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Fotografia: Jelmer de Haas
Publicado a: 21/11/2021

Uma maratona intensa no Paradiso.

Super-Sonic Jazz Festival’21 – Dia 3: entre a meditação de cktrl e a explosão dos Sons of Kemet

Fotografia: Jelmer de Haas
Publicado a: 21/11/2021

Pode dizer-se que as duas primeiras noites do Super-Sonic Jazz Festival, que hoje chega ao final, foram uma espécie de prelúdio para o que estava reservado para o fim-de-semana. Cinco nomes no cartaz de sexta, outros tantos no de sábado, com pesos claramente mais pesados a imporem na sala principal do Paradiso uma natural expectativa que se sentia no ambiente geral, eléctrico.

Sexta-feira foi, por isso mesmo, dia de afluência especialmente intensa. Tendo em conta que o primeiro concerto começava às 18h30 e o último estava prometido apenas para as 23h30 e uma vez que os restaurantes estão agora a encerrar em Amesterdão pelas 20 horas (tal como, aliás, o bar do recinto – mais sobre este pormenor um pouco mais adiante), seria de esperar que a sala não enchesse logo de início e que se fosse compondo com o avançar da noite. Mas, antes das 18 horas, hora de abertura de portas, já a fila estava compacta à porta da sala que encheu logo para o primeiro nome do cartaz, depois de verificados com rigor os certificados de testagem ou vacinação do público. Plateia e dois níveis de mezzanine preenchidos, os lugares disponíveis deveriam ser bem perto de mil e o evento estava esgotado.

O público, como por aqui se sublinhou a propósito da noite de quinta-feira, é bastante jovem, etnicamente diverso, equilibrado em termos de espectadores dos sexos masculino e feminino. É também mais barulhento do que o que se vê em Portugal em eventos que carregam a palavra “jazz” no cartaz, não se limitando a premiar solos com aplausos, mas com sonoras manifestações de entusiasmo, o que poderá assemelhar-se mais às interacções plateia-palco típicas noutro tipo de concertos. Ou talvez seja apenas uma questão cultural. Certo é que ninguém regateia ou se contém na hora de deixar claro o quanto está a gostar de um determinado artista.

Esse mesmo público é igualmente dotado de criativos recursos para contornar não apenas a falta de comida no recinto como o fecho dos bares às 20 horas: comida traz-se de casa – tupperware com pasta com cogumelos e outros vegetais, no caso da pessoa ao nosso lado… – e para resolver a falta de bebida no bar nas últimas quatro horas de concertos há uns grandes jarros de cerveja e garrafas de vinho branco ou tinto de abertura fácil (a rolha poderia complicar a questão) que se podem levar para o lugar para garantir a hidratação necessária para aguentar a maratona. E pode dizer-se que, pelo menos na zona da plateia, o público estava bem hidratado, obrigado.

A tal corrida de fundo de sexta-feira começou com o produtor e beatmaker Wonky Logic, alter-ego de Dwayne Kilvington que já este ano lançou Transdimensional Fuunk (Transposed for Human Consumption) na Super-Sonic Jazz, a editora de Kees Heus que é também o programador deste festival.

À chegada, Wonky Logic explicou à plateia já totalmente preenchida ao que vinha: armado com keytar para os baixos, um par de sintetizadores (incluindo um que ele confessou nunca ter usado antes, pedindo aliás dicas a quem se encontrava na audiência) e um dispositivo de programação do género da MPC Live, Wonky Logic oscilou entre cadências hip hop, broken beat e até dubstep para nos dar uma visão cibernética e futurista da música, com laivos de jazz de fusão, tudo imaginativamente cozinhado diante dos nossos olhos e ouvidos com suficiente classe para arrancar os primeiros gritos de entusiasmo de uma plateia que não escondia a vontade de festejar, apesar dos repetidos apelos da host (que apresentou cada um dos nomes antes das suas subidas ao palco) para que toda a gente permanecesse sentada.

Seguiu-se Ego Ella May, cantora que já passou pelos estúdios do COLORS, e que chega do Reino Unido envolta em boas referências – é uma “rising star” de acordo com a Jazzwise. Acompanhada apenas por um músico que dispôs de três teclados e beats pré-programados para tecer a névoa harmónica etérea por onde se embrenhou a voz seguríssima de Ella May, cativando a audiência com um r&b de recorte modernista como o hino “Girls Don’t Always Sing About Boys”. De facto! E Ego Ella May é uma das que tem muito mais a dizer.

O primeiro momento realmente incrível do Super-Sonic Jazz festival estava reservado para o artista seguinte, cktrl (pronuncia-se “Control”), um produtor, DJ, multi-instrumentista cujo verdadeiro nome é Bradley Miller, artista britânico com raízes caribenhas que tem vindo a erguer uma voz própria, distinta e singular, com uma profunda vertente meditativa. No Paradiso, a sua música foi uma espécie de panaceia, que fez o público levitar durante uma hora: sobre bases pré-gravadas de pianos e harpas, e evoluindo do sax soprano para o tenor, cktrl contornou clichés pós-coltranianos, e apresentou um ultra-espiritual bálsamo feito de frases longas, poéticas, sempre melodicamente assertivas, exibindo uma concentração total. E perante a primeira ovação entusiástica da noite, o saxofonista saiu como entrou, calado, sem dizer uma única palavra, ciente de que a mensagem tinha sido plenamente compreendida.

Já com o fôlego colectivo recuperado, o interlúdio seguinte foi marcado por mais uma curiosa selecção de vídeos no ecrã gigante que nos distraía a todos da mudança de set a decorrer em palco: clips de MF DOOM num festival de jazz fazem pleno sentido, é importante que se diga. E o clamor colectivo do público em resposta ao malogrado herói mascarado deixa claro que estas cabeças que consomem jazz não têm os ouvidos fechados a outro tipo de sonoridades.

E seguiram-se os Sons of Kemet. Shabaka Hutchings com os bateristas Tom Skinner e Eddie Wakili-Hick primeiro, com Theon Cross a passar toda a introdução a dançar ao lado da sua tuba. Ou o dilúvio primeiro antes do trovão chegar. E depois, sim, o tremor de terra quando Theon finalmente se fez ouvir. 

O concerto que os Sons of Kemet apresentaram no Paradiso, chamando pontualmente a palco essa voz da negritude combativa que é Joshua Idehen, verdadeiro grito de liberdade solto num local que foi também (como de resto o nosso país…) foco de histórica opressão, tem algo de poética justiça, de vital redenção. Há fúria na apresentação do grupo, que também não professa uma palavra para lá das que existem na poesia de Idehen, mas que deixa uma clara mensagem bem entregue ao tal público etnicamente diverso que, certamente, terá igualmente sentido de forma diversa aquela avalanche de gritos professados através do ritmo e também do absolutamente brilhante saxofone de Shabaka e da funda e telúrica tuba de Theon. Cada um dos músicos em palco é dotado de incríveis recursos técnicos, mas todos se submetem a uma sonora massa colectiva que existe para ser una e indivisível. E tudo junto chega a ser avassalador. Esta é música que esmaga para que depois todos possamos renascer, música que purifica para que todos depois possamos evoluir. E perante isto, como se uma mola colectiva tivesse sido activada por debaixo de cada uma das cadeiras, toda a gente no Paradiso – mas mesmo toda…! – se levantou, entregando os seus corpos a esse irrecusável ritual. Impressionante.

A noite chegou ao fim com os Steam Down, colectivo que acaba de editar Five Fruit e que se apresentou com baterista, dois teclistas, saxofonista e com os vocalistas Tinyman e Afronaut Zu a combinarem tons hip hop, drill e grime, numa entrega bem mais tranquila do que a que os Sons of Kemet protagonizaram, mas ainda assim representativa da múltipla e rica paisagem musical londrina. Um bem-vindo come down depois do voo estratosférico em que fomos levados pelo grupo anterior. Mas aterrar assim, numa música que parte do jazz para abraçar as diferentes pulsações de uma cidade tão vibrante como Londres, soube muito bem. E deixou a audiência pronta para um sábado que prometia, com actuações de Moses Boyd, Emma-Jean Thackray, Nubya Garcia e outras mais até alinhadas para a segunda maratona super-sónica do Paradiso, em Amesterdão.

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