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Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 03/11/2023

O músico português leva o seu Vitral Submerso aos palcos do Misty Fest.

Carlos Maria Trindade: “O piano não está mascarado de nada. Está nu”

Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 03/11/2023

Carlos Maria Trindade é um nome fundamental da história da música portuguesa desde finais dos anos 70, altura em que foi membro fundador da mítica banda de new wave Corpo Diplomático. na sua rica história pessoal seguiram-se os Heróis do Mar, grupo de que foi teclista durante toda a sua existência. Gravou com Nuno Canavarro uma das mais importantes obras da nossa música electrónica, Mr. Wollogallu, foi A&R e produtor, tendo ainda trabalhado, entre outros grupos, com os Xutos & Pontapés, e integrou os Madredeus na sua mais recente fase.

Agora, Carlos Maria Trindade — que sempre associámos aos sintetizadores e à electrónica — mostra-nos uma nova face da sua personalidade artística ao editar Vitral Submerso, obra de piano acústico solo que conta com múltiplas apresentações no âmbito do Misty Fest: dia 11 no Passos Manuel, Porto; dia 18 no Teatro Virginia, Torres Novas (também com apresentação de Rodrigo Leão); e, finalmente, dia 21 no Teatro Municipal São Luiz, em Lisboa.



Onde é que tiveste de mergulhar para descobrir este Vitral Submerso. Em que oceano ou lago é que isso aconteceu?

Acho que este disco, pela sua simplicidade tímbrica, porque é mono-tímbrico… Eu sempre trabalhei com muitos timbres, sonoridades diferentes, retorno a uma espécie de simplicidade. Ao longo destas experiências todas que fiz, digressões, voltas ao mundo, canções, letras, grupos, estados criativos, bastidores, discos, estúdios —

Foste A&R…

Fui A&R, produtor… Fiz todos estes trabalhos e agora que tenho a “liberdade” de voltar a um instrumento que foi a minha origem, onde eu comecei a perceber os meandros da música – o piano. Foi onde eu aprendi muitos truques, porque a música clássica, apesar de tudo, ensina-te uma panóplia de truques muito úteis se tiveres pachorra para aquilo [risos]. Depois, esses truques deram-me uma grande bagagem para atravessar o mundo da música popular. Hoje em dia estou mais recatado, mais velho, mais reflexivo…

Mais experiente.

Mais experiente e com um mundo interior muito rico devido às viagens e a todas as experiências. Hoje consigo recatadamente criar estes ambientes que são propícios à reflexão das pessoas. E num mundo tão conturbado e tão acelerado como o de hoje… Eu penso em fazer uma música que contribua para a paz e a reflexão das pessoas.

Neste disco há um reencontro das tuas mãos com o piano, mas eu imagino que o teu ouvido nunca se tenha afastado muito do piano. Que referências é que coleccionaste ao longo deste tempo? Eu vou dizer o que, para mim, é óbvio, pois não sei se o é para ti: parece-me ouvir ali uns ecozinhos do Satie.

Sim.

O que é que informa o teu pianismo actualmente?

O piano, como qualquer instrumento analógico… Não vamos falar da electrónica, porque isso é um outro mundo, tem uma importância fulcral na juventude e eu não critico essa importância de uma estética contemporânea. Os sintetizadores impuseram-se. Antigamente eram as guitarras os instrumentos revolucionários. Hoje em dia é a electrónica a grande revolução. Mas tens razão: sempre ficou num departamento do meu coraçãozinho a simplicidade mono-tímbrica do piano, que é um instrumento que as pessoas acabam por gostar. Porquê? Porque ele não está mascarado de nada. Está nu. Está natural. E as pessoas reconhecem o timbre e vêm dizer-me: “Eu gosto muito de piano.” Quando as pessoas me dizem isso, eu respondo: “Olhe, é para pessoas como você que eu trabalho.”

Tu com os teus sintetizadores — e eu imagino que o DX7 tenha feito parte do teu arsenal — já foste um nómada digital. Ias com o sintetizador atrás. Agora és um sedentário analógico.

Boa definição [risos]. Exacto.

E em que piano é que gravaste isto? Foi no piano de casa?

Foi no meu piano, que é um Steinway de 1920.

Incrível…

Ele é da família dos Steinway, antes de fugirem para a América. Portanto, os Steinway eram judeus que foram perseguidos pelo nazismo e viviam na Alemanha. Foram forçados a fugir para os Estados Unidos. Este Steinway ainda é da família enquanto estava na Alemanha.

Só pode ter uma história rica, um piano de 1920. Que história é essa?

É a história do impressionismo, do Debussy…

Estou a falar do teu instrumento em particular. Onde é que o adquiriste? Como é que ele foi parar às tuas mãos? Até porque não nasceste em 1920, obviamente [risos]

O meu instrumento tem uma história muito peculiar, porque eu nem sequer o comprei. Herdei-o. Quer dizer, “herdei-o”, porque depois tive de investir nele — estava cheio de ferrugem, aquelas coisas. Era um piano que não era tocado há dezenas de anos. Estava numa sala de mármore, portanto muito fria e húmida. Foi-me oferecido.

Estava a ser usado apenas como objecto de decoração, portanto.

Exacto. Num palácio. Numa casa aristocrática. Eu consegui ter acesso a ele e restaurei-o completamente. Meti-lhe cordas novas, porque elas estavam com caruncho… Quer dizer, não eu, mas os luthiers. Então ficou um instrumento de 1920 com as melhores cordas do mundo, sem caruncho, uma maravilha.

Incrível. E onde é que ele repousa?

Em minha casa, no Alentejo. Entretanto, consegui construir uma sala de música à proporção do piano.

Diz-me uma coisa… E fora de brincadeiras, porque eu sei que há uma dimensão espiritual nestas coisas. Tu quando tocas num instrumento assim sentes os fantasmas que já tocaram nele, em tempos idos?

Os fantasmas não diria. Mas quando toco os clássicos, por exemplo, sinto… Imagino aqueles compositores a compor à luz das velas, às quatro da manhã, se calhar com um copo ou dois de vinho tinto. Porque eles eram todos boémios. Nós esquecemo-nos, mas esses compositores todos — o Erik Satie, o Debussy — eram todos grandes boémios que frequentavam a noite parisiense. Depois iam para casa e tinham de tocar baixinho. Eu acho que a música do Satie era feita quase toda quando ele vinha dos bares. Era para não incomodar os vizinhos. Então tens aquela paz fantástica de quem está a tocar para não incomodar os vizinhos. São coisas, são “vapores”, que eu sinto quando estou a tocar essas peças.

Muito bem. Quais são as tuas expectativas para estes concertos que aí vêm de apresentação do Vitral Submerso?

Pela primeira vez estou sozinho no palco, o que é uma responsabilidade que eu nunca tive, porque sempre toquei em grupos. Portanto, tenho de me habituar a essa responsabilidade e dá-me um prazer inacreditável, como deves calcular.


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