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Fotografia: Nuno Martins
Publicado a: 29/06/2023

À boleia dos concertos de Sérgio Carolino e Carlos Bica.

Causa|Efeito’23 — Dia 1: e pelo Vicentino se vai

Fotografia: Nuno Martins
Publicado a: 29/06/2023

Teve ontem início um novo festival de Jazz em Lisboa de nome Causa|Efeito — O Novo Jazz Na Nova. Se a primeira parte remete para uma das matrizes fundacionais do jazz, isto é, o constante diálogo entre os músicos de jazz e a resposta que determinada acção provoca, segundo as palavras do seu programador Pedro Costa, a segunda fixa as coordenas espácio-temporais do mesmo — a Universidade Nova de Lisboa – Campus Campolide e a celebração do seu 50º aniversário.

O final de tarde começa em sobressalto. Entrada no pátio, bem próxima da “Mesa Redonda – Jazz que presente”, que só tivemos oportunidade de assistir aos minutos finais. Desassossego no pátio, pois parecíamos entrados em O Lobo de Wall Street, sem os devaneios em branca, mas cujas conversas dos presentes deverá ter sido carregada de anglicismos – deal, stakeholder, shareholder. Não por isto, porque o que nos prende não é linguística, nem semântica, mas por ter sido constantemente acompanhada por um saxofonista vestido a preceito, calça beije e camisa azul clara, a tocar versões de Michael Bolton e sucedâneos. Jazz liberal? Jazz WhatsApp? Seguramente o presente e o futuro do jazz não passarão por aqui. Desejo sentido e revindicado a cada minuto e em cada prece. Adulterando o título do ciclo (“Isto é jazz?“) na Culturgest – “Isto não é jazz, pois não?”

Felizmente, Sérgio Carolino demonstrou que outros caminhos são possíveis. Aclamado tubista, que editou no ano passado Below 0, pela Clean Feed. Se o domínio do instrumento é por todos reconhecido, o que sobressai do concerto, que teve lugar no lindíssimo átrio fronteiro à biblioteca, é a capacidade de ligar os sons da tuba transformada a uma componente mais carregada de efeitos electrónicos. Ritmo bem conseguido, num contínuo de meia hora que serviu de abertura aos quatro dias. Um instrumento peculiar que o próprio batizou de “Lusófone Lucifer”, que (e transcrevendo texto de apresentação) “Trata-se de um instrumento que ele próprio concebeu, inspirado no ‘Orenophone’ do tubista britânico Oren Marshall, e construiu com peças antigas de algumas tubas de sino frontal usadas em estúdio nos anos de 1950 e 1960.” O “Lucifer” provém, segundo explicações do próprio, da série televisiva Duarte e Companhia, de uma personagem subalterna a Átila de nome Lucifer. Pensávamos nós que tal designação se devia às “várias figuras do folclore associadas ao planeta Vénus”, da “tradução em latim de ‘estrela da manhã’” ou mais comumente como outra designação para diabo, belzebu, chifrudo. Mais descansados ficámos neste aspecto. No entanto, a pensar que uma articulação mais intensa entre o “Lusófone” e a electrónica, utilização de micro-objectos e/ou outros efeitos dariam uma textura e derivas múltiplas “luciferaneanas”, logo mais cruas, sujas e até de certa forma sarcásticas. Espelho dos tempos de hoje.

A segunda parte do dia, ficou reservada para a apresentação do novo disco de Carlos BicaPlaying With Beethoven (Clean Feed – 2023) — no auditório da reitoria da Universidade Nova de Lisboa, edifício da dupla de arquitectos Aires Mateus. A escadaria, imponente, como recordatório que a ascese não é para quem quer. Interior de linhas rectas e claras com acabamentos em madeira e mármore que a nobre função de ensinar dignifica. Ultrapassando a máquina de controle facial com um respectivo acenar de mão, entramos no auditório de dupla bancada. A acompanhar o contrabaixista português estiveram João Barradas (acordeão), Daniel Erdmann (saxofone e clarinete)e DJ Illvibe, filho de Alexander von Schlippenbach — o que nos serenou; por momentos, pensámos em DJ Vibe, que tantos sábados nos roubou no Lux por saber que estaria lá. 

Nas palavras de Bica, foi desafio maior, pois o compositor alemão é já de si “perfeito”, mas que o mesmo abraçou com “audácia” e que jamais teria conseguido concretizá-lo não fosse a “excelência dos músicos que o acompanham”. Sobressai deste exercício a capacidade de misturar um lado mais lúdico com uma perspectiva mais sóbria e contida. O ritmo é equilibrado e estruturado, falamos de Carlos Bica, em que se misturam os diferentes instrumentos, consideramos o gira-discos como tal, nas possíveis combinações. Destaque — pessoalíssimo, acrescente-se — para os momentos em que sobressaía o acordeão, a solo ou em diálogo com o contrabaixo, e Bica quando emprestava uma carga sonora mais vincada a cada corda. Um dos momentos altos da noite foi, sem sombra de dúvida, o solo de João Barradas. Ápice em que a aproximação ao que estava a ser tocado foi mais sentida. A juntar, igualmente, os curtos instantes de Carlos Bica a solo. Cultivámos uma certa frugalidade, não só no campo arquitectónico, mas claramente musical. Como o solo recente de Bica na Igreja St. George ainda é memória viva, confessamos o respectivo enviesamento.

No final, a cabeça rumina, e como rumina, o que nos conduz a duas perguntas. A primeira: o que se passa com os técnicos de luzes? Terão folheado demasiados livros da Taschen e ouvido outros tantos discos de Jazzanova para utilizarem padrões e cores tão desapropriados? A segunda: qual a necessidade do DJ estar a escolher discos? As entradas não estavam já previamente definidas? Não havia uma pauta a seguir? A curiosidade deve ser alimentada e, como tal, aprofundar esta questão posteriormente.

Terminar, não sem antes uma menção para a publicação do festival, que se destaca pela qualidade gráfica e design, autoria de Travassos, com textos críticos e reflexivos sobre alguns dos aspectos mais relevantes do jazz contemporâneo.


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