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Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 11/04/2022

Um diálogo aberto (e em espelho) entre "Zíngaro" e a cineasta.

Inês Oliveira: “O que importa no A Escuta é a noção do que ainda está para ou por viver”

Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 11/04/2022

Inês Oliveira é um dos nomes maiores do cinema português, com uma obra reconhecida (e premiada) que passou por títulos como Nevoeiro, Vira Chudnenko, Comer o Coração de Rui Chafes e Vera Mantero, Bobô ou O Sapo e a Rapariga. Agora acrescenta-se A Escuta, documentário que será estreado a 30 de Abril próximo na passagem do IndieLisboa pela Culturgest, como parte do programa da secção IndieMusic. Primeiro filme na obra da realizadora que tem a música como mote, protagoniza-o uma das figuras mais incontornáveis, mas também mais desconsideradas no nosso país (ao contrário do que acontece além-fronteiras), da cultura nacional: Carlos “Zíngaro”.

Adianta Oliveira: “Aproximei-me de Carlos ‘Zingaro’ por instinto. Tinha a impressão de que me iria identificar com ele e assim foi. Este filme é sobre ele, mas é também sobre mim: revejo-me nas suas questões, inquietações, desejos e medos. Quis fazer um filme que contribuísse para o conhecimento do que é a investigação, a experimentação e a criação artística. Um testemunho. Motivado por uma (misteriosa) vontade de filmar aquela fisionomia, aquele corpo em movimento, em acção.”  

Em A Escuta, para além da narração ou dos depoimentos do músico e artista visual (geralmente em off), bem como de imagens de arquivo ou de reportagem quase jornalístico-televisiva, encenam-se situações com a figura que retrata, tornando-a até numa personagem e assim “extendendo” as situações até à fronteira com o cinema de ficção. Vemos “Zíngaro” a tocar, envolvido pelo negrume de um espaço escuro, mas é a sua voz que ouvimos ou apenas o silêncio. E o efeito é impressionante. “Vejo cada um dos meus filmes como protótipos. É isso que me faz continuar a querer fazer filmes: encontrar a forma de filmar aquela(s) história(s), aquela(s) pessoa(s), aquele(s) lugar(es), aquele(s) tempo(s). O cinema é um portal que nos liberta das limitações do real”, comenta a autora sobre este recurso. 

Um factor fica imediatamente patente nos primeiros minutos de A Escuta: a empatia conseguida entre Inês Oliveira e Carlos “Zíngaro”. “Houve ,desde o primeiro momento, um total respeito da parte dele pelo meu trabalho, no sentido em que pude fazer o filme que quis e como quis. Fomos construindo uma relação de confiança que passou por mostrar os meus filmes anteriores. O respeito pela liberdade criativa é um valor absoluto para o Carlos. Sobre a filmagem, tive o maior cuidado para que não fosse demasiado cansativa, coisa que nem sempre consegui. Posso dizer que os dias de filmagens foram felizes.” 

O filme é, muito particularmente, de investigação. Oliveira esteve a escavar o passado de Carlos “Zíngaro”. Mas curiosamente, não apenas para contar a sua história, o seu percurso, mas para ir desenhando a sua personalidade tal como a encontrou no momento. É como se assim tivesse querido entrar na mente do artista com uma câmara até ao mais profundo que lhe foi possível. “Esse foi o efeito que quis criar, de intimidade – quase de sermos todos os que vemos, durante aquela hora de filme, o Carlos ‘Zingaro’. O cinema é extraordinário porque permite essa ilusão, sobretudo no dispositivo sala”, refere.

O “Zíngaro” que Inês Oliveira apresenta é alguém que se quis diferente, e diferente até como pessoa, alguém que fez questão de seguir por outros caminhos que não os mais plausíveis. Mas nisto fica a sensação de que há um jogo de espelhos, como se a realizadora se estivesse a questionar/encontrar a si mesma na figura do outro. A “diferença” de Carlos “Zíngaro” é também a diferença de Inês Oliveira no cinema português e enquanto pessoa. Todo o filme fala, afinal, do seu autor? 

Fala, na verdade: “Tive, de facto, essa epifania já no final do processo da montagem: a sensação de que este filme só poderia existir assim, como é, porque fui eu que o concebi, numa lógica de encontro. O drive do filme é a minha curiosidade e a minha admiração pelo Carlos enquanto mestre e o que lhe ouvimos dizer, o que o vemos fazer, é o que eu quis que se ouvisse, que se visse, pensasse e sentisse. Sei também que a partir do momento em que o filme é mostrado muitas serão as novas leituras e interpretações. Um filme é, ao contrário do que se possa pensar, uma obra aberta e em diálogo com o exterior, com o mundo. Os contextos acrescentam sentidos e isso é fascinante.” 

Há todo um particular mood no documentário e este é definido por Inês Oliveira como a percepção da “dimensão trágica da vida”, a de “um homem colocado perante sonhos, erros, limites, injustiças, conquistas”. Ainda assim, entende esta que o que prevalece “é uma tensão e um vigor” que são característicos da personalidade do violinista. Esse estado de espírito parece vir de uma aceitação, por parte de “Zíngaro”, do tempo que passa, do envelhecimento, da consciência de toda uma vida que ficou para trás, mas igualmente de que a história que se conta vai ter continuação depois da última cena. “O que importa no filme é a noção do que ainda está para ou por viver. De que no ‘Zíngaro’ se mantém a vibração, o deslumbramento, a aventura, a descoberta. Essa é uma das grandes lições que colhi com este criador inconformado”, diz a cineasta.

E mais acrescenta: “Este filme tem um ponto de vista muito assumido: o meu olhar, aquilo que procuro saber e partilhar de alguém que estimo muito. As escolhas foram ponderadas, testadas – experimentadas. O ‘Zingaro’ dedicou e dedica a sua vida à pesquisa, à prática e à experimentação artística como poucos o fazem. Essa postura indelével é um exemplo de vida.”

Ou seja, vamos assistir a algo de muito especial, a todos os níveis. A mais uma excelente película de Inês Oliveira e a uma terna perspectiva do quão importante é Carlos “Zíngaro”, apesar do desdém a que vem sendo votado pelo establishment político-cultural, as instituições e os media do país em que nasceu.


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