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Fotografia: Mário Mar
Publicado a: 24/02/2023

A derradeira paisagem sónica da edição deste ano.

Festival Rescaldo’23 (19 de Fevereiro): no tempo dos madrigais

Fotografia: Mário Mar
Publicado a: 24/02/2023

Naquele que foi o dia de encerramento de mais uma edição do Festival Rescaldo, duas gerações alinharam-se num final de tarde memorável. O cenário natural da Igreja Anglicana de Saint George, junto ao Jardim da Estrela, revelou-se certeiro, como tantos outros concertos que por ali passaram nos últimos anos. Margarida Magalhães é uma das caras habituais no bar da galeria Zé dos Bois e enquanto Raw Forest dedica-se a trabalhar um som imersivo, balsâmico. Com atuações pontuais, mas invariavelmente fascinantes, as suas peças possuem um carácter de leveza e efeito de ascensão – em múltiplas camadas que se entrelaçam entre si. Linhas melódicas a meia luz, tímidas e cristalinas, cuja natureza acústica do espaço em muito contribuíu para uma experiência sonora mais fiel que nunca.

Os cerca de sessenta minutos de viagem aural proporcionada não só asseguraram uma real descolagem, como também comprovaram a capacidade – nunca desorientada – de conduzir e sustentar cada elemento composicional. As vozes humanas simuladas em coro, trouxeram os Popul Vuh, e a filmografia de Herzog, à cabeça. Porque a música de Raw Forest, em parte, também aporta essa imagética, a fronteira entre o real e o imaginário encontram-se na equação criativa de Magalhães. De resto, a artista tem igualmente explorado o universo especulativo da realidade virtual, extraíndo direções, possibilidades ou meras coordenadas referenciais. 

O conjunto de fragmentos suspensos catalizaram um espectro sub-sónico latente; ondas melodiosas que pediam escuta e envolvência. Algo que a plateia devolveu, sem qualquer reserva, perante um concerto de (re)descoberta de um nome que seguramente ainda terá bastante mais a oferecer nos próximos tempos. Ou, pelo menos, assim esperamos. Beleza em estado puro.

Figura maior, e de apresentações dispensáveis, Carlos Bica tem feito nome no vasto e fervilhante universo do jazz e música improvisada europeia. À parte dos diversos projectos que mantém, as apresentações a solo não são frequentes. Por isso mesmo, tratou-se, já de si, de uma ocasião especial, imensamente digna para finalizar o certame da melhor forma.

Acompanhado pelo seu habitual contrabaixo, desde logo ressaltou a sua relação íntima com o instrumento – pela genuína busca de expressão, textura e voz a partir de abordagens pouco convencionais. Entre a força telúrica proporcionada pelo arco e a delicadeza das cordas, houve espaço e imaginação para a vivência sensorial. O diálogo com o silêncio, e até involuntariamente com os sons exteriores, demonstraram toda a mestria de alguém cuja visão não pode nem deve ser facilmente descrita, senão sentida. Esfíngico, mas igualmente familiar, Bica abarca tantas paisagens quanto almeja: erudita, aproximações à folk ou simplesmente música bastarda de origem – porém plena de destino. 

Quase no final, o contrabaixista partilha ao microfone os ocasos de vida que o levaram a este percurso profissional. Confissões e partilhas cuja existência, neste instante, apenas tornou tudo o descrito ainda mais real e vívido. Um patrão que ao longo de mais de três décadas tem assumido tanta forma e tanta identidade, mas sempre com novidade e pertinência. 


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