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Publicado a: 24/02/2018

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review mr. wollo

[TEXTO] Rui Miguel Abreu

A música, entre tantas outras coisas, serviu sempre para imaginar mundos exóticos, sobretudo naqueles momentos em que novas tecnologias permitem estender a imaginação para lá dos limites até então conhecidos. Foi assim nos alvores da indústria discográfica, nas primeiras décadas do século XX, quando o boom de gravações folk na América (conferir, por favor, o primeiro episódio do excelente documentário em quatro movimentos Folk America, com chancela BBC) permitiu imaginar um país que todos os dias se transformava mercê dos milhares que desembarcavam em Ellis Island vindos da velha Europa com sonhos de uma vida melhor: o microfone foi, nesse tempo, uma ferramenta tão eficaz para a construção da América que conhecemos hoje quanto os caminhos de ferro ou a indústria.

Na década de 50, a chegada do estéreo e a possibilidade de multiplicação de pistas em estúdio foram fundamentais para alimentar a imaginação de uma geração que, ameaçada pelo fantasma nuclear, não hesitou em investir na deriva para paraísos fantasiosos, feitos de ilhas com vulcões e nativas de nudez inocente tapada com saias de palha: Les Baxter, Martin Denny, Arthur Lyman, Yma Sumac, Esquivel ou o extraordinário Eden Ahbez ergueram, a partir de estúdios de Los Angeles e recorrendo a músicos de sessão, autênticas bandas sonoras para filmes imaginários que traduziam fantasias carregadas de erotismo para as casas suburbanas equipadas com aparelhagens hi-fi e bares de canto com prateleiras repletas de bebidas coloridas. Nesse momento, tudo se cruzava e confundia: A Ásia cada vez menos distante (houve o conflito das Coreias, em breve aconteceria o do Vietname), a África de selvas profundas e nativas misteriosas, a América do Sul que se estendia das praias de Copacabana às ruínas de estranhas civilizações pré-Colombianas, os paraísos espalhados em minúsculas ilhas do Pacífico onde proliferavam estranhos ídolos e, claro, o espaço tornado presente por uma corrida que opunha as duas super-potências e que inundava os ecrãs de cinema em produções que estimulavam a exploração de novas ideias musicais. O derrube de tabus (sociais, sexuais, religiosos…) e a vontade de ir para lá do comum inspiraram muitos destes criadores e músicos. No fundamental livro Exotica (Serpent’s Tail, 1999), David Toop aborda todo este universo, explora as ligações entre a música e a arte de gente como Paul Gauguin, e descreve certeiramente o álbum Eden’s Island de Eden Ahbez como uma espécie de “Astral Weeks para a geração cocktail”.

 



Anos mais tarde, a evolução tecnológica e, sobretudo, as possibilidades electrónicas que expandiram a paleta de opções tímbricas à mercê dos compositores, levaram a novas e estimulantes revoluções. Estetas como Haruomi Hosono, no Japão, ou Jon Hassell, na América e Europa, inventaram um “quarto mundo” feito de “músicas possíveis”, mas até então não existentes.

Em Exotica, Toop escreve: “As gravações de Hosono nos anos 90 regressaram a várias versões dos seus exoticismos dos anos 70 contrastando aquilo que Clive Bell descreveu como ‘retro lounge’ com um electro-globalismo ambiental, alquimisado no cadinho do estúdio, o tipo de montagens hyperdub antecipadas pelas gravações Quarto Mundistas de Jon Hassell”. Na escrita de Toop não apenas se adivinha o futuro (Steve “Kode9” Goodman andou a ler Exotica, certamente…), como se entendem as ligações entre épocas e tecnologias que transformaram esta era de finais dos anos 80 e inícios dos anos 90 – quando em cena entraram o MIDI, teclados como o DX7, as possibilidades abertas pelas gravações digitais caseiras, os computadores e as suas capacidades de sequenciação, as ferramentas virtuais de edição, os primeiros samplers, etc – numa fonte que se hoje se adivinha quase inesgotável de estimulantes ideias musicais.

Assim se entende a corrente vertigem de reedições: experiências electrónicas espalhadas em obscuros títulos de library italiana; música para videojogos produzida por até agora anónimos criadores japoneses; as visionárias experiências de músicos como Roberto Musci e, claro, Jon Hassell (que, recentemente, viu serem relançados os cruciais Fourth World Vol. 1 – Possible Musics Dream Theory in Malaya, ambos através da Glitterbeat – esperemos que outros títulos como Aka / Darbari / Java – Magic Realism ou Power Spot possam igualmente merecer reedição); as experiências de tropicalismo baleárico espalhadas pelo incrível catálogo da Music From Memory; a reposição nos escaparates pela Drag City do fundamental Plux Quba de Nuno Canavarro e, agora (e finalmente…), a reedição de Mr. Wollogallu – da dupla Carlos Maria Trindade / Nuno Canavarro – pela editora de Barcelona Urpa i Musell — claros sinais do impacto no presente desta música criada entre o arranque dos anos 80 e os alvores dos anos 90 do século passado.

 


NUNO CANAVARRO // Plux Quba


Noutro incontornável livro em que aborda estas temáticas, Ocean of Sound (Serpent’s Tail, 1995), David Toop refere a “antropologia criativa” e a “etnopoética” da música de Jon Hassell, um som que, escreve o autor, é uma espécie de “nevoeiro líquido formado a partir de partículas de ar que passa através de metal > transformações electrónicas > os tons de uma raga indiana > variações de evolução lenta de um ciclo de tambores do Senegal gravados em Paris > brilhantes espirais de ruído que se erguem de música de gamelão e um disco de Yma Sumac (que já era um depósito de mitos coloniais) orquestrado ao estilo Hollywood Exotica por um dos inventores do género, Les Baxter”. “Este”, conclui Toop, “era o tipo de música, de acordo com Hassell, que deixaria para trás ‘a face ascética que a tradição eurocêntrica tem associado à expressão musical mais séria’.”

Essa poderia ser uma descrição alternativa da música que Maria Trindade e Canavarro criaram em Mr. Wollogallu caso substituíssemos os tambores do Senegal por guitarras do Brasil, a música de gamelão de Java pela da tradição japonesa e Yma Sumac e Les Baxter por Ryuichi Sakamoto e Brian Eno. Diferentes coordenadas, mas a mesma vontade de super-imposição, de contraste, de colisão entre coordenadas, tradições e sons opostos.

Com recurso a marimbas, percussões variadas, vibrafone, flauta japonesa, m’biras, flautas de pan, violoncelo, sanfona, theremin e, claro, teclados (será o Juno 60 que por ali se ouve? o DX7?) e samplers, Canavarro e Trindade exploram um impulso criativo muito semelhante ao que também inspirou os já citados produtores de exótica dos anos 50 a apontarem microfones aos mais variados instrumentos de percussão na tentativa de capturarem nas suas ressonâncias vislumbres desses mundos que se descobriam nas suas imaginações.

“We know the air is unfit to breathe, our food unfit to eat”: começa assim, com um sample de voz, o tema “The Truth” que abre o alinhamento de Mr. Wollogallu, trabalho gravado no primeiro semestre de 1990 e lançado pela União Lisboa de António Cunha e António Miguel Guimarães em 1991 (e desde então descatalogado, facto que explica os preços consideráveis a que tanto o CD como o vinil original ascenderam em plataformas como o discogs). O pressuposto criado por Carlos Maria Trindade logo na abertura do álbum parece remeter para o mesmo pesadelo apocalíptico que inspirava a fuga exótica dos compositores de Hollywood nos anos 50, quando o perigo de um conflito nuclear ameaçava lançar o mundo no caos e o escape para ilhas imaginárias surtia pleno efeito nas mentes suburbanas.

Os temas que se seguem, cruzam timbres acústicos (a guitarra em “Guiar”, por exemplo) com samples variados e “camas” electrónicas, desenhando-se assim, com considerável imaginação melódica e arrojo harmónico, o tal “quarto mundo” imaginário com ecos de Ásia (Carlos Maria, com os Heróis do Mar, já tinha explorado essa ideia em Macau, por exemplo) e de um inocente tropicalismo que enche de luz um álbum que até começa de forma sombria. A melodia de “Plan”, arrancada às cordas de nylon tocadas por Carlos Maria Trindade, poderia perfeitamente constar numa compilação de obscuras pérolas baleáricas lançadas na Music From Memory: é difícil fechar os olhos e não vislumbrar imediatamente uma praia de areias brancas, com sombra de palmeiras baixas e a promessa fresca de um oceano tranquilo com corais multi-coloridos mesmo ali à distância de um mergulho…

Mr. Wollogallu divide-se em duas partes, cada uma atribuída a um dos compositores. Os contributos de Canavarro no lado A, a cargo de Trindade, são mais significativos do que o inverso, com o ex-teclista dos Heróis do Mar (actualmente parte dos Madredeus) a surgir apenas em “Blu Terra”, o tema que abre o lado B e talvez o momento mais Jon Hassell do álbum. Em “S. Louise”, a peça que se segue, Canavarro regressa à toada mais ambiental e experimental que explorou de forma profunda em Plux Quba. Assomos de minimalismo (“Ven 5”, “Segredos M.”), momentos de abstracção desenhados a traço grosso com o sampler (“Aelux”) e o que soa quase a uma faixa perdida de My Life in The Bush of Ghosts (“Antica/Burun”) por via da manipulação de vozes sampladas que parecem ter um qualquer recorte etnográfico completam a viagem conduzida por Nuno Canavarro.

Tomado como um todo, Mr. Wollogallu resulta num extraordinário exercício de imaginação, numa aventura de exploração de um mundo fantástico que hoje, à luz do enquadramento proporcionado pelas incontáveis reedições que têm exposto o melhor da época em que este álbum também surgiu, parece muito mais nítido e estimulante do que na era em que foi originalmente lançado, há mais de um quarto de século. E isso, essa capacidade de, a partir de 1990, projectar uma ideia no futuro, é o que distingue as grandes obras de tantas outras que nunca pretenderam mais do que fincar os pés no seu próprio tempo.

 


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