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Fotografia: Nuno Martins
Publicado a: 26/04/2022

Um músico "nas franjas e para franjas".

Carlos “Zíngaro”, A Escuta e “um tipo que continua teimosamente a fazer coisas”

Fotografia: Nuno Martins
Publicado a: 26/04/2022

O percurso musical e de vida de Carlos “Zíngaro” é o tema de um novo documentário de Inês Oliveira que estará em estreia no próximo dia 30 de Abril na Culturgest, inserido no programa de 2022 do festival IndieLisboa.

Depois da première, o violinista estará em palco para tocar, assim transportando-nos de novo para o presente e fazendo-nos perceber melhor que este filme, ao contrário de outros que falam sobre figuras já desaparecidas, é sobre um artista que continua a criar e trará mais histórias para a história, logo ali avançando para outros desenlaces que não aqueles que ficaram fixados na película. E também sobre uma artista, a realizadora, que tal como “Zíngaro” tem procurado marcar a diferença no panorama cinematográfico nacional.

O Rimas e Batidas conversou com o protagonista de A Escuta e o diálogo que a seguir se reproduz também foi feito em retrospectiva, mas olhando para diante.



O mundo cinematográfico está cheio de documentários realizados à posteriori, depois de as figuras que lhes são tema terem deixado o planeta. Inês Oliveira vai estrear agora um em que o seu sujeito/objecto vive ainda e está bem activo, criando uma música inteiramente do nosso tempo. Depois de muitos anos de ostracismo no teu próprio país, onde foste pioneiro de muitas cenas (a da música improvisada para começar) e ganhaste relevância em várias áreas (música de cena, para dança e teatro, música electrónica ou electroacústica, por exemplo), com as autoridades culturais a desconsiderarem-te sistematicamente, e tanto assim que em certos eventos surgiste a representar não Portugal, mas a França, o que é que este filme te faz sentir? Justiça finalmente feita?

Justamente pelo não hábito de situações remotamente semelhantes, foi com grande surpresa (e entusiasmo!) que recebi esta proposta/desafio de Inês Oliveira, de quem quase desconhecia o trabalho. Pelo inédito da situação, tentei fazer o meu melhor, colocando-me inteiramente à disposição do projecto, talvez até demais no sentido da exposição quase total do meu eu, com todos os erros, inconveniências, transparências e incoerências seguramente presentes num discurso à flor da pele, em que o diálogo foi quase só com a câmara…

Não sei se será inteiramente um “documentário”, se mais um filme de autor.

Um olhar pessoal (da Inês) sobre um tipo que continua teimosamente a fazer coisas. Gosto imenso de conversar, de improvisar diálogos, temas e ideias. 

Sempre me falhou o conceito (romântico?) de tertúlia – um espaço de troca de ideias, de diálogo/discussão de projectos, de experiências. Neste caso concreto, ter-se a consciência (às vezes) de que se está a ser filmado, e de que uma imagem vale mais do que mil palavras, deixa-me algo apreensivo e receoso, pelo que disse ou não disse, ou pela maneira como o disse, ou pela maneira como o calei. Em análise última, nunca pensei que alguém tivesse alguma curiosidade ou interesse em fazer um filme sobre mim!

Também por estes motivos, talvez não sinta propriamente que foi justiça feita, ou algo remotamente nesse sentido. Quem nunca gostou ou ostensivamente ignorou continuará a fazê-lo, talvez ainda de maneira mais acesa, por não me considerarem merecedor de qualquer tempo de antena. Apenas me fica a noção de que alguém que eu mal conhecia, de uma geração bem mais jovem, teve a curiosidade, a dedicação e o interesse em fazer um trabalho desta envergadura comigo. Um trabalho que ficará no tempo… Tempo que cada vez mais me escasseia.

O filme fala sobre o teu percurso artístico de muitas décadas. Como é que tudo começou? Lembro-me daquela foto que documenta o momento, em criança, no qual fizeste uma audição com as senhoras do regime fascista, vestidas de negro como os corvos, a assistirem à tua prestação violinística. E depois lembro-me dos concertos dos Plexus durante o PREC, que terminavam com uma versão improvisada de “A Internacional”…

Impossível condensar uma vida em alguns minutos de filme. Há sempre tanto para dizer e mostrar, tanto que fica solto, que se perde na memória e nos arquivos…

Referes imagens e realidades que vão de 1954 a 1975. Da Fundação Musical dos Amigos das Crianças, com a esposa do Presidente Craveiro Lopes e a do então ministro da Marinha Américo Thomaz, até ao PREC pós-serviço militar compulsivo na região militar de Angola, de 1969 a 1972…

São realidades quase inteiramente opostas, de uma infância inocente e remediada, mas onde rapidamente me foi presente um agudo sentido de injustiça social, até à “estética do grito” do free jazz, tão diferente dos psicadelismos do Plexus em 1968. E quase tudo passará por uma “filtragem” de experiências e vivências.

A referência de um “mestre” na música e nas artes – que afinal nunca tive, a não ser a figura da frustração paterna, toda a vida funcionário público, mas com profundos sentimentos e tradições artísticas.

Certamente que estas realidades, juntamente com ensinos académicos deficientes e potencialmente traumáticos, cedo me fariam procurar outras realidades e maneiras de fazer ou de estar. A minha educação católica não praticante por parte da minha mãe definia-me parâmetros extremados de bem e mal, em que rapidamente tive a consciência de estar a fazer “mal” em oposição ao dever fazer “bem”. E neste país, a consciência do tentar ser diferente tornava-se sempre um incómodo difícil de justificar. Porque se haveria de querer fazer diferente da vasta maioria?! Só se iriam criar problemas totalmente desnecessários…

Recuemos, precisamente, até aos tempos dos Plexus iniciais, quando no final da década de 1960 eram uma banda de folk-rock psicadélico. Foi o teu primeiro projecto como líder, mas já vinha depois de vários outros, de terceiros, que ineditamente incluíam o teu violino. Ou seja, logo desde o início estavas a desbravar novos caminhos na cena musical portuguesa. Já estavas bem ciente disso na altura?

Quando frequento o Liceu Francês Charles Lepierre, depois de uma peritonite que quase me fez perder um ano lectivo, “descubro” uma outra realidade sócio-económica que eu nunca tinha vivido. Uma média/alta burguesia, vagamente internacional, de corpos diplomáticos e chauffeurs, para a qual não estava de todo preparado e para a qual eu nem tinha qualquer equivalência financeira. Queria tocar guitarra ou órgão (frequentava na altura as aulas de Antoine Sibertin-Blanc, organista titular da Sé de Lisboa, na Escola Superior de Música Sacra), mas claro que não tinha qualquer possibilidade económica de adquirir esses instrumentos… Necessariamente, tentava “impingir” o violino, o que era um problema por quase não existirem grupos internacionais pop-rock com violinos. Daí que, quando aparecem os King Crimson ou mais tarde os Velvet Underground com John Cale, agarrei-me totalmente a essas estéticas.

Vivi esses anos quase sempre com essa imposta consciência, dita e repetida pelos “conhecedores” da praça — o violino não era um instrumento rock nem, mais tarde, um instrumento jazz… Ao menos, no Plexus, eu fazia o que me apetecia, mas nos anos 1960, quase sempre certinho e ajuizado, apesar de pontualmente termos aventuras – em residências de embaixadas anglo-saxónicas – com quatro guitarristas, dois bateristas e versões do “Paint It Black” (Rolling Stones), do “Somebody to Love” ou do “White Rabbit” (Jefferson Airplane), com durações de mais de 20 minutos e solos intermináveis à Grateful Dead.

Não tinha qualquer consciência de desbravar fosse o que fosse… Queria era tocar, viver aquela realidade que me era alheia, vagamente percebendo que era uma “avis rara” porque a isso era obrigado pela sociedade, tentando aproveitar ao máximo o pouco tempo que me restava antes do serviço militar obrigatório.

Na passagem para a década de 1970, os Plexus viram-se para o jazz de vanguarda e a improvisação livre, quase que em corte epistemológico. O que é que aconteceu na tua cabeça? Vinhas de uma formação clássica com a qual entraste em conflito, passaste pelo rock e, sem outras referências nacionais, atiraste-te a algo que mais ninguém fazia, a não ser, entretanto, Jorge Lima Barreto com a Anar Band…

Essa passagem de década estava eu a fazê-la em Angola na tropa, para onde nem sequer levei o violino. Foi quando regressei em finais de 1972 que passei a cultivar o free jazz com o, necessariamente reformulado, Plexus, depois de ouvir na Voice of America, em transmissões africanas da Jazz Hour de Willis Conover, os Ornette (que tocava violino, que eu acabaria por adquirir, um Fender eléctrico igual), Ayler (com o violinista Michael Samson), Cannonball Adderley, Coltrane, Miles, Monk, etc.

Nessa altura ainda seria uma improvisação mais ou menos idiomática e não inteiramente “livre”, pois o drive de um certo jazz era uma quase constante.

A minha mais próxima referência seria Jean-Luc Ponty antes de este enveredar pela “fusão”, mas que eu rapidamente afastei quando comecei a ser referido como o “Ponty português”. Há, portanto, uma realidade até 1969 e outra completamente diferente depois da guerra colonial. Aqueles quase três anos marcaram-me e eu nunca poderia sentir da mesma maneira. A inocência tinha acabado de vez. Tinha vontade de explodir e gritar…

Encontro-me com o Barreto no Porto em 1973, quando eu tocava com a Heavy Band de Filipe Mendes (ex-Chinchilas) na peça brasileira Missa Leiga, de Ruth Escobar.

Aí começa a Associação Conceptual Jazz, com a Anar Band no Porto e o Plexus em Lisboa, ideia do Jorge como “frente” contra algum tradicionalismo jazz na altura. A quebra com o clássico dá-se por volta de 1968 (coincidência?), apesar de nunca o ter abandonado na escuta…

Em simultâneo, ouvimos-te a tocar com os cantautores de intervenção, designadamente José Afonso, Sérgio Godinho, Janita Salomé e Júlio Pereira, e a colaborar com figuras como Eugénia de Melo e Castro ou o fadista Carlos Zel, para além de teres integrado um grupo fundamental da música popular portuguesa, a Banda do Casaco. Fez parte do mesmo investimento político-cultural que dedicaste às vanguardas ou respondeu a outros interesses?

É mais um investimento musical e social. Tocar ao vivo é-me fundamental, assim como encontrar pessoas… Sempre gostei do Zeca – a primeira pessoa a aconselhar-me a fazer um disco solo! Infelizmente concretizado já depois do seu desaparecimento. Político e cultural certamente também, pois sempre circulei por uma certa esquerda não partidária. Quando tentavam inscrever-me em algum “clube” rapidamente fugia a sete pés, o que também me tornou “esquisito” aos olhos de una certa intelligentsia que achava que eu nunca respeitaria os cânones de alguns dogmas, portanto, e fundamentalmente, um alienado, sempre com a mania das improvisações e vanguardas…

Também terei sido motivado algures por alguma compensação económica, pois a música que eu praticava no Plexus raramente tinha essas compensações. Apesar de, até 1977, ter sido pontualmente considerado um grupo “revolucionário”, que até tocava “A Internacional”, o que o fez ter uma actividade razoável de concertos e festivais em Portugal. É em 1975/76 que temos a possibilidade de convidar Daunik Lazro para alguns concertos em Portugal. Em 1977 há cisões e o Plexus do free jazz acaba, renascendo pontualmente em 1980, enquanto improvisação total ou composição/estruturação gráfica e electroacústica. O Plexus acaba de vez em finais dessa década e eu nunca mais investi em formações regulares em Portugal. 

Houve três momentos cruciais para o que viria a ser o teu futuro em termos de reconhecimento internacional no final da década de 1970: a tua passagem por Varsóvia, a ida até Woodstock para participares nas actividades do Creative Music Studio com personalidades como Anthony Braxton e Roscoe Mitchell e, pouco depois, um concerto a solo num festival europeu diante das sumidades do free jazz em que, como uma vez me contaste, olhaste para os sapatos quando estavas a agradecer os aplausos e só conseguiste pensar que não os tinhas engraxado. Que memórias tens dessas ocasiões tão transformadoras?

Em 1978 sou convidado pelo compositor polaco Richard Misiek e pela Universidade Técnica de Wroclaw a integrar os primeiros encontros de “teatro instrumental” – referenciado em Kagel, Cage, Bussotti e outros. Com o apoio da Fundação Calouste Gulbenkian, permaneci nesta cidade um par de meses, em gravações, concertos, ensaios e encontros. No ano seguinte sou convidado por Karl Berger e Tom Cora, da Creative Music Foundation, a integrar o curso de Verão desta estrutura em Woodstock. Também graças a uma bolsa Fulbright, tenho a possibilidade de permanecer mais de três meses nesta cidade e também em Nova Iorque, em concertos e seminários, onde conheço John Zorn e Fred Frith, a tocarem num bar downtown e onde vejo finalmente Ornette Coleman com Prime Time e Cecil Taylor a solo. Fico também como assistente de Roscoe Mitchell. Richard Teitelbaum já tinha conhecido em 1978 em Nova Iorque, através de Steve Lacy, que conhecera em 1977 no festival de Chateauvallon, em França, onde ele dirigira um seminário e uma apresentação pública em que participei.

Há várias coincidências e interesses cruzados que determinam que, desde 1977 a 1979, eu tenha uma vida artística e criativa rica, com encontros fundamentais. Depois de Chateauvallon, Kent Carter (contrabaixista do grupo de Lacy) convida-me para trabalhar com ele em gravações (Le Chant du Monde) e concertos até 1983. Depois da Polónia, viajo directamente para Londres, onde encontro o London Musicians Collective e conheço Roger Turner, Derek Bailey, Evan Parker, Steve Beresford, John Russel e tantos outros da improvisação mais “não-idiomática”.

Esse concerto a solo foi no Festival de Pisa em 1981, no Teatro Verdi, e foi o primeiro solo inteiramente acústico que fiz… A partir de 1980, tinha passado a integrar a Mitteleuropa Orchestra do percussionista Andrea Centazzo, sediada em Bolonha. A orquestra integrava músicos como Franz Koglman, Roberto Ottaviano, Gianluigi Trovesi, Enrico Rava, etc. 

Quando se tem no público músicos como Cecil Taylor, Steve Lacy, Peter Kowald e Andrew Cyrille, que te vêm cumprimentar depois de um solo, o sentimento é o de uma elevação cautelosa, porque aparentemente se está a seguir um percurso que se escolheu, pelos vistos acertadamente, e que se passou a integrar uma quase família internacional. E, como tal, deveremos cautelosamente aprender muito mais, pois o meio é frágil e efémero, como a música que se pratica.

Foi, pois, nessa altura que iniciaste uma série de colaborações internacionais que se mantém até hoje, envolvendo um número infindável de grandes músicos. Aos nomes que referiste vieram posteriormente os de Otomo Yoshihide, Hans Reichel, Evan Parker, Keiji Haino, Dominique Pifarely e tantos outros. Caso para dizer não só que fizeste história como que a história destas músicas passou inevitavelmente por ti. Ou está a passar, porque é uma história presente, crónica do nosso tempo. Como avalias todo este património vivencial, hoje?

Num país onde pessoalmente acho que quase não se faz história de quase nada cultural, principalmente de eventuais sucessos internacionais e também fundamentalmente nas artes musicais contemporâneas, o património fica para mim e para os que me são próximos e que acreditaram em mim. É fundamentalmente deles esse património, que valerá o que vale, pois nunca me preocupou a noção de “obra” e muito menos de “posteridade”. O meu pai, dedicadamente, ainda enviava notícias para os jornais, sobre a minha actividade internacional. Alguns ainda publicaram, até ao quase desaparecimento deste tipo de notícias na imprensa.

Coincidentemente ou não, temos um mediatismo mais desinteressado pelo que não está integrado nas noções de “grandes audiências”, seja o que for que isto queira dizer. A quantidade por oposição a qualidade sempre foi conceito que totalmente me ultrapassou. 

Tenho total consciência de ter feito um trabalho nas franjas e para franjas, sendo que sempre defendi que, mesmo que uma performance não seja esteticamente acessível para o gosto de uma maioria, haverá elementos de energia e de verdade que inevitavelmente atingem a maior parte das pessoas. Por isto mesmo, de uma maneira geral, rejeito a “pose” e a “poeira para os olhos”, tantas vezes frequentes nas chamadas artes de vanguarda ou experimentais. 

Toda a vida me foi vital a aprendizagem, mas quase sempre como autodidacta. 

Ver. Ouvir. Questionar-me quando o facilitismo e a verbosidade são uma saída…

Foste um dos introdutores dos sintetizadores e demais instrumentos electrónicos, incluindo o computador, na música criativa portuguesa. À luz do que a música electrónica ou electroacústica é hoje em Portugal, nos seus diversos âmbitos, que marcas consideras que deixaste e estás ainda a deixar? Rafael Toral comentou a propósito das tuas criações electrónicas mais antigas que tinhas antecipado alguns aspectos do próprio hip hop…

Curiosa essa observação, de que não estava de todo à espera… Não sei se deixei marcas, nem tal me preocupa ou me é consciente. Durante anos a tocar comigo próprio, sem interlocutores e com um instrumento susceptível de estridências mais ou menos histriónicas, sempre senti a necessidade de algum diálogo, sobretudo com frequências graves. Se acusticamente consegui o privilégio e a honra de tocar com alguns dos melhores contrabaixistas do mundo (Lèandre, Mark Dresser, Kowald, John Edwards, Carter, Barre Phillips), no solo valeu-me o meu fascínio pelas tecnologias, desde a simples fita magnética manipulada em gravadores ou em câmaras de eco transformadas (com loops de fita pendurados do tecto do quarto em casa dos meus pais), até às baixas frequências do meu saudoso ARP 2601, passando pela computação, desde os seus inícios sonoros até à maior capacidade de interacção em tempo real. O mundo do som é imenso e para mim, sempre fascinante!

Confesso também que sempre fui cauteloso com as modas e seus últimos gritos. Cauteloso e desconfiado… Fundamentalmente por necessárias contenções financeiras, pelo que levo algum tempo até perceber a validade de algumas novidades. Por isso também, estou ultrapassado em termos tecnológicos, com computadores velhos de bem mais de 10 anos, assim como outras “antiguidades” que teimosamente mantenho. Ainda a por mim anteriormente referida “pose”, que passa inevitavelmente também pelas tecnologias, porque é “coisa nova” que poucos conhecem…



O teu Solo gravado no Mosteiro dos Jerónimos e lançado em 1992 é considerado como um dos mais importantes álbuns de violino improvisado a nível mundial, sendo mesmo encarado como um disco de viragem. Para muitos violinistas da área é entendido como uma bíblia e há quem se interrogue como conseguiste encontrar o som cheio e breathy de uma das peças que o integram, “Shakuhachi”. Foi algo que tivesses previsto, ou intencionado, na altura ou aconteceu em plena inocência da tua parte?

Sob o risco de desiludir eventuais puristas, esclareço apenas que algumas peças – incluindo especificamente a “Shakuhachi” – foram pensadas e tentadas (ensaiadas?) anteriormente. No entanto, nunca foram escritas e interpretadas enquanto composições. Quis ter sempre a liberdade de as tocar de outras maneiras. A acústica dos Jerónimos ajudou-me a esse som, quase como um outro instrumento. E o meu fascínio por essa flauta de bambu japonesa levou-me a conseguir essa “respiração”. Já o caso do “Continuum” é de total improvisação, nunca pensada nem reflectida. Começo-o assim e assim o continuo, sem rede, até ao final inesperado e desastrado, pela total exaustão física… Raramente o consegui repetir, com aquela energia, construção e intensidade.

Estas peças, tendo sido todas improvisadas, em que maioritariamente o que está no disco são os primeiros takes das gravações, tiveram algumas construções “pensadas”. Sendo que sempre tive a noção de que o meu som espontâneo ultrapassa em muito o meu som interpretado/lido. Há a velha história de, em tournée com Joëlle Lèandre, termos decidido escrever algumas improvisações que repetidamente usávamos em concerto. Rapidamente desistimos, porque nunca conseguíamos o mesmo fulgor e sonoridade com a partitura à frente…

Durante o teu trajecto deixaste sempre espaço para parcerias com músicos portugueses, independentemente do seu grau de competência nas práticas da improvisação e da experimentação. Procuraste sempre contribuir para o desenvolvimento da cena portuguesa e, inclusive, em termos organizacionais, associativos e de activismo, culminando com a fundação da granular. Tem valido a pena? Sentes que deixas um legado em vida, não obstante o alheamento a que foste votado pelo Estado, as instituições, os promotores culturais e a comunicação social?

Como já dito, o meu “legado” vale o que vale. Sem mais e sem menos.

Sempre defendi e potenciei colaborações. Sempre quis ser surpreendido.

Claro que tal disposição e disponibilidade pode potenciar dissabores, mas acho que deixei algo e que os parceiros de ocasião também me deixaram muito. Mas… as relações humanas são frequentemente frágeis. Falíveis. Frustrantes.

E a chamada música improvisada está demasiado exposta a essas falências e a exercícios de ego.

Também tenho total consciência de ter alimentado alguns anticorpos em relação à minha pessoa, por intransigências, teimosias, falar demais quando deveria estar calado. Mal iniciei a granular, ouvi logo comentários acintosos e bloqueadores, que tinha tomado aquela iniciativa para me rodear de músicos jovens por eu estar velho e em fim de carreira. Familiares e amigos perguntavam para que precisava eu daquilo… Foi o meu derradeiro investimento em colectivos no meu país.

Não estou arrependido. Mas acabou, como tudo acaba. 

Referiste-me em tempos que a tua música é o resultado por extensão personalizada de três admirações cruzadas que vêm de há muito, pelas obras de John Cage, Ornette Coleman e Jimi Hendrix. Por outro lado, fui notando que fizeste as pazes com a música clássica e que as referências a paixões tuas por Bela Bartok, Paganini e Shostakovich se foram tornando mais evidentes. No primeiro caso, o de Bartok, levando-te a uma abertura a materiais folky, melódicos sobretudo, que não eram tão evidentes desde os primeiros Plexus. O que podes comentar a propósito?

Nunca me “divorciei” da música clássica! Deixei de a interpretar apenas, mas sempre a ouvi e apreciei. A minha aprendizagem clássica/académica foi muito deficiente. Rapidamente percebi que nunca seria um bom executante. Se tivesse tido outra realidade, poderia ter seguido os dois caminhos – da improvisação e da interpretação. Mas duvido, porque dificilmente se é bom nos dois casamentos. 

Cage foi-me importante mais ao nível de conceitos, Ornette ao nível do fraseado e Hendrix ao nível da visceralidade instrumental. Mas o “tio João” (Bach) nunca me abandonou. Há executantes de Bartok absolutamente arrepiantes, assim como compositores contemporâneos que me deixam fascinado (Lachenmann, Gubaidulina e tantos outros). Mantenho alguma frustração por não ter tido a oportunidade de estudar composição. Uma vez tentei convencer a saudosa Constança Capdeville a dar-me aulas particulares. Ela riu-se muito e disse que eu não precisava daquilo para nada…

Ao longo deste percurso musical vens tendo uma actividade paralela como artista plástico, nas vertentes de pintura, desenho, BD, ilustração e mais. Consideras que há pontos de contacto entre as duas dedicações? Sinto que a tua inspiração artística em Francis Bacon e nas suas figuras distorcidas está também presente na música…

Talvez… O Bacon sempre me foi referencial, pela visceralidade carnal e pelo gesto. Mas não sei. Não encontro qualquer paralelismo, a não ser eventualmente na ideia de improvisação, de deixar “escorrer” as ideias. Começar por um ponto ou traço e chegar-se a algo anteriormente impensável. Pintar ou desenhar assim é-me quase terapêutico de relaxante… Quase uma postura zen em que me esvazio de tudo. Completamente ao contrário da música, que para mim é uma actividade essencialmente pública e, apesar das décadas de experiência, quase de constante tensão.

A pintar estou sozinho, sem ninguém a olhar. É semelhante a compor – emenda-se, apaga-se, tenta-se outra vez, deita-se fora, rasga-se. E só mostramos quando achamos que está acabado, se mostrarmos… E, como de costume, o problema que eu tenho será com o tema, a linha condutora, a obra, a coerência das diferentes obras ou de diferentes momentos, a dificuldade da repetição, do conceito determinador. Improvisando vou saltando de ideia em ideia, de material em material. Em vez de definir percursos. A chatice de obedecer a um tema ou uma estrutura… Até sei fazê-lo, como no “Storia Intramuri”. Mas não me apetece…

A tua relação com o violino foi sempre de amor-ódio. Passaste por uma fase, há uns anos, em que um problema de saúde fez com que ficasses com os movimentos dos braços e das mãos tolhidos, levando-te quase a uma reaprendizagem do instrumento. Esse amor-ódio continua actuante, ou algo mudou entretanto neste affair devido a esse percalço?

Esse amor-ódio foi-se diluindo com o tempo e a idade, dando lugar a uma pacificação relativa que passa por sentir o violino de uma maneira mais integrada, orgânica e dialogante. Nem de propósito, o AVC que tive em 2015 ensinou-me que nada é um dado adquirido e que algum eventual virtuosismo técnico e acharmos que o instrumento nos pertence e faz parte do nosso corpo é completamente falso e pode desaparecer de um momento para o outro. Tive de ter alguma reaprendizagem e a noção de qualidade de som e colocação da arcada tornaram-se imensamente importantes.

Para minha felicidade, o AVC foi relativamente ligeiro e afectou-me fundamentalmente a mão direita. O que me obrigou a físioterapias prolongadas e a servir-me da minha teimosia para o conseguir ultrapassar. O meu médico comentava que a minha sorte era ser tremendamente casmurro… Mas o arco do violino deixou de me pertencer e passou a ser um “alien”. Passei a amar este malfadado instrumento, tentando ter uma relação mais saudável com o dito. Mas houve momentos de desespero e frustração em que quase tive vontade de o atirar ao chão e acabar ali mesmo.

Mas depois… Estou (bastante) mais velho e pontualmente quero tocar outras coisas, quase ir buscar o não movimento, procurar a extensão da permanência, de nós próprios. Passei por minimalismos, maximalismos, desconstrutivismos, near silence, new complexities, concretismos… A estética do grito no free jazz foi visceralmente importante para mim no início dos anos 1970. Já assisti a várias recuperações dessa estética, de Mats Gustafsson até Ken Vandermark, e Peter Brotzmann nunca de lá saiu… 

Tive um trio há anos com John Edwards e o incrível Paul Lovens, que vagamente se aproximava do género e do Revolutionary Ensemble de Leroy Jenkins. Gravámos um disco, teoricamente magnífico, de que o técnico de som perdeu as masters. Acabou…

Quase todos os músicos da tua geração ainda em actividade nos domínios do jazz criativo e da improvisação-livre, e não só, tendem a reproduzir o que fizeram antes, em estagnação criativa ou preferindo apostar no que lhes é mais seguro em termos de sobrevivência. No teu caso particular continuas a estar na crista da onda, sendo tão actual como sempre foste, arriscando e renovando-te. É simplesmente um traço da tua personalidade ou todo um statement? Forever young, tal como na canção pop com o mesmo título?

Forever young nem pouco mais ou menos! Quanto a “statement”, francamente não sei… Se o é, será inconsciente. Não premeditado. Não faz parte de qualquer eventual estratégia, como me é habitual. O que talvez seja é a referida teimosia. Querer fazer diferente, ser melhor, continuar a puxar pela cabeça e pelo esqueleto. Não gostar de (me) repetir. Não gostar de baralhar, reciclar e tornar a dar, já requentado. Mesmo que faça asneira, insistir. 

É o processo do risco que tanto me atrai. Eu que de todo nunca fui jogador.

Alguém que me é muito próximo criticava-me por eu quase não saber ter prazer no que faço. Fiquei a pensar nisso preocupadamente. Acho que o que fundamentalmente acontece é eu sempre ter tido problemas com o ficar “contentinho”. Feliz comigo próprio, sentindo-me o maior. Não. Acho que não consigo e agora já é tarde para mudar… 

Presentemente, na área da improvisação portuguesa em que eras caso único, existem outros violinistas e violetistas, como Maria do Mar, Maria da Rocha, João Camões, José Valente ou o teu próprio filho, David, para já não falar de Ernesto Rodrigues, que tem um percurso mais longo. Podes falar-me um pouco de como os vês/ouves, tendo em conta que te têm como referência e guia? Queres deixar-lhes uma palavra de incentivo, um conselho, um desafio, uma provocação paternal?

Deuses! Provocação paternal??? Sou lá capaz de tal coisa… Compreensivelmente, são todos muito mais próximos das academias do que eu. Mas, assim como nunca me interessou fazer seminários ou dar aulas de violino – apenas duas únicas master classes em Coimbra e Wuppertal –, raramente tenho vontade de tocar com outros violinistas, por recear algo do género “violin summit”, em que facilmente se entra em competição… 

Tive a oportunidade de o fazer com o Pifarély e, contra os meus piores receios, foi uma experiência inesquecível, tanto em disco como em concerto! Ele é um grande músico, um grande improvisador e somos tão diferentes que não haveria qualquer hipótese de competição ou de mimetismos. Serviu-me de emenda uma situação em festival da WDR em Köln, para que fui convidado com Mark Feldman e Malcolm Goldstein, para três solos na mesma noite. No final, Steve Lacy, maldosamente, perguntou: afinal quem ganhou a corrida?

Sem qualquer intenção desmoralizadora, todos saberão como o violino é um instrumento complicado e sensível. Que existem inúmeros e virtuosos concertistas. Que a competição é desenfreada e frequentemente imoral. Que estas músicas que nós praticamos têm relativamente poucos violinistas, mas também poucos apreciadores deste instrumento. Que o procurar a diferença é dedicação de uma vida… O que digo a esses violinistas é só isto: sejam teimosos e boa sorte!

Ainda há dias re-ouvi um disco meu com outros, já de alguns anos, e fiquei siderado, pelo meu exagero de frases e de virtuosismos desnecessários! Daí sempre defender a escuta, quase o “deep listening” da saudosa Pauline Oliveros. Se não se tem nada para dizer, é melhor ficar calado. Ou tocar apenas um pequeno fragmento que potencie uma base para se construir algo novo.
Em 1978, Steve Lacy chamava-me “aspirador”, tal a minha ânsia de escuta e fome de aprender, sufocado que estava neste país. Hoje há outras possibilidades, outros encontros, outras experiências.

Achas que o filme de Inês Oliveira vai alterar a forma como és olhado em Portugal ou (já) não tens ilusões quanto ao respeito que entre nós é devido (mas não dado) a um artista, para mais com um currículo tão longo, preenchido e notável como o teu?

Francamente não sei. Duvido. Sinceramente, também não me preocupo muito… Gostaria que o filme da Inês fosse entendido como o filme da Inês e que valesse por isso mesmo. Tudo o resto que fosse acessório e relativo.

Como já referi, quase não se faz história em Portugal, particularmente sobre determinados assuntos. Ou porque são raros os historiadores minimamente encartados nestes temas, ou porque haverá algum pudor em se fazer história sobre alguém que nos passa ao lado na rua ou que (achamos nós) conhecemos de há muito… E a Internet permite-nos saber de tudo e todos.

E depois, existem as ditas “capelinhas”, e este país sempre foi fértil nessas coisas. O que está IN e o que está OUT e que este nada tem a ver com aquela capela porque tem a dele, ou a do primo, ou quer construir a sua própria “capela”. É um país pequenino, mas bué de giro…

Com o avançar da idade, sinto aproximar-se alguma prateleira em que me pretendem enfiar. Impressão minha? Talvez, mas a proliferação de jovens comissários e curadores, que sabem tudo e percebem de tudo e que já viram tudo determinará que um velho jurássico como eu faça ou não parte de alguma “estória” que alguém ainda queira ver. 


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