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Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 15/03/2022

Uma magia que quase se desvaneceu (e não por culpa própria).

COBRACORAL no CCB: crónica de um ritual contrariado por egotismos

Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 15/03/2022

É já uma velha história. O problema de assistir a determinados espectáculos em espaços como o Centro Cultural de Belém ou a Fundação Calouste Gulbenkian é o facto de algum do público presente não saber ao que vai, só sabendo que vai porque é o CCB ou a Gulbenkian e ir ao CCB ou à Gulbenkian é “fino”. Consequências: saídas ruidosas de pessoas no meio dos espectáculos, porque não gostam e fecham-se às propostas que lhes são feitas, conversas acima do nível do cochicho porque esses falantes desligam a atenção ou acham-se muito importantes e os outros que se lixem, e mexeres nervosos (e enervantes) nas cadeiras porque se sentem incomodados e percebem que ir a um bar beber um gin tónico teria sido mais proveitoso. Quando a música que é apresentada e o que se passa em cena exige a máxima concentração, como era o caso, no passado sábado, da actuação de COBRACORAL no Pequeno Auditório do CCB, o efeito pretendido – um ritual imersivo de som, movimento, luz e cor – é interferido por tais factores estranhos e quem realmente se interessa, quem vai porque realmente quer estar ali, fica impossibilitado de tirar o máximo usufruto das situações.

Se há uma performatividade de palco, há também de plateia, e esta faz parte, inevitavelmente, dos resultados obtidos por um concerto. Quando esta prejudica a percepção do que ouvimos e vemos passa a fazer parte do impacto pretendido pelos artistas ou da falta dele. Nesta ocasião, o comportamento do público esteve demasiado perto de colocar em risco o que estava a acontecer e importa consciencializarmo-nos todos de que existe um problema – social, cultural, de educação – por resolver. Tem um nome: falta de civismo. Há públicos que não têm noção cívica e que não sabem estar em espaços partilhados. Uma sala de espectáculos não é uma sala-de-estar, a de lá de casa, e há gente que não compreende isso, no seu umbiguismo existencial e de classe.

E que especial é o projecto COBRACORAL, constituído por um trio de mulheres convidado por Jonathan Uliel Saldanha (HHY & The Macumbas) para o seu ciclo Carta Branca: a portuguesa Catarina Miranda, a francesa Clélia Colonna e a turca Ece Canli. O que nos apresentaram não é propriamente novo – vem na decorrência das práticas de décadas de uma Meredith Monk nos Estados Unidos ou de uma Fatima Miranda em Espanha –, mas estava bem feito e era particularmente interessante. Técnicas vocais expandidas das músicas contemporânea e experimental casavam-se com os patrimónios corais do Oriente e do Mediterrâneo, num entendimento do uso da voz que ligava esta à acção do corpo, constantemente o envolvendo na formulação de um instrumento completo e totalmente investido. A música era circular, com a roda dos corpos a determinar essa mesma circularidade e os gestos codificados e coreografados das mãos a funcionarem quase como partituras, em termos de definição rítmica, de mudança estrutural, de ênfase. 

O desenho de luzes criava um espaço outro que não o material, instalando uma realidade alternativa, de sonho e assumidamente artificial, correspondente à síntese multicultural da música. E não era o palco apenas que recebia os focos de cor: por meio das luzes que nos eram dirigidas também o público ficava em cena, assim sendo incluído – à excepção daqueles assistentes que não se deixaram incluir, como descrito acima. As repetições de motivos, os mantras polifónicos, as melopeias, os sequencialismos em elipse, as harmonias, uns quantos sons que nem se diria poderem provir das vozes das três artistas, criavam, ou pretendiam criar (volte-se ao início deste texto), uma ambiência hipnótica que nos arrebatasse e retirasse do resto do mundo e dos seus conflitos, nem que fosse por uma hora.

O mundo impôs-se, ou pelo menos a fatia burguesa dele, em toda a sua arrogância. Ou seja, até quando se encena uma ideia de colectivo, em que o todo artístico é feito de partes individuais bem medidas e colocadas ao serviço do conjunto, sendo essa uma das grandes valências e premissas do conceito CobraCoral, impõe-se o poder dos egos. Nesta ocasião, de egos que não estavam sequer diante de nós, nas tábuas, mas à nossa volta, agitando-se nas poltronas, e que quase conseguiram ter o protagonismo da noite. Temos o direito de não gostar, não temos é o direito de incomodar com isso quem gosta. 

No rescaldo deste concerto, justifica-se uma interrogação: como é possível não gostar, um bocadinho que seja, de algo tão belo? O que se passou introduz um outro problema para além do aqui protestado, o das definições de gosto nas urbes do nosso tempo. Ao que parece, os níveis de gosto estão muito diminuídos, e isso é preocupante. Deu Uliel Saldanha nozes a quem não tem dentes, o que é igualmente uma velha história.


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