com o Fibonacci [risos]. E depois começamos a compor, a cortar, a partir daí.

Nesta entrevista já falaste brevemente do Criatório, concurso anual de apoio à criação e programação artísticas no Porto. Quão importante foi esse apoio dado pelo concurso para que o projeto ganhasse vida?

Foi decisivo, porque deu-nos uma oportunidade e um apoio real, e também um deadline para nós podermos fazer o projeto – e tínhamos de ter um projeto sólido para nos candidatarmos. E então, por causa desta candidatura, convidamos a Fátima Fonte, que é uma compositora do Porto, para dar apoio à composição, e também a Magna Ferreira, que é professora na ESMAE [Escola Superior de Música e Artes do Espetáculo] de canto, e também tem uma prática de canto com música antiga, e graças ao Criatório, tivemos a necessidade, vamos dizer, de convidar pessoas que fazem mesmo o projecto crescer. E também é desafiante. Elas as duas foram uma ajuda espetacular, mas também tivemos a oportunidade de convidar o José Arantes, o Jonathan Saldanha, que é um músico extraordinário. Também para o Planetário convidámos uma artista visual a desenvolver um vídeo abstracto para apresentar no tecto do planetário, a Inês Castanheira. [O Criatório] foi mesmo uma oportunidade para reunir pessoas que nos podiam apoiar e desafiar o projeto a crescer. E depois disso, a Lovers & Lollypops cruzaram-se com o nosso trabalho, e isso também dá agora um outro, outras perspectivas, outro apoio, e é outro desafio. E é fantástico trabalhar com eles.

Obrigada por mencionares a Lovers & Lollypops, ia mesmo agora perguntar por eles [risos]. Eles apostam em editar coisas que muito provavelmente não teriam espaço noutras editoras portuguesas. Eles dão essas oportunidades.

Sim, sim. O nosso álbum é o número 10026 da Lovers & Lollypops, então, já é muito [risos]. Claro que nós entramos também com o projecto Criatório e que tivemos dinheiro para fazer o álbum já. Mas com a Lovers, o projeto ganhou uma outra dimensão. Foram eles que arranjaram o estúdio da Católica e depois eles fazem muitas coisas acontecer. Fizemos uma apresentação do álbum no CCB [Centro Cultural de Belém] a semana passada – era a Carta Branca do Jonathan Uliel Saldanha –, mas também foi a Lovers & Lollypops que fez a produção toda. E dá muita visibilidade ao projecto, e são fixes porque eles também têm artistas com quem já colaboram, por exemplo, em termos de vídeo ou som, masterização, mixing, e assim. Podemos encontrar pessoas, trabalhar com pessoas, e também é um estímulo super positivo. E desculpa, esqueci-me de mencionar também a nossa artista e designer — que nós adoramos –, a Anja Kaiser, que está baseada na Alemanha, e isso também foi parte da aplicação do projecto do Criatório. Também convidar alguém para dar uma estética gráfica forte ao projecto.

Diga-se que a capa do disco é mesmo linda. Foi uma das precisas coisas em que reparei e me fez querer ouvir o álbum. Houve algum tipo de trabalho conjunto entre vocês e a Anja para a criar a capa de cobracoral?

Não, é mesmo o trabalho dela. A Anja Kaiser tem uma estética muito forte, ela trabalha muito com músicos. E nós, claro, mandamos a nossa música e falamos sobre as cores que gostamos, as dinâmicas. Mandamos fotografia de inspirações. Nós queríamos cores fortes, passar sempre essa ideia caleidoscópica, de transformação, mas depois foi mesmo o trabalho dela. Nós lançamos o convite, demos umas ideias e feedbacks, mas o trabalho é dela.

Sim, era isso que estava a tentar perceber, se tinha existido essas rondas de feedback e alterações, até chegar à versão final da capa.

Sim, mas não é uma colaboração. É um trabalho artístico feito para nós [risos].

Falaste também da apresentação do CCB, como parte do ciclo Carta Branca, programado pelo Jonathan Uliel Saldanha. Como é que correu essa primeira apresentação?

Foi genial. Primeiro, o CCB tem condições e tem uma equipa que faz crescer [as performances]. São pessoas que trabalham bem. Fomos muito apoiadas, mesmo pela equipa técnica. O Jonathan também fez as luzes para nós. Era uma performance num palco, tínhamos que respeitar essa coisa frontal, palco e público, mas o sistema de som… Havia seis colunas em torno do público. Então, era mesmo imersivo também, e com as luzes que o Jonathan desenvolveu, havia também um trabalho de silhuetas e nós estávamos a mexer também. Nós cantamos sempre em triângulo, mas existem sempre movimentos e mudanças pequeninas. Estou contente, estamos contentes, é uma data que correu bem.

No vídeo da vossa performance para o 89º aniversário do Teatro Municipal do Porto (Rivoli), em Janeiro do ano passado, reparei nessa questão da disposição em triângulo e dos movimentos que iam fazendo. Qual o objectivo desses elementos?

Sim, mas também para manter a compostura. Cantar em conjunto é preciso olhar, ver o que a outra pessoa está a fazer. Às vezes, há uma mudança qualquer e trabalhamos juntas. Depois, sim, esses movimentos das mãos são mesmo para manter o pulso e o ritmo se não a nossa estrutura pode cair completamente porque não temos nada. Não temos apoio, não temos metrónomo [risos]. E depois, os efeitos também, os reverbs, que ajudam claro.

Última pergunta então. Que é se segue para as COBRACORAL no futuro? Vai haver mais performances semelhantes à que aconteceu no CCB?

Espero que sim, mas para já, não sei. Agora o nosso próximo passo é o lançamento do álbum em vinil e isso, normalmente, não vai acontecer antes do Verão. Mas não temos datas marcadas. Temos um calendário que ainda não está confirmado. Claro que vai haver o lançamento no Porto e, depois, vamos ter concertos. Mas para já, não posso anunciar porque tudo depende da data de quando o vinil vai ficar pronto, e isso é um pouco difícil de estipular quando vai acontecer.


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