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Fotografia: Rita Seixas
Publicado a: 08/03/2024

De punho cerrado pela igualdade de género.

Capicua sobre “Que Força É Essa Amiga”: “São questões que ainda faltam cumprir na luta pelos direitos das mulheres”

Fotografia: Rita Seixas
Publicado a: 08/03/2024

“Que Força É Essa Amiga” é a mais recente música lançada por Capicua. Fruto de um convite para fazer uma versão de uma música de Sérgio Godinho, esta canção lançada hoje, dia em que se celebra o Dia Internacional da Mulher, dá uso ao poema do “Que Força É Essa”, mudando a letra para falar das questões do trabalho doméstico e a desigualdade que ainda existe dentro das paredes das casas do nosso país.

Orgulhosamente feminista e amante da palavra, a rapper falou-nos um pouco, um dia antes do lançamento da música, sobre a desigualdade de género, o 25 de Abril e o papel dos artistas em intervir na sociedade através da música.



Como é que surgiu esta vontade de reescrever uma das músicas mais célebres do Sérgio Godinho?

Eu fui convidada a participar no “Conta-me Uma Canção”, um concerto que aconteceu em Janeiro no Teatro Maria Matos. O convite vinha com o desafio de partilhar o palco com o Sérgio, e além de cantarmos algumas canções em conjunto, tínhamos que fazer uma versão de uma canção um do outro. Eu já revisitei, samplei, homenageei músicas do Sérgio no meu trabalho, no SG Gigante, com ele em palco, em várias oportunidades. Mas nunca tinha pegado nessa canção que é muito marcante — é a primeira canção do primeiro disco dele, Os Sobreviventes que é o meu favorito e é uma das minhas favoritas, senão a minha favorita. Achei que já que tinha que fazer uma versão e tinha tido essa ideia de tentar fazer o exercício, de reescrever a canção no feminino, que seria uma boa oportunidade. Ele autorizou o meu atrevimento, e a ideia foi pegar na letra original, que é um bocadinho uma denúncia da exploração do trabalho a baixo custo, com a tentativa de semear o inconformismo no coração dos trabalhadores. Mas desta vez, pondo o foco na exploração do trabalho doméstico e reprodutivo. A chamada economia do cuidado, que está quase exclusivamente a cargo das mulheres: trabalho ou muito mal pago ou posto na conta do amor incondicional sem qualquer remuneração, e que faz com que as mulheres além de estarem muito sobrecarregadas, não fiquem em igualdade de circunstâncias a competir no mercado de trabalho com os seus pares, porque têm sempre esse encargo extra, de trabalhar mais horas por dia na dupla jornada, naquilo que é o trabalho depois do trabalho, o trabalho doméstico. E eu acho que é uma questão muito importante, num país em que temos uma maioria de licenciadas mulheres, mas em que o gap salarial é grande, que à medida que ascendemos na carreira vamos vendo cada vez menos mulheres, e em que percebemos que essa vantagem competitiva no mercado de trabalho se prende muito com aquilo que são as circunstâncias da sobrecarga com as questões que têm a ver com o cuidado dos mais novos, e dos mais velhos, e com um trabalho doméstico que ainda está muito mal distribuído. 

Achei que era uma boa oportunidade de fazer esse exercício de reescrita, e fazer uma versão em que não era só cantar uma canção que já está criada, porque eu também não sou propriamente uma cantora ou intérprete, sou uma rapper. Quando não tenho que escrever parece que a coisa perde o sentido. Peguei na canção mudando a sua perspetiva e o seu género, reescrevi a letra, marcando a estrutura do poema e o refrão quase intacto. No Maria Matos estava bastante nervosa, a canção não correu assim tão bem, e fiquei com vontade de a gravar direitinho. Ia lançar para celebrar não só o 8 de Março, Dia da Mulher, mas também os 50 anos do 25 de Abril, porque acho que estas questões de que a canção trata são questões que ainda faltam cumprir naquilo que é a luta pela igualdade dos direitos das mulheres, no sentido em que nestes 50 anos já fizemos uns grandes avanços e muitas vitórias foram conquistadas nos direitos das mulheres, nomeadamente naquilo que é a lei — hoje temos igualdade consagrada na constituição e nas nossas leis, ao contrário do que acontecia antes do 25 de Abril, em que nem todas as mulheres podiam votar, em que as mulheres não podiam exercer determinadas profissões, em que não podiam trabalhar ou sair do país sem autorização do pai e do marido, por exemplo. Nestes 50 anos conseguimos resolver muitas dessas coisas, e conseguimos ter um grande avanço na escolarização das mulheres, que as mulheres tivessem em massa nos mercados de trabalho, conseguimos grandes evoluções na independência das mulheres, no que tem também a ver com as liberdades sexuais, naquilo que são as condições de vida de maior parte das mulheres portuguesas, mas, há ainda um trabalho a ser feito. 

Numa crónica que escreveste no Aquário, e pegando no que dizias sobre lançar a música no Dia da Mulher, dizias o seguinte:Estamos exaustas. Exaustas de ainda estarmos exaustas. Exaustas de, apesar do tanto que mudou, tanto ter mudado tão pouco. Exaustas de que a igualdade real ainda seja um privilégio. Exaustas da excelionaidade que contraria o viés.” O que falta ainda para acabar com essa exaustão?

Essa crónica foi feita a pedido da Visão para uma homenagem às três Marias e ao aniversário das Novíssimas Cartas Portuguesas. Ainda esta semana estava a ler uma entrevista da Maria Teresa Horta que falava um bocadinho sobre isso. Aquilo que é a raiz da desigualdade tem muito a haver com aquilo que se passa dentro de casa, e nesse aspeto, há um 25 de Abril que ainda falta fazer dentro da casa das pessoas. Na lei e no mercado de trabalho, aparentemente, as mulheres têm muito mais espaço conquistado, mas em muitas casas portuguesas ainda não mudou assim tanto. Isso faz com que haja uma desigualdade na competição entre pares no mercado de trabalho, porque se as mulheres é que têm a sobrecarga, que tem a ver com o cansaço e a energia vital de ter que trabalhar mais horas depois do expediente dentro de casa, mas também a desvantagem competitiva de serem elas que ficam grávidas e terem licenças de parentalidade, e muitas delas serem despedidas depois de uma gravidez, ou não promovidas por ter filhos, ou porque as mulheres são quem fica em casa quando as crianças então doentes, quando é preciso tratar dos idosos acamados. Enquanto que em comparação aos homens, as suas carreiras não são tão prejudicadas. Aquilo que acontece dentro de casa é o que faz com que no mercado de trabalho ainda haja condições de desigualdade, e eu acho que é importante fazer o trabalho que falta, que é aquilo que também justifica muitas vezes os nossos números de violência doméstica, que tem a haver com aquilo que são as nossas relações familiares, conjugais, e a forma como o lugar da mulher dentro de casa não ter mudado assim tanto como mudou fora. Mesmo que hoje já tenhamos muitas coisas dadas como garantidas, há muitas outras pelas quais ainda falta lutar. E mesmo as que estão dadas por garantidas, podem estar em risco, como vemos com o crescimento da extrema-direita.

Amanhã, para além de ser o Dia da Mulher, é também o último dia de campanha eleitoral das legislativas, e este ano celebra-se também os 50 anos do 25 de Abril, como referiste. Tendo em conta este panorama, qual julgas ser o papel dos artistas? Houve até um repto lançado na semana passada à classe artística pelas Fado Bicha, por uma música que lançaram a denunciar a extrema-direita, fazendo um apelo a essa denúncia.

Eu acho que os músicos não têm o dever de se posicionar, um dever no sentido em que a liberdade criativa está acima de qualquer conceção ética que eu possa ter a respeito da minha música ou da música dos outros. Mas eu acredito que a música e a cultura no geral têm um papel importante na disseminação de mensagens, na denúncia daquilo que nos preocupa, naquilo que tem a ver com a sensibilização das pessoas para determinadas causas, e que é muito eficiente a fazê-lo porque vai pelo viés da emoção, e as pessoas às vezes têm uma resistência a um discurso mais político ou informativo, ou até aos factos. Hoje em dia há muitas pessoas que têm muita alergia aos factos, às estatísticas, e acham sempre que tudo é questionável, e que a sua opinião ou sensação tem mais valor, mas o que acontece é que a música, e outras formas de arte, têm a capacidade de nos emocionar e de nos tocar de uma forma que cultiva um bocado a empatia — pelo menos de termos a capacidade de nos pormos no lugar do outro, de tentar um sentido de identificação que nos faz imaginar como seria viver aquela vida, ou estar naquele lugar, e isso cultiva a solidariedade ou a empatia. Não é à toa que a cultura nos distingue dos outros animais, é o que nos faz mais humanos, e nesse sentido, eu acho que se nós temos esse superpoder e este canal privilegiado para chegar às emoções das pessoas, seria um desperdício termos oportunidade e depois também não termos a responsabilidade. Eu acredito que o nosso contributo pode ser esse, de chamar as pessoas a pensar nesses temas, às vezes ditos como polarizados, fraturantes e polémicos, mas pelo viés da empatia, da solidariedade, dessa capacidade de pensar não no nosso lugar de privilégio, mas pondo-nos no lugar do outro, que é um exercício que a arte nos permite fazer muito bem. 

Numa entrevista que deste ao FEMINA, falavas do facto de ter sido desafiante teres trilhares um caminho no rap quando não tinhas referências de vozes femininas. Como olhas para o rap feito por mulheres hoje?

Hoje temos mais variedade, e mais miúdas a começar. Eu tenho é só um receio, que é que esta variedade que temos hoje, e a maior quantidade de miúdas que começam a fazer rap, não resulte em carreiras longas, porque já houve outros momentos no passado em que vimos que havia miúdas que estavam a começar — que queriam fazer rap e lançavam uma canção, uma mixtape, ou começavam de uma forma mais ativa a construir uma carreira no rap —, mas depois com o tempo — com as barreiras, com os obstáculos, com falta de oportunidades, ou porque tiveram filhos, ou porque têm que trabalhar para sustentar, ou mil outras coisas — vão deixando os sonhos para trás. Eu tenho mesmo medo que isso aconteça, mesmo que agora pareça que existem cada vez mais mulheres, que essa quantidade não se traduza em carreiras longas, que era o que nós queríamos que acontecesse. E nesse sentido, tenho muita esperança que isso aconteça, até porque as novas gerações não têm tanto esse preconceito que havia antigamente contra o rap feito por mulheres. Acho que a Internet também democratiza não só o acesso à música, mas também à promoção, e há menos gatekeepers, apesar de ainda haver alguns. Não digo que é fácil, que estamos em igualdade de circunstâncias com os nossos pares, mas apesar de tudo acho que já houve alguma evolução que pode tornar-nos mais otimistas a respeito dessa possibilidade de haver mais mulheres a fazer carreiras longas. Mas acho que só daqui a uns anos é que poderemos ter a certeza de que a aparição de várias miúdas com vontade e com talento, e com fome de microfone, depois resulta em reais oportunidades de se profissionalizarem, de se fazerem carreiras, de concretizarem as suas visões artísticas, e de conseguirmos de facto ocupar espaço, para não sermos só exceções à regra. É para mudar a regra. E para isso é preciso número, é preciso consolidação, é preciso tempo, e era isso que eu gostava que acontecesse.

E tem havido uma mudança do próprio público ?

Acho que sim. Tem havido, mas apesar de tudo ainda não é suficiente. Porque para estas novas gerações, não é tão estranho ter uma mulher a cantar rap porque já ouviram casos como os da Cardi B ou da Nicki Minaj no rap americano, mas também aqui em Portugal há cada vez mais. Apesar disso, apesar de ser menos exótico e de haver menos anti-corpos, é preciso que os rapazes, que são a maioria do público do hip hop, tenham a capacidade de ser fãs de mulheres como são fãs dos homens, e eu acho que isso não é difícil. Por uma questão de identificação, por uma questão complexa que nos levaria a uma hora de conversa.

Um outro projeto que fizeste a curadoria, o SG Gigante, também teve versões de músicas do Sérgio Godinho que foram interpretadas por novas gerações. Como foi esta experiência e a reação do Sérgio Godinho ao resultado deste projecto e também da versão que fizeste?

A experiência foi boa. Foi difícil porque eu queria uma variedade grande de estilos, géneros, origens geográficas, e também rappers que fossem de uma nova geração, mas que percebessem a responsabilidade de participar num disco de homenagem ao Sérgio, e que tivessem em consonância com os seus valores. E acho que o resultado final é fixe. É diverso, e acho que correu bem. O Sérgio é muito generoso e tem um grande desprendimento naquilo que é a possibilidade de dar outras vidas às suas canções, ou de outras pessoas terem esses atrevimentos de reescrever e reinterpretar e fazer versões das suas canções. E portanto foi sempre muito aberto para fazer esse processo, e agora também, com a minha própria versão, e acho que isso é uma prova da sua grandeza como artista — não temer que outras pessoas peguem no seu reportório de uma forma muito livre o reinterpretem. Foi uma boa experiência e é também uma demonstração da generosidade do Sérgio.


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