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Fotografia: Campbell Addy
Publicado a: 23/02/2022

Na paz.

cktrl: “O mergulho no silêncio pode ser algo tão importante como os períodos de mais intensa produtividade”

Fotografia: Campbell Addy
Publicado a: 23/02/2022

cktrl “recebe-nos” – ligando a câmara do seu telemóvel… – enquanto lancha. Está de tronco nu, com uma toalha ao pescoço e tem atrás de si uma estatueta de tamanho considerável da divindade hindu Lord Shiva, pormenor que condiz com o artista que no final da entrevista revela que o seu próximo EP, Yield, foi gravado nas montanhas da Jamaica e que é um trabalho que representa a paz. Música urgente e ultra-necessária, portanto, a julgar pelas notícias que diariamente nos entram casa dentro. Em Novembro passado, essa mesma “paz” serviu de guia à sua apresentação no Super-Sonic Jazz de Amesterdão. Na altura escreveu-se aqui que “cktrl (pronuncia-se ‘Control’), um produtor, DJ, multi-instrumentista cujo verdadeiro nome é Bradley Miller, é um artista britânico com raízes caribenhas que tem vindo a erguer uma voz própria, distinta e singular, com uma profunda vertente meditativa. No Paradiso, a sua música foi uma espécie de panaceia, que fez o público levitar durante uma hora: sobre bases pré-gravadas de pianos e harpas, e evoluindo do sax soprano para o tenor, cktrl contornou clichés pós-coltranianos, e apresentou um ultra-espiritual bálsamo feito de frases longas, poéticas, sempre melodicamente assertivas, exibindo uma concentração total”.

Esse primeiro contacto com cktrl criou uma forte impressão que se confirma com a entrevista que serve de antecipação à sua passagem no próximo sábado pelo festival ID_NOLIMITS que decorre no Centro de Congressos do Estoril: artista reservado, de tom de voz calmo, cktrl fala-nos da sua relação com a indústria, com o silêncio e com a criatividade, ajudando a minimizar um pouco a aura de mistério que o rodeia. Nas plataformas de streaming encontramos “apenas” os EPs Robyn, de 2020, e zero, trabalho de 2021. E se em faixas como “Robyn” ou “mazes” é esse lado mais meditativo e planante da sua música que assoma ao primeiro plano, expondo um lado profundamente melódico através do uso dos saxofones tenor e soprano, já noutras, como “zero”, em que colabora a cantora Mereba, ou “As You Are”, é uma altamente personalizada visão do R&B de recorte mais electrónico que se destaca. E é algures entre mundos que o músico vai procurando construir o seu lugar, sem se preocupar em pertencer a alguma coisa que não seja, em primeiro lugar, determinada pela sua própria consciência.



Estive no Super-Sonic Jazz Festival em Novembro último e poderia jurar que a plateia levitou durante a tua actuação. O concerto que vais trazer ao ID_NOLIMITS é o mesmo? Quero dizer, vens sozinho?

Penso que sim… Sim. Terá uma vibe semelhante. O novo material ainda não saiu e só devo começar a ensaiá-lo em Março, por isso será algo na mesma linha, sim. Vai ser bom, porque nunca estive em Portugal e as pessoas aí não conhecem a minha música.

Como é que lidas com este ambiente de festivais, com muita gente no cartaz?

Para mim é igual, isso não me afecta. Quer dizer, o que eu faço é normalmente tão diferente do que o que os outros artistas apresentam que nem sequer há aquela coisa de “será que encaixo bem no cartaz ou não?”. Faço a minha cena e pronto. Quando eu era mais novo costumava pensar nessas coisas, em como eu me saía em comparação com outros artistas, esperando ser sempre tão bom como os meus pares, preocupando-me com a minha posição no cartaz, esse tipo de coisas. Mas, entretanto, o meu foco mudou: o que eu quero é simplesmente mostrar a minha verdade. E nem me preocupo com o resto porque, realmente, só eu é que posso fazer de mim. Mais ninguém o pode fazer.

Este festival em Portugal é um dos primeiros sinais de um muito desejado regresso à normalidade após dois anos muito estranhos. Como é que lidaste com as restrições, o confinamento? Foi um período criativo ou nem por isso?

Bem, foi e não foi. Por um lado, não foi assim tão diferente da minha vida normal, porque eu passo muito tempo dentro de portas de qualquer maneira. Nesse sentido não foi assim tão diferente. O que era diferente era apenas a noção de que a alternativa – sair quando quisesse – não existia. Se me apetecesse sair da hibernação e meter a cabeça de fora, não o poderia fazer. Isso foi o que achei realmente estranho: não poder ir a uma festa, ou ver amigos e família. Essa foi a parte estranha. No que diz respeito ao trabalho criativo, penso que foi igual para mim.

Tenho obtido todo o tipo de respostas a isso: já conversei com músicos que me garantiram que nunca escreveram ou tocaram tanto como no confinamento e ouvi outros confessarem que nem sequer se conseguiam aproximar dos instrumentos e que passaram esse período em estado absolutamente letárgico…

Sim, é verdade, eu mesmo fui captando esse tipo de reacções muito variadas das pessoas com quem fui conversando. Mas penso que a nossa percepção também foi alterada pelas redes sociais: a dada altura parecia que era muito cool mostrar-se que se estava a produzir muito, fosse o que fosse. Mas, sabes uma coisa?… Por vezes uma pausa e o mergulho no silêncio pode ser algo tão importante como os períodos de mais intensa produtividade. Fazer pausas também é necessário.

Uma coisa que senti na tua apresentação de Amesterdão – e acabaste de mencionar o silêncio – foi o teu profundo respeito pelo espaço entre as notas, pelos silêncios. Já ouvi alguém dizer que toda a grande música aspira ao silêncio…

É algo de que gosto muito, devo dizer. Passo longos períodos sem ouvir música. Nem música, nem outra coisa qualquer. O silêncio ajuda a clarear as ideias. É como o equilíbrio entre o acto de criar e o de não fazer nada. Quando estou a compor posso ouvir outra música ou não. Sou capaz de conduzir e ir apenas absorto nos meus pensamentos, em silêncio absoluto e daí podem nascer ideias. Mas o ruído – música, tráfego, vida – pode ter o mesmo efeito.

Há alguma história especial por trás da tua escolha de instrumento?

Devo dizer que foi algo muito natural: na escola primária começámos a ter algumas noções de música, muito básicas, mas à medida que fomos progredindo chegou ali a um momento em que era preciso escolher um instrumento. O primeiro que me foi apresentado foi o oboé. E, na altura, para mim o oboé fazia-me lembrar o Aladino, os desenhos animados em que aparece sempre alguém a encantar uma serpente. E na minha cabeça isso fez sentido: “boa, não vou ser apanhado por nenhuma cobra porque vou aprender a tocar o instrumento que as encanta” [risos]. Mas quando cheguei a casa e comecei a tentar tocá-lo, aquela coisa da dupla palheta fazia-o soar estranho aos meus ouvidos, quase como um pato… E eu pensei: “este não é sexy, vou largar isto”. E além disso eu acho que estava a provocar uma dor de cabeça colectiva lá em casa [risos]. Claro que a família encorajava, mas lá no fundo eles também sabiam que aquilo não estava a resultar. Então, eu devolvi o oboé à escola e na semana seguinte apanhei um tipo a tocar flauta. Pensei: “Hum, talvez… posso tentar”. Tive para aí umas duas lições de flauta. E depois na semana seguinte alguém apareceu com o clarinete: e as coisas aí pareceram encaixar-se. Era um professor mais novo e a forma como ele tocava com grande estilo agarrou-me: no princípio ele foi uma grande inspiração. Ele era “wavy”. Foi assim que peguei no clarinete e depois, um par de anos mais tarde, ele encorajou-me a pegar também no saxofone. E foi isso.



Para lá do teu professor, houve algum modelo que seguisses com mais atenção? Estudaste algum saxofonista assim de forma mais intensa? Pergunto porque o teu som parece muito desligado de “escolas” específicas…

Não posso dizer que tenha devotado grande atenção a algum saxofonista em particular, não. Aprender um instrumento pode ser uma coisa muito técnica: com o clarinete era acerca de exercícios, de repetição. Chegava a casa metia um standard qualquer a tocar e praticava assim por horas, durante uns três ou quatro anos. Depois quando comecei a trabalhar a tempo inteiro, já só tocava de vez em quando, quando saía do emprego. Paralelamente a isto, quando eu fiz para aí uns 12 anos comecei a fazer beats também. Para aí até aos 21 concentrei-me mesmo em dominar a arte de fazer beats. Nesse período não estive tão focado no instrumento. Tocava de vez em quando, mas nem me passava pela cabeça combinar as duas coisas: as produções e o instrumento que eu tocava. Não se misturavam essas duas dimensões na minha cabeça. Uma coisa era tocar o instrumento, outra era fazer beats para amigos, tocar como DJ ou algo assim. Esses dois mundos só se cruzaram muito mais tarde.

Mas os teus amigos, aqueles com quem te davas por causa do beatmaking, sabiam que tocavas um instrumento?

Bem, não era nenhum segredo: eu fazia isso na escola, portanto todos sabiam. Nunca foi o caso de me sentir envergonhado por ter que levar um instrumento para a escola ou isso. Quer dizer, nem tal me passava pela cabeça. Estava apenas a fazer a minha cena. O que outros pudessem pensar não me afectava. Nunca fiz nada só porque estava toda a gente à minha volta a fazer. Acho que sempre escolhi o meu próprio caminho. Na vida, acho que fui percebendo isso com o tempo, consegue-se fazer qualquer coisa se se tiver confiança. Sim, às vezes pode ser preciso forçar um pouco, mas tudo é possível. Por isso eu metia-me no autocarro, com o meu instrumento na mão ia para a escola e simplesmente fazia as coisas acontecerem. Mas, na verdade, toda a gente à minha volta fazia isso: cada um na sua cena. Eu não era especial por causa do que escolhi fazer.

Dominar a arte de fazer beats e ao mesmo tempo tocar saxofone ao nível a que tu tocas… é como se fosses muito capaz em duas diferentes artes marciais ou um craque em duas ciências distintos. Na tua cabeça são coisas complementares, diferentes formas de aceder aos mesmos recursos criativos?

Vou ser honesto: por vezes parecem ser a mesma coisa e penso que a melhor maneira de explicar isso é dizer que quando estou a fazer a melodia num beat ou a criar uma progressão de acordes sinto que é a mesma coisa quando estou a tocar saxofone porque estou sempre a tentar traduzir um sentimento, uma vibe. Como quando estou a tentar meter em notas algum tipo de pensamento mais nostálgico. Mas quando estou a programar baterias e baixo, quando estou a misturar os sons, aí acedo a uma diferente parte do cérebro, é algo mais técnico e mais activo. Já o instrumento exige capacidade e uma abordagem mais criativa. Nunca se trata de fazer algo para bater, para funcionar num sistema de som ou isso. O que me activa esse lado mais criativo que canalizo através do instrumento ou o lado mais melódico das produções são coisas da vida, algo que sucede numa relação ou isso. Não é que tenha que ser algo de negativo, mas é quase sempre – esse impulso para criar melodias – uma resposta a algo que necessita de uma resolução. Ou… hum… creio que “resolução” é mesmo a melhor palavra aqui.

É difícil arrumar a tua música numa prateleira específica… Jazz, r&b, música espiritual, clássica… são tudo classificativos que já vi serem-lhe aplicados, mas nenhum lhe parece fazer inteira justiça…

O que eu posso dizer em relação a isso é que, quando estava a crescer, quando estava a produzir, nunca me preocupei com o que estava a bater ou se era suposto seguir uma tendência qualquer, sempre me limitei a fazer a minha própria cena. E eu acho que é perfeitamente possível cada pessoa ter a sua própria voz. Podemos ouvir muita gente a falar em liberdade de expressão a incentivar a que cada um se expresse, mas a verdade é que poucos o fazem por causa das pressões dos pares ou da sociedade para que nos encaixemos em determinada caixa ou lugar. Mas criar o nosso próprio espaço também pode ser uma opção.

A ambição pode ser expressa de muitas maneiras e não é invulgar ouvirmos artistas dizerem que querem vender um milhão de discos ou serem vizinhos de Kanye West, mas mais invulgar será ouvir alguém – como é o teu caso – expressar a sua ambição dizendo que quer que as suas obras sejam adicionadas a programas escolares para que miúdos que se parecem contigo tenham referências mais próximas, com a mesma herança cultural, o mesmo tom de pele…

Obrigado, acho que nunca tinha visto isto apresentado desta maneira. Acho que é natural procurar algo que seja duradouro e que tenha um significado mais profundo. Todos queremos ganhar dinheiro e conseguir sustentar a nossa vida, as pessoas à nossa volta, deixar toda a gente confortável. Poder fazer isso com a minha arte é um privilégio. Mas sim, poder tocar as pessoas de outra maneira, gente mais nova, até gente da minha idade, pessoas que vêm do mesmo lugar que eu, que se parecem comigo, isso é importante. Porque muitas vezes, essas pessoas nem consideram aquilo que eu faço como uma hipótese de vida. Os exemplos são tão raros… Muitas vezes pensamos: “como posso mudar o mundo?” Mas o que eu percebi, em relação à minha comunidade, é que nem sempre é acerca daquilo que eu possa ter para dizer, mas sim e simplesmente acerca de existir e de fazer o que eu faço. Só isso já pode ser uma referência positiva. Trilhando o nosso próprio caminho podemos instigar mudança. O que me faz gostar do meu trajecto é sentir que ainda está muito no início e que as pessoas que me conhecem, aquelas que acreditaram em mim, sentiram algum impacto nas suas vidas por causa de mim e isso vale muito.

Para terminar: o que é que 2022 ainda te reserva? Haverá um álbum no futuro próximo para suceder aos EPs Robyn e zero?

Quero muito fazer um álbum… um dia. Material para isso não falta, mas sabes uma coisa? A música é uma actividade criativa, mas também há nela um lado de negócio. Para fazer um álbum com algum tipo de ambição, as coisas têm que estar certas nesse lado do negócio, são precisos recursos para realizar uma visão. Quero ter a certeza que o negócio está ao nível da música. Há família que depende de mim e eu quero certificar-me que estou na melhor posição possível para apresentar a minha arte. Estive na Jamaica no último mês e meio, levei algumas maquetes e terminei lá um novo projecto. Tem por título Yield e foi gravado nas montanhas, tem cinco faixas e é muito tocado pela paz. Ainda não sei exactamente quando sairá. 


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