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Fotografia: Filipe Ferreira para a Magnética Magazine
Publicado a: 03/03/2022

Com a força e a liberdade de quem ainda estava a descobrir quase tudo.

Capicua e os 10 anos do álbum de estreia: “Cheguei a pessoas de todas as tribos urbanas”

Fotografia: Filipe Ferreira para a Magnética Magazine
Publicado a: 03/03/2022

Completados 10 anos sobre o lançamento do homónimo álbum de Capicua no passado dia 13 de Fevereiro — tendo motivado, nesse mesmo dia, uma conversa extensa track-by-track com Henrique Amaro, radialista da Antena 3 que foi igualmente responsável por essa edição devido ao seu papel de curadoria na entretanto extinta Optimus Discos –, estivemos também nós num tête-à-tête com a rapper portuense em jeito de antecipação aos concertos de celebração da sua estreia oficial: o primeiro aconteceu na sexta-feira, dia 25 de Fevereiro, no Plano B, no Porto, e o segundo terá lugar amanhã, 4 de Março, no Musicbox, em Lisboa.

Antes de passarmos à conversa, aproveitamos para juntar aqui o relato daquilo que vimos na sala portuense na semana passada. Nas franjas do público (um eufemismo para o facto de termos ficado fora da sala Palco devido ao evidente excesso de gente), presenciámos um dos primeiros concertos de maior liberdade depois de dois anos em que a comunidade artística sofreu com as restrições impostas: sala esgotada, completamente a abarrotar, com um público entusiasta para celebrar este simbólico aniversário. No regresso à intimidade das salas mais pequenas, o espectáculo levou a toada que nos foi revelada na entrevista (já aí vamos): a celebração da actualidade desse álbum de arranque para a profissionalização da MC, cantando e espantando os males do povo português, porque “só neste país é que se diz ‘só neste país’” (o uso desse sample em “Terapia de Grupo” levaria também ao início duma amizade entre a autora de Sereia Louca e Sérgio Godinho); o discurso e intenção da paridade de género na equipa que torna real o acontecimento musical — contamos três mulheres (Capicua junto com as back vocals Inês Malheiro e Joana Raquel) e dois homens (D-One e Virtus) em palco, mais uma técnica de luz e um técnico de som no background; a bem-conseguida extensão do primeiro ao seu “melhor álbum” nas palavras de Ana Fernandes, ou seja, a concretização de vários temas do mais recente disco Madrepérola, a fechar a noite; e a força do seu acto activista e do seu modo consciente na escrita como ferramenta para o progresso social. Repórter, público e músicos juntos de novo para a descoberta da vida humanizada pela arte de palco.

Sem mais demoras, fiquemos agora com a entrevista:



Como foi feita a escolha de beats nesse álbum?  

Eu tive a sorte de em 2008 ter tido uma muito boa aceitação da minha primeira mixtape Capicua Goes Preemo, então digamos que o meu nome saiu do Porto para chegar a outros pontos do país e passei a receber convites por parte de produtores e DJs. Isso abriu-me as portas para quando precisei de beats para o disco, ao contactar pessoas como o Xeg ou o Sam [The Kid] — que eram já super conceituados no meio e com quem não tinha propriamente uma relação de amizade –, senti abertura por parte deles, precisamente porque tinham ouvido e curtido a minha mixtape. Por exemplo, o Nel’Assassin já me tinha contactado para a mixtape dele, portanto já havia uma relação prévia; o DarkSunn não sei se o conhecia pessoalmente, mas seguia o trabalho dele e ele também estava a par da minha mixtape. Foi um processo natural como é sempre nos meus discos: falar com os produtores que eu acompanho e admiro e perceber se, dentro dos beats que eles possam sugerir, há algum que serve a ideia da letra que eu tinha. Por exemplo, o “Medo do Medo” que é do Ruas, — um amigo meu já na altura –, foi [um instrumental] difícil de encontrar. Eu já há muito que tinha a ideia de fazer aquela música, mas precisava de um beat que fosse muito específico, que tivesse um ambiente que permitisse criar aquele crescendo de ansiedade, aquela sensação “sala de pânico”, que parece que vai acelerando.

Por um lado tive a sorte e também algum mérito em que o meu primeiro trabalho [a solo] chegasse a produtores que passaram a conhecer o meu nome e que estivessem disponíveis para me oferecer beats; e por outro tive a sorte de encontrar nas gavetas do computador e MPCs desses produtores beats que encaixavam perfeitamente nas minhas ideias. Depois, claro, trabalhei também com o D-One que é o meu companheiro desde o primeiro EP [Syzygy], a maior parte dos beats são dele e ele é que fez as sequências, os arranjos dos outros beats também, a maior parte deles.

Portanto, foi uma mistura de pessoas que eu contactei porque admirava e pessoas de quem era amiga, como o Ruas, e outras pessoas com quem já trabalhava, como é o caso do D-One.

Como mencionas, o D-One acompanha-te desde sempre: de que forma funciona a vossa colaboração em termos de processo criativo e método de trabalho (em termos de produção, escolha de beats, etc.)?

Neste disco, tal como em todos os meus discos e mixtapes, salvo raras excepções em músicas que os produtores fazem questão de serem eles próprios a fazer a sequência, o D-One é a pessoa que faz, muitas vezes incorporando as minhas ideias, as sequências e os arranjos dos beats. E normalmente é sempre com ele que eu faço o processo prévio de gravar as demos, de cantar a música desde o início. Ou seja, eu procuro beats que muitas vezes são dele, outras vezes não, escrevo para eles, gravo as demos com o D e é com ele que eu depois vou fazendo a sequência… perceber, “aqui se calhar vamos chamar alguém para tocar um instrumento”. É com ele que faço, basicamente, esse brainstorming, esse trabalho de parceria para ir do beat à canção. Já houve alturas em que ele também gravou e misturou, mas neste disco em particular, que foi no fundo o meu primeiro disco “a sério” – antes tinha editado EPs em grupo e uma mixtape -, eu tive a ideia de fazer com ele esse trabalho todo, mas depois ir gravar, misturar com uma pessoa que não fosse do hip hop. Sentia que queria ter um olhar externo na parte do áudio, até para tentar chegar a territórios diferentes, e também senti que, às vezes, saírmos da nossa bolha, da nossa equipa de trabalho, também nos permite experimentar outras coisas — e acabei por gravar com o Ghuna X. Ou seja, fiz todo o trabalho de arranjos e pré-produção com o D, depois gravei com o Pedro Augusto [Ghuna X] e ele misturou o disco. Foi interessante porque ele vem da música experimental, música electrónica e eu sentia que qualquer coisa era válida e que podia experimentar e foi fixe ter trabalhado com ele. Também foi a primeira experiência, acho eu, que ele teve de gravar e misturar um disco inteiro. Portanto, todos nós estávamos a aprender e isso foi fixe, porque estávamos bastante livres e, ao mesmo tempo, com espírito de missão, porque quando é a primeira vez entregas-te às coisas com muita força. Foi um processo que demorou muito tempo, os discos que se seguiram foram mais fáceis de fazer, porque até esse disco não tinha um método de trabalho tão organizado e ainda tinha muito mais inseguranças. Então, esse disco também foi importante para mim, para eu cometer alguns erros, bater com a cabeça na parede, recuar, avançar, demorar, para depois perceber como [o processo] funciona para mim. Eu lembro-me de nesse disco ter regravado várias vezes as demos, tive muitas dúvidas acerca dos beats, troquei de beats várias vezes. Coisas que ultimamente não tenho feito tanto. Hoje em dia é tudo mais na mouche. Precisamente porque já tenho um processo criativo e método de trabalho muito mais definido em termos de etapas e sou menos insegura também. Tenho mais ferramentas para chegar onde quero logo à primeira ou à segunda. Mas naquele disco não. Apesar de no fim ter ficado muito contente com o resultado, não foi assim tão fácil chegar ali.

Como surge o NERVE neste disco, sendo que ele acabou por ser o único rapper a participar no teu álbum em “Judas & Dalilas”? 

Eu sou muito admiradora do NERVE desde sempre. Acho que é um dos mais talentosos rappers do país e escreve lindamente. Mas tal como todas as participações que eu tenho nos meus discos, ele surge ali, não porque sou amiga dele ou porque o admiro muito, mas porque aquela música precisava dele. Naquele tema a minha ideia era fazer uma música sobre os “amigos da onça”, é um clássico rap desde “Falsos Amigos” dos Mind da Gap até mil outras músicas que falam de Judas. É um tema engraçado e eu queria fazer uma coisa cómica, tinha um beat do Sam muito funky e achei que as figuras da Dalila e do Judas eram uma boa forma de abordar o tema, sendo que eu fazendo de Dalila, faltava-me o Judas. E lembrei-me do NERVE porque ele tem uma escrita muito irónica e um humor negro engraçado, e achei que ele ia fazer bem o papel. Acho que resultou muito bem e até hoje gosto muito desse tema.

Eu não tive muitos convidados nesse disco, porque era o meu primeiro disco, era um cartão de apresentação. Era eu a dar-me a conhecer, não tanto na cena do hip hop mais underground, mas com ambição de chegar a outros públicos também e portanto eu queria centrar o disco em mim.

Além de ti, o facto de só estarem creditados homens na feitura do disco, está relacionado com os tempos em que vivíamos e a escassez de rappers, engenheiras de som e produtoras?

Claro. Por exemplo, no álbum seguinte, no Sereia Louca, as participações são quase todas de mulheres. Um bocadinho devido a querer equilibrar o facto de na parte técnica ter muitos homens e também porque o Sereia Louca é um álbum muito mais feminino. Mas essa preocupação, no meu caso, tem sido transversal nas equipas técnicas, na equipa que levo para a estrada, tento quase sempre a paridade, embora nem sempre consiga. Antes desse primeiro álbum eu tive uma banda em que éramos três mulheres e o D-One [risos], e depois fiz uma mixtape a solo, eu e o D, taco-a-taco. No álbum de estreia não tive tanto essa preocupação em termos da equipa, primeiro porque não era muito fácil de encontrar mulheres produtoras ou engenheiras de som na altura, mas depois porque de facto, nesse momento, o objectivo era eu própria descobrir o meu processo e rodeei-me das pessoas que mais intuitivamente fui encontrando. A partir daí, com a consciência que já tinha anteriormente, e com mais capacidade de encontrar parceiras que me acompanhassem, fui tentando resolver isso disco após disco, ou tour após tour. Nem sempre consigo, tento o mais que possível, acho que hoje já é mais fácil: levo um técnico de som e levo uma técnica de luz, por exemplo; levo um roadie, mas depois a pessoa que vai filmar ou fotografar tento que seja uma mulher; o road manager é um homem, mas tento que a pessoa que vá a conduzir a carrinha seja uma mulher. Não só nos discos, mas na parte da estrada tento conseguir uma equipa mais equilibrada e nomeadamente a minha agente é uma mulher, eu sou uma mulher, a pessoa que dirige a editora com quem colaboro neste momento também é uma mulher. Ou seja, desde então tem sido mais fácil criar esse equilíbrio, se calhar não tanto nos créditos dos discos, mas no resto do trabalho, que é aliás 90% do trabalho, que é a estrada e não tanto a parte criativa. Acho que ainda falta muito trabalho pela frente e espero que nas próximas gerações isso já nem seja uma questão.

Para aqueles que estejam a conhecer este teu primeiro álbum agora — assumindo que certas pessoas começaram por te conhecer em trabalhos mais recentes –, queres descrever em que ponto da tua vida estavas quando saiu o teu primeiro álbum e o que te influenciou mais àquela data, em termos de escrita e estética sonora para o álbum?

Em termos de referências — e é uma boa pergunta –, eu lembro-me que na altura ouvi muito uma rapper inglesa que se chama Speech Debelle, que aliás ganhou o Mercury Prize, e lembro-me que o álbum dela me marcou bastante, porque ela tinha uma fragilidade na voz, na gravação, parecia que não estava a perseguir a perfeição do take. Lembro-me que na altura isso marcou-me muito porque eu sempre tive dificuldade em descontrair quando estou em estúdio, tento sempre fazer o melhor take, mas depois às vezes perco na emoção e para mim isso é difícil. Ela foi uma referência porque ensinou-me a aceitar que a fragilidade é o mais fixe do take e que perseguir a perfeição é um bocado inglório. Em termos de postura em relação à ética de trabalho e à forma de promover o disco, eu sempre fui muito influenciada pelos Dealema na lógica de manter um espírito de liberdade, independência e espontaneidade, que acho que também se sente nesse disco porque não estava a tentar seguir nenhuma moda [risos], não estava a tentar ir de encontro à expectativa do mercado. Eu fiz o disco que me representava naquele momento e tal como eu aprendi na escola dos Dealema, nessa coisa de ser independente, no verdadeiro sentido de se fazer a música que nos representa melhor. E depois em termos estéticos, está dentro daquilo que tenho feito desde então: hip hop clássico com preocupação na qualidade da escrita, com mensagem e com uma visão autoral, e nesse sentido acho que me preocupei mais do que tudo em fazer uma coisa que me apresentasse ao mundo, porque achei que com aquele disco podia chegar a outras pessoas fora do meio do rap. E foi o que aconteceu. Cheguei a pessoas de todas as tribos urbanas. Já com muita consciência de que queria chegar a públicos de todas as idades. 

Foi no primeiro álbum que sentiste que se abriu a porta à profissionalização na música?

Sim. Não que depois desse disco estivesse a viver da música passados três meses, nem nada que se pareça, nem fui parar ao Top+, que na altura ainda existia. Não é bem isso. Mas acho que foi porque pela primeira vez comecei a promover o meu trabalho no circuito de música portuguesa e não só do hip hop, no sentido em que com a Optimus Discos tive a oportunidade de ter assessoria de imprensa e, por uma série de razões, houve um certo interesse, então eu tive oportunidade de fazer muitas entrevistas, de participar em muitos programas de rádio, houve muitas críticas positivas ao disco. Depois, no final do ano, saiu em montes de listas dos melhores do ano, que nem sequer sabia que existiam, e fiquei sempre nos primeiros lugares. Foi muito surpreendente. Nesse aspecto da promoção foi um disco em que eu pude comunicar para o público geral e não só para o público da tribo, do meu circuito habitual, que era dos blogues, dos sites, das festas e dos festivais de hip hop. Aí, pela primeira vez, eu pude chegar ao público mais abrangente e o meu pai pôde ler uma crítica ao meu disco no Expresso e passei nas rádios de música mais alternativa. Nesse sentido foi uma oportunidade de começar esse processo de divulgação do meu trabalho e de profissionalização que veio depois com o tempo e com a sucessão de edições. Aquilo foi o início do processo de expansão de públicos, da personalização também da forma de divulgar o meu trabalho, sendo que essa personalização veio dessa consolidação permanente com edições novas, com projectos, com discos, com colaborações, com tours, com todo o trabalho que na década seguinte se consolidou. Não é algo que acontece de um dia para o outro. 

O álbum foca-se em várias temáticas como política, sociedade portuguesa, feminismo em temas como “Os heróis”, “Terapia de Grupo”, “A Última”

-O “Medo do Medo” também-

-há muitos pontos que continuam actuais na realidade portuguesa: a precariedade, a dificuldade de acesso a trabalho, o cansaço generalizado da sociedade, a quase obrigatoriedade de emigrar para conquistar melhores condições de vida, etc. Em 2012, vivíamos no período Troika, num governo de centro-direita, passados 10 anos voltamos a uma maioria absoluta de centro-esquerda e temos em vista a ascensão da extrema-direita. Pensando em termos sociais, sentes que o álbum seria diferente se tivesse sido lançado em 2022? 

Claro que seria diferente porque eu sou outra pessoa e os tempos mudaram, mas acho que a actualidade do disco se mantém. Ao ouvir o disco de novo, a “Medo do Medo” — eu canto-a sempre e continuo a actuá-la — e aí não houve nenhuma surpresa, “Os Heróis” já não a cantava há muito tempo e de facto continua intacta, mas sobretudo a “Terapia de Grupo” surpreendeu-me porque é uma música que em 2012 já falava muito da nossa dificuldade face ao nosso passado colonial e sobre essas questões da história e como isso pode ser conflituoso. E ultimamente é um tema que tem sido muito abordado, mas na altura não era assim tanto. Ou seja, o disco tinha essa virtude, ou tem, de avançar com discussões que eu acho que são importantes para a nossa sociedade, desde o nosso passado até ao nosso futuro, e acho que até hoje essa actualidade se mantém. Se fosse hoje, talvez escolhesse outro beat numa música ou outra, se calhar teria gravado aquilo de forma diferente, mas aquilo que é mais importante no disco é a escrita e o conteúdo dela, e acho que até hoje me represento e tem muita actualidade. Isto porque às vezes no nosso mercado a indústria musical impõe uma certa ditadura da novidade e de estarmos sempre na crista daquilo que é mais inovador e mais trendy na próxima semana e eu sempre procurei intemporalidade. Qualquer que fosse a estética do beat que eu escolho ou qualquer que fosse o flow que eu explore ou qualquer que seja a sonoridade, os instrumentos, o que quer que acrescente à música, aquilo que é mais importante pra mim é que o texto, a escrita e o conteúdo sobrevivam ao tempo. Claro que há temas como a “Medo do Medo” ou como a “Medusa”, que falam da violência contra as mulheres, que eu adoraria que deixassem de fazer sentido porque é uma questão de evolução social e de melhoria das condições de vida das pessoas. Tal como “Os Heróis”, tal como a “Terapia de Grupo”, ou seja, há muitas coisas que eu gostava que deixassem de fazer sentido, porque seria sinal de que evoluímos como sociedade e resolvemos esses problemas. Agora, neste caso, mantém-se não só a qualidade da escrita como também a actualidade do tema. No caso da “Terapia de Grupo” até acho que naquela altura era uma coisa que não era muito falada e o tempo veio torná-la mais relevante nos dias que correm. Tirando a parte da Eurovisão, porque entretanto ganhámos [risos].



Sendo o tema sociopolítica algo muito presente na tua escrita, queres dar uma antevisão do que poderemos esperar nestes próximos quatro anos de governação (és mais optimista ou pessimista de mudanças estruturais no país)? Como reages à possível ascensão da extrema-direita?

Eu sou insuspeita porque eu não votei no partido que ganhou, mas, ao mesmo tempo, prefiro que a direita não tenha ganho, sobretudo porque coligada com a extrema-direita seria de facto um retrocesso. Preocupa-me bastante não só esse crescimento da extrema-direita, obviamente, como acho que, num quadro mais geral, me preocupa um crescimento do espírito da época que é muito pouco empático, muito pouco solidário, muito pouco humanista. Eu sinto que a extrema-direita cresce, como algumas ideias neoliberais completamente tecnocráticas e pouco sensíveis às questões sociais, precisamente porque vivemos num tempo de pouca memória e de muito individualismo. O crescimento desse discurso só faz sentido se não existir uma noção de solidariedade básica, humana e de comunidade enquanto projecto de apoio aos mais frágeis e de permanente redistribuição de riqueza e de permanente procura pela erradicação das desigualdades. E acho que estamos tão longe dessa noção de sociedade, que só assim se explica que as pessoas prefiram aderir a discursos que são às vezes tão desumanos, tão anti-humanistas, tão racistas, tão pouco solidários e que vão buscar as baixas paixões das pessoas mais desamparadas, no intuito de dividir para reinar. Por isso é preocupante, não tanto a conjuntura dos próximos quatro anos, mas mais esse espírito da época, que cheira a anos 30.

É por isso também que eu acho que a música e a cultura no geral têm um papel super importante, porque às vezes é através da música, dum filme, dum livro que nós quase sentimos o que é viver na pele do outro e nos humanizamos a partir daí. Temos um bocado a consciência do que seria estar noutra situação e nos sensibilizarmos para a condição humana e para a diferença, e tentamos criar mais pontes e mais sentido de humanidade. É a cultura que nos distingue dos animais e tem esse poder de nos aproximar, de nos emocionar pela vida do outro. Eu acho que isso cria um sentido de comunidade que é muito difícil se não existir cultura. Até por isso é que as ditaduras têm como inimigo número 1 os artistas. Precisamente porque a arte tem esse poder de nos aproximar e de nos tornarmos menos individualistas e menos cegos.

“No R-A-P sou eu que reino rapaz”: o tema “Maria Capaz” é um grito de emancipação feminino no rap. A verdade é que em 10 anos não há muitos exemplos de rappers femininas que tenham conseguido consolidar uma carreira artística como a tua. O que achas que faltará na cultura, e na política cultural, para que existam mais oportunidades e possibilidade de reconhecimento de rappers femininas? (E se quiseres alargar o espectro desta questão a artistas no geral…)

Falta tempo para a gente continuar a fazer a evolução acontecer e aquilo que se mantém é a nossa cultura patriarcal, que teima em resistir, apesar de já ter recuado bastante e termos conquistado muitas coisas. Ainda assim vivemos numa cultura muito machista e o rap não é excepção, aliás, até tende a ser um bocadinho pior porque é uma cultura muito masculina e acho que o que falta é mais luta, mais tempo, mais evolução, mais trabalho e mais consolidação das conquistas conseguidas. Ao mesmo tempo, tenho esperança que na era da Internet, e agora que os fenómenos são tão mais rápidos e tão mais contabilizáveis e palpáveis do ponto de vista até quantitativo, seja cada vez mais difícil ignorar o talento feminino e os fenómenos que vão aparecendo, e que eles se consolidem e que se tornem em carreiras longas. Acho que é a única coisa que vai mudar, é continuar a haver casos de sucesso, de carreiras longevas, consolidação de trabalho, de talento e de representatividade, porque é com o tempo e com as gerações que isso se vai equilibrando. E com muita luta, obviamente. Agora, acho que as coisas não estão ainda resolvidas, há muitas coisas que são diferentes, e que há dois pesos e duas medidas, e há, permanentemente, uma hiper-exigência em relação a nós, que não é equivalente àquilo que existe no caso dos homens. Acho que o público também se identifica mais e defende mais os rappers, enquanto homens, por uma questão cultural e acho que isso é óbvio, não é preciso estar a dizê-lo, embora para algumas pessoas possa não o ser. E, na minha carreira, eu fui percebendo que de facto, depois duma fase inicial em que toda a gente apoia e há uma fase em que também os media descobrem e estás na novidade e és exótico porque és uma mulher e tens mais visibilidade, quando já deixas de ter essa novidade e começas a ter um certo sucesso começam a ignorar-te duma forma mais declarada. Com o tempo acho que tendemos a ser subvalorizadas. Há uma dificuldade em nos porem na mesma liga, estamos a ser relegadas para a segunda divisão, mesmo que num primeiro momento possa parecer que somos muito celebradas, depois com o tempo… é mais fácil ignorar. E não falo só do público, falo também dos pares e da cultura em geral. Mas acho que isso é uma questão que não tem a ver só com o rap, tem a ver com a nossa cultura em geral e sobretudo nos meios, que como no rap são mais masculinos: como o desporto de alta competição, como a política, como nas chefias das grandes empresas. Há sempre um tecto invisível para nós. Depois, a partir dum certo limite, já estamos a chatear muito, mais vale não sermos muito consideradas. Se isso não é óbvio para todos, deveria começar a ser e acho que a história me vai dar razão. Nas duas coisas: numa, vamos acabar por conseguir equilibrar a balança com as gerações [seguintes]; e na outra, que antes disso acontecer será sempre mais difícil para nós. 

Em 2012 assumiste um papel activista e feminista no papel de rapper: consideras que hoje já há um grupo maior de pessoas com consciência das desigualdades e capacidade para saber lidar/lutar informadamente  acerca de questões de género?

Sim. Quando eu comecei a falar sobre estes temas, e que foi muito antes deste primeiro disco, já desde o primeiro EP com a banda que nós tínhamos formado em 2004, nós falávamos em questões de género… era uma coisa que acontecia raramente ouvir-se, sobretudo na música. Talvez no activismo já ouvias e em determinados meios se calhar mais académicos, mas na música era uma coisa muito rara [risos]. Se calhar algumas excepções existirão, obviamente, mas acho que desde então, desde que comecei a falar mais sobre isso e acho que também a partir dessa ideia da “Maria Capaz” e das letras que se seguiram — em todos os discos eu vou abordando essas questões –, que o próprio debate dessas questões e a palavra feminismo também foram muito mais disseminadas, depois também algumas estrelas planetárias começaram a abordar esse tema: da Beyoncé à Emma Stone-

-também tivemos o movimento MeToo há cerca de cinco anos, que ajudou a massificar…

Claro. Muitas dinâmicas sociais e políticas que ajudaram a que o tema se tornasse mais centrado na ordem do dia e ainda bem. E depois também na arte. A Beyoncé fez músicas a falar sobre isso… outras pessoas com muita visibilidade também, portanto, acho que entretanto isso tornou-se uma coisa mais normal. Ainda bem. Espero que sim.

Recebes feedback relativamente ao impacto que tiveste num papel cívico mais activo por parte de outras pessoas? Em particular tens alguma história que gostasses de destacar?

Sim. Tenho tido sempre muito feedback e a prova disso é que me chamam sempre muito para falar em escolas, em universidades, em encontros sobre questões de género. Ou seja, acho que as pessoas me reconhecem como uma voz importante nesse tema e nessa luta. Do ponto de vista pessoal também tenho recebido muitas mensagens. Pessoas que se sentem empoderadas, inspiradas pela mensagem, que saem dos concertos com vontade de mudar o mundo, e que se sentem reconhecidas nas narrativas e nas histórias e nos assuntos que eu abordo. Mas eu acho que isso é uma coisa que não interessa tanto, porque eu acho que a individualização da luta não faz grande sentido. Isto é uma coisa demasiado histórica, demasiado cultural, demasiado sistémica e estrutural, para que se destaque a minha voz ou a voz de outra pessoa como preponderante. Isto tem mesmo de ser uma coisa de fundo. Todas as pessoas que acreditam nos direitos humanos, e que as mulheres e os homens devem ter os mesmos direitos e as mesmas oportunidades, têm que fazer parte deste movimento e têm de se considerar feministas e afirmar-se como tal. Não faz grande sentido estar a tentar individualizar. Mas no que eu posso contribuir, eu faço, até porque é uma coisa que tem a ver com a minha própria condição e mesmo que eu venha dum contexto que às vezes possa ser privilegiado, nem que seja pela minha noção de solidariedade e de interseccionalidade, tenho que continuar a falar sobre o tema.

Com este reviver do álbum homónimo, num registo especial ao vivo, contas voltar a actuar com maior regularidade? Sentes que será este o ano de reafirmação dos eventos? 

Não sei. Eu gostava muito que sim, porque o sector cultural não aguenta mais um ano de escassez e porque o público e eu, enquanto ser humano e enquanto público também,  precisamos todos muito de concertos, de cultura, de sair, de vida social, porque é muito difícil manter uma saúde mental sem essas liberdades e sem esses estímulos positivos e sem essa celebração de ser humano e de se estar vivo. Da minha parte espero mesmo que sim e também acho que a minha vontade de celebrar estes 10 anos do primeiro disco tem muito a ver com isso, estes últimos dois anos foram muito cansativos, muito desmotivadores, eu pensei muitas vezes em questionar tudo, se haveria de continuar, se teria forças para manter a dedicação e a força motriz que implica ser artista em Portugal. Mas depois pensei que celebrar as coisas boas, as vitórias, as conquistas, faz parte dessa renovação de votos que precisamos de fazer, então decidi mesmo que devia celebrar estes 10 anos e foi fixe, que consegui marcar concertos nos dois sítios onde apresentei o disco e porque faz todo o sentido voltar a cantar esses temas pela sua actualidade e pela sua força. Também pela reconciliação com este ofício, com a música, com o trabalho que faço, que é tão difícil e que nos últimos dois anos foi ainda pior. Além dos concertos, vou fazer uma edição de t-shirts comemorativa com o artwork do disco, porque há 10 anos fiz cuecas e não t-shirts [risos]. Foram um sucesso, mas nunca fiz as t-shirts e o pessoal pedia na altura. As raparigas compravam as cuecas, mas os rapazes não tinham boxers [risos]. Também vai ser outra forma de marcar o momento.

Como mencionaste o impacto destes dois últimos anos na tua saúde mental — como naturalmente aconteceu com tantos de nós –, queres partilhar o que fizeste para te tornar mais resiliente neste período?

Fiz várias coisas. Aproveitar a pandemia, e o facto de haver muita oferta de cursos online para aprender coisas novas: fiz cursos de guionismo, de escrita, de muitas coisas ligadas àquilo que eu faço, mas noutras dimensões; e tentei desdobrar a minha escrita noutras coisas: continuei a escrever as crónicas e letras para outras pessoas, mas também escrevi uma peça de teatro, escrevi música para uma banda-sonora também de outra peça. Tentei o mais possível começar a diversificar: estou a tentar preparar um livro de crónicas também. Ou seja, a minha solução foi, “opá, não me deixam ir para o palco, por isso vou tentar fazer aquilo que eu mais gosto que é escrever, mas noutros tipos de linguagem, formato e desdobramento”. Fiz também um EP gravado ao vivo, Encore, porque de repente em 2020 ir para palco era uma coisa quase mágica e uma oportunidade em que estávamos tão agradecidos e tudo resignificou e revalorizou tanto, que eu decidi gravar algumas músicas ao vivo e isso foi também uma forma de “engarrafar” a experiência do palco num EP. Fiz também terapia, que é super importante. É uma pena que seja tão caro em Portugal e que seja pouco acessível. E continuar a tentar fazer exercício físico, ver filmes bons, a ler livros bons, a inspirar-me com música boa. E tentar ao máximo possível não perder a esperança. Tendo uma criança em casa é mais fácil, porque as crianças são sempre uma fonte de alegria. Mas, ainda assim, houve muitos momentos complicados e sobretudo pensar na minha equipa e na responsabilidade que tenho em providenciar oportunidades de trabalho para as pessoas que me acompanham há tantos anos e pensar que passamos de dezenas de concertos por ano para meia-dúzia é muito frustrante, ainda para mais porque tinha lançado um álbum há pouco tempo. Um álbum que eu acho que é o meu melhor álbum de sempre e que me custou tanto a terminar — tinha um bebé de colo muito pequenino. Era uma espécie de regresso ao mundo e ficou pendurado porque saiu mês e pouco antes da pandemia começar e nunca teve a vida que deveria ter tido no palco. Portanto, não foi tudo rosas, obviamente, e portanto tentei ir por esses caminhos todos, para me manter à tona.

Há planos de novo álbum ou neste momento com o material do último álbum, Madrepérola, ainda há vários palcos para o explorar ao vivo? 

Sim. Aliás, como te disse, foram meia dúzia de concertos em 2020 e meia dúzia em 2021, e há muita estrada para andar, mas sobretudo porque houve muitas coisas adiadas, nomeadamente festivais que estão agora marcados para este ano, que tinham sido adiados para 2021 e foram de novo adiados para 2022. Nem que seja por esses reagendamentos, o Madrepérola vai voltar à estrada. Mas até porque eu ainda não tenho grande vontade de o deixar para trás e fazer música nova, ainda não me reconciliei totalmente com isso e ao mesmo tempo sinto que é meio contraditório, porque já passou muito, muito tempo… já vivemos muitas coisas e eu estou diferente e estamos todos diferentes, então necessariamente que se calhar há algum desencontro entre o disco e o palco, mas que ao mesmo tempo acho que só concretizando esses concertos é que vou poder reconciliar-me com isso e de facto perceber que [se calhar] não há nenhum desencontro e que as coisas todas no fim hão-de fazer sentido [risos].

Há outros projectos que estejas a planear para um futuro próximo?

Sim. É o livro de crónicas e mais um disco/livro de Mão Verde, do projecto de música para crianças, que vai sair em Março. A primeira edição foi em 2016 e desta vez será em banda, porque não sou só eu e o Pedro Geraldes, é também a Francisca Cortesão e o António Serginho. Fizemos um segundo disco para crianças que é também um livro, que é ecologista e que também tem uma dimensão pedagógica, com imensos conteúdos informativos e vamos lançá-lo em Março e depois começar a apresentá-lo. 


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