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Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 15/02/2023

Um ímpar criador e um inquieto explorador do som.

Cândido Lima: “A minha cabeça era demasiado vulcânica”

Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 15/02/2023

Cândido Lima é o decano na aventureira programação de 2023 do Festival Rescaldo, que hoje mesmo arranca em Lisboa e que se prolonga até ao próximo domingo, em diferentes espaços da capital. Ao Teatro do Bairro Alto, o pianista e compositor levará quatro obras – “Chantiers”, “Optic Music – Quadros Cinéticos”, “Músicas de Villaiana – Coros Oceânicos” e “ETRAS”, peças em que combina o piano, electrónica e a projecção de imagens.

Em conversa com o Rimas e Batidas tida numa das salas de ensaio da Casa da Música, o veterano compositor revelou muito do seu pensamento, num generoso desenrolar de memórias que teve como pretexto inicial a sua explicação do programa que levará ao Festival Rescaldo. Na mesma conversa, Lima aborda ainda a sua obra Oceanos, há uns anos lançado pela Grama, etiqueta ligada à loja de discos portuense Matéria Prima. No texto aqui publicado sobre essa reedição, já se levantam prováveis pistas sobre o que se poderá experienciar na apresentação de Cândido Lima no teatro do Bairro Alto: “Criada num contexto académico em estúdios franceses e com recurso a electrónica (incluindo os famosos VCS – 3 da EMS), este álbum foi depois misturado nos estúdios da RDP Porto e muito provavelmente estreado pela Antena 2. A música de carácter electro-acústico inspira-se nos estudos da NASA dos ‘oceanos’ de Neptuno e portanto explora a possibilidade de mundos estranhos à nossa própria realidade, com pulsares de carácter profundamente abstracto e manipulação através de efeitos dos sons registados em fita. Música opaca para um mundo desconhecido, mas, ao mesmo tempo, com um natural poder evocativo, tal o ‘exotismo’ dos sons eleitos por Cândido Lima para a construção das suas peças. Trata-se de uma obra do arranque dos anos 70/80, mas bem poderia servir como banda sonora alternativa à criação electrónica do casal Barron para Forbidden Planet, em meados dos anos 50″.

No programa do Rescaldo, propõe-se também um breve retrato do compositor: “Nascido em 1939 em Viana do Castelo, Cândido Lima é um dos grandes compositores de uma certa vanguarda portuguesa que viveu (e vive ainda), maioritariamente, na obscuridade. Tendo estudado com Xenakis e privado com gente como Boulez ou Ligeti na sua passagem pela Sorbonne, é um pioneiro nacional de formas técnicas e tecnológicas da composição contemporânea, da electroacústica à espacialização do som, e autor de obras marcantes como Oceanos, recentemente revisitada no âmbito do projeto Unearthing the Music, que lhe proporcionou apresentações em festivais como o OUT.FEST no Barreiro ou o Skanu Mezs em Riga, Letónia”.

No contexto de um festival que procura medir o pulso ao nosso presente, assumindo o seu lugar num mais amplo devir histórico e antecipando caminhos futuros, a apresentação – rara e por isso mesmo preciosa – de Cândido Lima tem um carácter absolutamente incontornável. E na conversa aqui reproduzida encontram-se pistas preciosas para entender o pensamento de um ímpar criador que se reafirma como inquieto explorador dos mais intrigantes mistérios da música.



Gostava que me falasse um pouco sobre o material que vai apresentar neste espectáculo, no Teatro do Bairro Alto, em Lisboa, e também o pensamento por detrás das peças que vai apresentar nessa ocasião.

A resposta não deveria ser dada por mim, mas pelos organizadores.

Foram eles que propuseram?

Este tipo de obras fez parte de um concerto de há uns anos, organizado pelo Paulo Vinhas, um grande animador cultural daqui, do Porto. Começou por aí. Fiz um concerto depois, no Barreiro.

No OUT.FEST, não foi?

Não. Foi no Rivoli, no UNDERSTAGE. Esse concerto levou-me ao OUT.FEST, no Barreiro, e este levou-me levou a Riga, na Letónia, dentro da mesma perspectiva, da obra Oceanos que foi o fio condutor. Assinalavam-se os 30 anos da sua composição. O Paulo Vinhas apaixonou-se pela obra, tanto que, depois, fez a edição em LP. Portanto, não sou eu o responsável pelos conteúdos [risos]. Sou o responsável pela composição das obras, mas o interesse por essas obras, nestes contextos, partiu do Paulo Vinhas. No que me diz respeito, juntei essas obras com denominadores comuns — a electrónica, a informática e os audiovisuais. Nos outros concertos não houve audiovisuais. Aqui há, porque há versões com imagens. Não imagens no sentido da tecnologia moderna, de software de imagem, mas simplesmente imagens numa perspectiva convencional, de paisagens. Uma é relativa a Viana do Castelo e outra aos estaleiros da Casa da Música e do Metro. No fundo, já estou a descrever um pouco as obras e vou elencá-las de uma maneira lógica, tal como elas vão ser apresentadas no TBA. “Optic Music – Quadros Cinéticos” é uma obra que eu compus para uma exposição do António Quadros Ferreira, no Museu Teixeira Lopes, Vila Nova de Gaia. Essa obra tem esse título, “Optic Music”, porque assenta na ideia das ilusões ópticas. Os paradoxos da visão têm a sua correspondente na música nos paradoxos auditivos. Eu compus uma obra para piano, que reproduzi, de forma desfasada, em estúdio, como se estivesse a escrever uma obra electrónica. Mas não é electrónica. É um piano multiplicado por três. São três pianos que se ouvem, mas desconectados uns dos outros, a nível mesmo microscópico, quase. A compositora Ângela Lopes colaborou comigo, na Academia de Vilar de Paraíso, em Gaia, e havia um termo que dizíamos muitas vezes relativamente ao ritmo e ao aparecimento do segundo e terceiro pianos — “mais um nanonzinho”. Estávamos já no tempo não da nanotecnologia, mas da nanoduração. Isso foi um trabalho fascinante, a composição dessa obra para a exposição. A obra tem 32/33 minutos, precisamente para funcionar em looping na exposição. Em concerto era apresentada em apenas 10 minutos, mas é uma obra que podia ser feita por três ou mais pianistas. Ainda não aconteceu e não sei se algum dia acontecerá. O som é acompanhado por imagens. Habitualmente, toda a imagem é feita com quadros do António Quadros Ferreira. São quadros geométricos, abstractos, mas baseados em figuras que jogam com esse paradoxo, essas contradições da visão. Aqui há a mistura de outros colaboradores e as imagens do António Quadros Ferreira inserem-se intrinsecamente e estruturalmente sobretudo na segunda parte da música. Ele fez-me esse vídeo para um concerto em Braga e eu achei interessante incluí-lo aqui. Torna a “visualização” do som no ecrã mais diversificada e mais atraente, para quem possa não ter um interesse muito directo em ver, durante 10 minutos, quadros idênticos. São quadros sempre diferentes e sempre iguais, tem esse aspecto interessante. Há algo que não devo esquecer antes de prosseguir com a descrição do programa: em todos estes programas eu actuei como pianista, coisa que nunca esteve prevista, digamos assim. Mas eu fui convidado como pianista e como compositor, então fiz as minhas intervenções criando novos planos e perspectivas daquilo que é pré-existente, do que foi feito em estúdio, à mesa e também ao piano e outros instrumentos — porque há uma mistura grande de fontes sonoras nas várias obras. No piano tenho de me reconstituir, tenho de me recriar, embora sempre submerso pelas grandes densidades das obras. Tenho de encontrar processos neste tipo de diálogo, de tornar o discurso apelativo e lógico. Não há problema, porque eu conheço bem as obras [risos].

Pergunto-lhe: o que é que o Cândido pianista pensa do Cândido compositor quando está a executar as suas próprias peças?

É uma boa pergunta que eu nunca me fiz. O que é que o pianista pensa? Que lhe dá muito trabalho [risos]. Está tudo feito, não há mais nada a acrescentar. Mas, estando sentado ao piano, tenho de lhe acrescentar alguma coisa. Não só acrescento novos planos e novos sons. Estando nos domínios da música electrónica e da informática, o piano é o “menino pobre” de um espaço fantástico que é a música feita em computador. Aí tenho de fazer um esforço titânico para que esta oposição, de natureza musical e acústica, possa confluir, possa dialogar e possa sintonizar-se, digamos assim, em termos psicológicos. Por outro lado, há o componente apelativo do público a ouvir a música. Tenho de ir habituando os seus ouvidos àquela música e a presença de um pianista cria essa ponte. Nesse sentido, penso que foi interessante ter começado a fazer essas apresentações com piano, porque partiu de outra pessoa e não de mim, o que é curioso. Em todas estas quatro peças eu intervenho no piano. Estava dizer há instantes que conheço de tal maneira as obras que hesito… Eu tenho cronometragens para as intervenções aqui e acolá, mas nunca as sigo completamente. Neste momento estou a hesitar, se devo ter algum papel à minha frente e se devo confiar na minha memória, no conhecimento das obras, decidindo tudo a cada instante. Do ponto-de-vista do espectáculo, é interessante. Do ponto-de-vista musical, pode ser menos seguro, porque não tenho as coisas tão programadas. Por outro lado, eu fui organista e sempre tive uma queda muito especial para a improvisação, mesmo como professor. Gostava de reconstruir a música dos outros e de improvisar a minha própria música. Fiz isso na televisão, na rádio, em concertos, etc. Aqui ainda estou na dúvida, se me sinto à vontade para não ter nada [a auxiliar] e pedir ajuda aos deuses para que as coisas sigam bem. Eu conheço bem as obras, mas uma coisa é conhecê-las bem, outra coisa são as modificações, as mudanças de velocidade, de planos, da paisagem. É isso que me dá o à vontade para intervir, integrar-me e interagir de uma forma adequada. Por outro lado, ter papeis em cima do piano, num espectáculo que é muito especial, não sei o que é que me parece. Estou muito hesitante em relação a isso [risos]. Estou muito inclinado a arriscar. Não tenho na memória todos os instantes, mas posso controlar o processo em função do que vai acontecendo. A integração do piano é instantânea, completamente livre. Sintetizando a resposta: o compositor põe problemas ao pianista, de facto [risos].

Esta integração num cartaz com música tão diferente daquela que vai apresentar e feita por gentes de gerações tão diferentes, no Festival Rescaldo, é algo que o entusiasma?

É incrível. Eu digo muitas vezes que tive duas ou mais vidas. Fui professor em escolas e academias de música, no Conservatório, na Escola Superior de Música… Eu vivia dentro de um mundo clássico. Uma bolha clássica, chamemos-lhe assim. Eu — enquanto criador e compositor, Cândido Lima, com a minha personalidade, os meus trajectos e as minhas buscas interiores — confrontei-me sempre com essa realidade, um mundo completamente antagónico, como pode imaginar. Como é que eu sobrevivi? Através de meios como esse que está a referir, de homens da rádio, da televisão, da imprensa, que não tinham nada a ver com música. Ainda há dias disse isso, já não sei a quem, mas digo-o muitas vezes: tive colaboradores na rádio, ali da Rua Cândido dos Reis, absolutamente fenomenais, do ponto-de-vista da generosidade, porque perdiam horas de convívio com os seus colegas no bar para estarem comigo num estúdio a fazer montagens e misturas. Foi fantástico. Eu tinha um bom diálogo com eles e dizia-lhes: “isto não tem grande importância. Esta música é um bocado à sorte. Não façam caso.” Eles riam-se. Lembro-me de um chefe de serviços, Licinio Oliveira, que já faleceu há uns bons anos. Um dia, apareceu do lado de lá do vidro do estúdio e viu seixos em cima do piano. Já sabia que eu ia usar seixos no piano. “Oh professor!” O piano não tinha muito uso e eu aproveitei para o afinar [risos]. Daí resultou uma obra que tem tido um sucesso imenso internacionalmente, os “Autómatos da Areia”, que está num CD publicado pela Portugalsom há muitos anos. Desapareceu completamente. Tem os “Oceanos”, “Lendas de Neptuno” e “Autómatos da Areia”. Esses seixos fui buscá-los às praias da Foz e serviram para tirar sons incríveis, um dos quais, ao longo dos 11 minutos da obra, dá uma ilusão completamente perfeita de música electrónica. Quem não souber, não sabe que aquilo é o som de um seixo em movimento longitudinal sobre a corda do piano. É um som lindíssimo com pequenas variantes de frequência. Ninguém imagina que aquilo é feito num piano com seixos. Eu disse-lhe, “tenha calma que eu não estrago o piano.” Como o piano tinha muito atrito por falta de uso, foi fantástico, porque a ferrugem ajudava a criar sons completamente inéditos e fora da acústica convencional dos sons com os seus harmónicos. Era um som meio ruído, mas fantástico! Utilizei os seixos no sentido longitudinal e lateral.

Guardou esses seixos?

Guardei durante uns anos. É também uma boa pergunta, porque não sei onde é que eles estão. Diria que nunca os deitei fora. Mesmo que deitasse, ia buscar outros [risos]. Mas sei que, durante uns anos, tinha-os numa gaveta junto de umas coisas. Talvez ainda estejam por lá. Mas isso fez-me sentir num outro mundo, da composição contemporânea, inserido na modernidade e nas novas conquistas do pensamento humano. Senti-me fora da escola. Gradualmente, a escola foi-se mudando e já existem escolas superiores dotadas de espaços para o pensamento moderno. Mas há muitas convenções na música contemporânea. Houve fundamentalismos que se fecharam em si mesmos, nomeadamente a escola de Viena, com o serialismo. Isso afastava todos os outros pensamentos. Isto levava-nos longe em termos de história da música contemporânea [risos].

Mas está, de certa forma, a entrar na pergunta que eu tenho para lhe colocar a seguir. Eu não consigo dissociar essa sua apresentação, neste evento em concreto, da ideia de uma aula. Para lá de tudo o resto, o Cândido Lima foi — e é — um pedagogo com responsabilidades na reforma do ensino no nosso país. Como é que acha que se encontra actualmente o ensino de música no nosso país, sobretudo a este nível mais erudito?

Não conheço em profundidade. Estou em contacto com gente ligada a isso. Mudou muito, evidentemente. Só que se mantêm os paradigmas antigos com novos paradigmas que se vão confrontando. Isso não só nas aulas, que vou seguindo directa e indirectamente, mas também nas salas. Não se vê a classe musical a assistir a obras contemporâneas, por exemplo, aqui na Sala Suggia (Casa da Música), onde se fazem coisas extraordinárias. Há aqui mistérios. Mistérios que não são mistérios, são realidades. Há uma mudança radical, mas que vive a meias com os tradicionalismos, reaccionarismos, com a incapacidade de mudar. Mesmo os programas de conservatórios e escolas superiores baseiam-se na reconstituição do passado. Mas há uma mudança, sobretudo a partir do 25 de Abril. O que se passa é que, digamos, há uma boa margem de liberdade para cada um se exprimir e há uma confrontação, visível e invisível, entre mundos, o tradicional e o moderno. Eu sou pela síntese, na realidade. Como ouvinte e como compositor. Tento em muitas obras, de uma maneira geral, a fusão de pensamentos, quer seja o pensamento erudito, quer seja o tradicional e popular das culturas, seja da portuguesa ou de outros países e continentes. Não vem a propósito, mas já agora: no próximo mês, realiza-se um concerto na Gulbenkian de evocação a Xenakis, de quem fui “discípulo”.

Bem sei.

Vai ser tocada uma obra minha pela Ana Telles. Tem na origem a fusão da música electrónica com a música instrumental, encomendada pelo Miguel Azguime para o Porto 2001. Pelo entusiasmo que a Ana Telles sempre demonstrou, fiz uma versão para piano. Nessa versão original eu utilizei voz de uma cantadeira da Beira Baixa, Catarina Chitas.

De Idanha-a-Nova?

Sim. Esse é o concelho. E a freguesia? Não me lembro.

Penha Garcia, muito bonita…

Isso… Mas utilizei a voz dela directamente. Toda a música… Eu ouço a música e estou a ouvir a voz da Catarina Chitas. Deixei-me impregnar completamente por uma cultura popular ancestral. Isto para dizer que, de facto, não tenho fronteiras. Até pela compositora Ângela Lopes, que é directora numa academia, tenho conhecimento que isto que eu acabo de descrever antes é prática, também, nessa mesma academia. E quem diz essa, diz todas as academias. Há sempre um mundo desconhecido para a maior parte das escolas, embora haja, nessa maior parte das escolas, docentes, professores e alunos que tentam remar contra a maré e apresentar novas perspectivas da música. Há um convívio/diálogo/confrontação/combate entre a modernidade e a tradição. Isso é um facto. Mas isso não acontecia tanto antes do 25 de Abril, porque não havia quase nada. Éramos “heróis” — eu, o Jorge Peixinho, a Constança (Capdeville), por aí fora. Agora não tem nada a ver. Há um lado de renovação que tem de se registar e aplaudir, independentemente de continuarem os mesmos modelos de oposição.

Esses paradigmas de que fala ajudam a justificar — e é uma percepção, digamos, empírica; porque eu não tenho estudos que comprovem o que deriva dessa minha sensação de mero observador – a dificuldade no acesso das minorias a esse sistema de ensino mais elevado? Pergunto isto porque, por exemplo, são raros os rostos negros que eu vejo nas orquestras.

É verdade.

O que é que acha que justifica isso?

Penso muitas vezes nisso e não sei qual a justificação. Mas conto-lhe um episódio: faz hoje oito dias que fiz uma apresentação no Centro Mário Cláudio, em Paredes de Coura, sobre a minha viagem para África, quando estive na tropa, e a viagem do meu piano. Eu deixei pedido ao meu pai, “se eu chegar lá e não tiver piano, mando um telegrama a dizer ‘mande piano.'” Eu tinha um piano vertical. Quando cheguei lá, perguntei se havia piano e lembro-me que havia oficiais que, quando fiz a pergunta, não me responderam e até fecharam a cara com os jornais que estavam a ler. Isto é, acharam ridículo eu perguntar se havia um piano em Bolama. Ao longo dos anos, pensei, “como é que eu podia querer que houvesse ali um piano? É outra cultura. Se houver piano, é porque já houve mistura de culturas.” Poderá ser isso. Uma vez ou outra vi um oboísta na orquestra da Casa da Música. Depois desapareceu. Podia estar a substituir alguém. Não se vê, de facto. É todo um mundo branco. Penso nisso muitas vezes. Pode ser algo parecido com o que eu experienciei em África: como é que eu quero que haja um piano em Bolama? Na minha inocência, eu admiti que podia haver. Nunca se sabe. Que eu saiba, havia dois pianos na Guiné — um de um professor em Bissau, outro na Associação Comercial de Bissau, onde eu toquei numa sessão das autoridades com um amigo meu, de Braga, violinista, que também lá estava na mesma altura. Portanto, o estranho não é haver “só” dois pianos; estranho era haver esses dois pianos! [Risos]

Porque é que nunca se estabeleceu um estúdio estatal de investigação na área da música electrónica, à semelhança do que havia em França, na Alemanha, na Holanda ou nos Estados Unidos? Porque é que nunca houve uma instituição dessas, formal, criada em Portugal?

Provavelmente porque ninguém o propôs. Mesmo se o propusessem, achavam uma ideia utópica em Portugal. Não havia essa sensibilidade. Mas havia uma disseminação enorme. Lembro-me de quando estava a fazer as minhas primeiras obras de electrónica, em Paris, eu ouvia os jovens a dizer, “tenho o meu estúdio em casa.” Nem nas escolas havia. Era impensável na altura do 25 de Abril. E mesmo depois, as portas económicas foram-se abrindo só gradualmente. Comecei a ver em casa de alguns jovens, nomeadamente na música não clássica. Aí houve sempre gente capaz de criar os seus próprios estúdios, os seus próprios meios de expressão, muito mais do que nas escolas clássicas. Mas era muito difícil. Em ’82 veio cá o UPIC, aquele sistema informático criado pelo Xenakis e foi apresentado no ACARTE, da Gulbenkian. Lá está, essa era uma instituição que teria a capacidade para… Mas o sistema acabou por não ficar cá, podem não ter ficado interessados. Chegou a vir cá para se ver da possibilidade de se instalar. Mas não era o Estado.

Era uma fundação.

Era um outro Estado. Um Estado dentro de um Estado. Agora há estúdios nas universidades. Sempre houve essa necessidade, mas, que eu saiba, nunca ninguém se lembrou de pedir isso ao Ministério da Cultura, da Ciência ou da Educação, de se criar um estúdio autónomo para servir os cidadãos. Em compensação, há a disseminação desses meios através da pesquisa individual, dos pequenos orçamentos. Não estou a ver um governo qualquer — fosse PS, PCP ou CDS — a fazer fosse o que fosse, sensibilizados para criar um estúdio…

Como o da Groupe de Recherches Musicales, em França?

Mas esses não sei se são do Estado.

Era, pelo menos, financiado pelo Estado.

Sim, estava ligado. Foi criado pelo Pierre Schaeffer. Depois, o IRCAM também era financiado pelo Estado, como o CEMAMu do Xenakis. Isso é verdade. Há grupos aí que são financiados pelo Estado. As universidades têm bons estúdios, as privadas. Estou a ver a Católica, as universidades de Aveiro e Évora. Vejo-as com estúdios acima do razoável e isso é do Estado.

Gostava de voltar ao programa e às obras que tem preparadas para o Rescaldo.

Se quiser.

Claro que sim.

A segunda obra era “ETRAS”, porque é um jogo de letras sobre o Sond’Ar-te (Electric Ensemble). Foi encomendada pelo Miguel Azguime, com a colaboração da Câmara de Matosinhos, e tem como subtítulo “Cantos de sonhi ma”. É como se fosse um título quase romanceado, de uma telenovela. No fundo, é uma decomposição do nome Matosinhos. É o mais prosaico que se pode ser [risos]. Retirei-lhe o lado prosaico e dei-lhe uma poética especial. Só vou fazer a parte electrónica dessa peça, porque há uma versão para electrónica e cinco instrumentos. No público, tem um efeito fora do concerto convencional. O que é particular e curioso nessa obra, que tem a ver com a viagem e com o imaginário dos viajantes por mar da região de Matosinhos, é que utilizei um som de avião, gravado já quando eu estava na cabine do avião, sentado… Já era minha ideia fazer isso, mas ouvi o motor das turbinas do avião, a preparar-se para partir para Paris. Gravei toda a obra com o som do avião como fundo (num mini disc já preparado para essa eventualidade).

Incrível…

O resto foi trabalhar à volta do som do avião. Depois há a transformação, com base na flauta, na turbina e no piano. O resto é electrónica. A particularidade desta peça é o som do avião ser permanente. É uma espécie de pedal. Tem pequenas variantes, mas é sempre um grande motor de avião. O piano integra-se aí através de sons que vêm dos instrumentos. E são criados sons que combatem… Há, aliás, vários combates que tenho como pianista destas obras [risos]. É o essencial que tenho a dizer desta obra, “ETRAS” (SondARTE ao contrário). Também achei interessante o termo, que me fazia lembrar estudos de grego e outro tipo de sonoridades. Tenho um bocado a mania — ou o defeito — de criar sonoridades. A obra tem a duração de 16 minutos, eu fiz um corte para 12 minutos, para enquadrar na duração proposta pela organização — são 45 minutos, mais minuto, menos minuto.

A terceira é “Chantiers”. A convite do Jaime Reis, para compor uma obra electrónica sobre “cultura e sustentabilidade”, há uma meia dúzia de anos. Tive a ideia de, já que na minha frente surgiam erigiam dois ícones aqui do Porto… Via as obras do Metro, que moro mesmo ao lado, e por cima do Metro vi a Casa da Musica a levantar-se. Cheguei a propor uma obra nessa altura à Casa da Música. Era uma espécie de espectáculo audiovisual baseado nas filmagens que eu fiz. Fiz filmagens quer dos estaleiros do Metro e da Casa da Música. Aqui o que é que eu fiz? Dois amigos, o Rui Mesquita e o Pedro Maia, fizeram a montagem com uma síntese das filmagens para nove minutos. Fiz filmagens dos trabalhos de manhã, de tarde e à noite. Tenho duas horas ou três de filmagens, mas aqui serão só quase nove minutos. Para a parte electrónica, peguei em várias obras feitas aqui — não por instituições daqui, mas instituições externas, que fizeram aqui concertos. Peguei em excertos de obras e transformei-os electronicamente. Há uma mistura, uma simbiose, entre a memória visual, social e estética com a electrónica que eu criei, baseado em sons feitos aqui, na Casa da Música, na Sala 2 e na Sala Suggia. Fundi. Sou o homem das fusões [risos]. Houve uma época em que tive contacto com os jovens de fora, do FAOJ. Fiz um curso com eles, no Fundo de Apoio aos Organismos Juvenis. Eles levavam lá muita música de fusão e falavam muito das músicas pop que estavam na moda, na altura. Perguntavam-me o que é que eu achava e tal. Eu tive de ter muito diálogo com gente de fora dos conservatórios, inclusive com estes jovens, com a televisão, mundos completamente diferentes que me fizeram sobreviver. A minha cabeça era demasiado vulcânica — pacífica, mas vulcânica — e no conservatório não estava a dar para isso. Fiz, mas entrei, muitas vezes, não diria conflito… Lembro-me de, na televisão, haver um programa sobre mim, em ’83. Chamava-se Ora Bem. Gravaram alguns depoimentos e um professor do conservatório teve uma declaração muito curiosa e muito interessante: “o Cândido Lima é um adiantado mental.” [Risos]

Estava aqui a falar da ideia de pegar em excertos das tais obras que foram aqui apresentadas e tratá-los, depois, electronicamente, para compor uma nova obra. Essa descrição desse método de trabalho não é muito distante daquilo que alguns desses jovens que mencionava fazem, quando samplam registos para fazer hip hop. Eu acredito que esta ideia da apropriação e da colagem é uma das ideias estruturantes da cultura, não apenas musical, dos últimos 30 ou 40 anos.

Claro que sim.

Está a par desta cultura do hip hop, que é tão viva aqui no Porto?

Do hip hop, não, senão como ouvinte. Mas estou a par dos vários movimentos artísticos que têm surgido ao longo dos anos. Eu sei disso e tenho os meus dados bibliográficos para compreender isso perfeitamente. De forma natural, até porque convivi muito com esse tipo de vivências durante os meus três anos em Paris, esses movimentos sempre me interessaram. Se me perguntar o que é que eu vejo na televisão, estou sempre nos canais que me dão — também, mas não só — esse tipo de mundos. Eu conheço apenas como espectador e curioso. Mas sigo atentamente os métodos interdisciplinares. Dou muita importância à ideia de interdisciplinaridade. Há perfurações e contaminações, digamos assim, das artes umas nas outras. De maneira que estou a par disso, não de uma forma profissional, permanente e quotidiana, mas estou atento e sou sensível a isso tudo (expressões diversas, de rua ou não), desde sempre.

É uma maravilha que os arquivos da RTP estejam acessíveis na Internet e nós podemos ver, por exemplo, o seu Fronteiras da Música. Num dos programas que estive a ver, de 1982, havia um episódio com o título “Visionário”. Nesse episódio dizia uma frase que eu acho extraordinária e sobre a qual gostava de o ouvir a elaborar um pouco mais. Essa frase é: “nós, os artistas, devemos muito aos cientistas.”

É verdade [risos].

40 anos depois, ainda acha que tem essa divida para com a ciência?

Depende. Se o Xenakis ouvisse isso, ficava feliz por eu ter dito isso [risos]. É evidente que tudo o que se fez, em termos de meios de expressão físicos, tiveram a ver com a ciência. Sejam os matemáticos, os geómetras, os biólogos, etc. Sem dúvida que sim. Um músico perde isso de vista, mas a verdade é que, se formos a ver, por exemplo a construção de um piano, de um violino ou de uma flauta… Você podia-me contradizer, dizendo “mas os africanos têm o sanza ou o quissanje e eles não precisaram de cientistas para nada.” Está bem. Podem fazer-se coisas fantásticas, também, mas nunca com a elaboração racional do mundo ocidental, por exemplo. Se um compositor ocidental pegar numa sanza (quissanje na Guiné) ou num tambor, pode fazer coisas de outro mundo. O Xenakis fez isso com os tambores, com a percussão. Mas, sob muitos ângulos, mantenho essa ideia. Não sabia que a tinha dito. Não é muito — é e não é… — do meu teor de pensamento, mas como convivi muito com um músico cientista, chamemos-lhe assim…

Ele era arquitecto?

Era engenheiro. Todas as pessoas pensam que ele era arquitecto, mas era engenheiro profissional. A arquitectura veio depois. Ele nem sequer tem o curso, mas fez coisas tão importantes na arquitectura. Portanto, um músico está completamente envolto pelo mundo científico. Depois há o mundo filosófico e o mundo estético, que não têm nada a ver com a ciência. Por isso é que o Xenakis se viu grego para se libertar — e nunca se libertou —, em termos de ligação com público, dessa etiqueta de matemático. Ele era genial como músico e usava as matemáticas como técnica, simplesmente. Só que o músico assustou-se sempre com as matemáticas. A um músico, nunca lhe passa pela cabeça que, se pode exercer essa função, está muito dependente do que fizeram os cientistas. Até mesmo pelo próprio contacto com os médicos, com a saúde e com a medicina tem a ver com a ciência, logicamente. Mas, o mais prosaico e o mais simples de dizer é: se um cientista não tivesse feito estudos sobre a acústica e não tivesse trazido respostas a problemas que os séculos não conseguiram resolver, os músicos não faziam o que hoje estão a fazer.

Gostava de lhe perguntar por algo mais pessoal: o que é que falava com Xenakis, quando não falavam sobre música? Quais eram os assuntos que vos levavam a conversar?

Um dos assuntos foi Timor. Ele foi muito crítico em relação ao que um grupo de portugueses fizeram como utópico, viajando, como protesto, aos mares de Timor aquando da invasão da ilha pela Indonésia. Falávamos de coisas perfeitamente simples do quotidiano, das minhas obras, daquilo que eu fazia ou que devia fazer. Eram coisas simples. Fumávamos um cigarro… Há uma musicóloga que fez uma biografia e estivemos em diálogo durante um ano inteiro, a pedir-me informações pessoais da minha vivência com ele. A dada altura, perguntou-me o que é que ele fumava, porque viu numa revista umas cigarrilhos (pequenos cigarros de cor castanha), mas não viu mais nada. Eu disse-lhe que não. Havia uns cigarros que ele fumava, muito discretamente, que eram Dunhill. Oferecia-me e conversávamos. As conversas não eram… Podiam ser sobre outros compositores, por exemplo. Lembro-me de termos ido ver uma obra de Stockhausen, Sirius, na Sainte Chapelle. Perguntei-lhe, “o que é que achava?” E ele diz, “os sirios não devem ser grandes músicos” [risos]. Para mim, o mais incrível é a Sainte Chapelle. Impressionou-me muito o início da obra. Depois esqueci-me, de alguma maneira. Mas vi coisas de Stockhausen fantásticas, em Darmstadt, Lisboa, etc. Eram coisas desse género. “O que é que acha disto?” Nada de especial. Coisas muito simples do dia-a-dia. Lembro-me que, uma vez, estava a acontecer um festival com obras dele — e minhas, também — e ao jantar falou-se de cinema. Ele queria lembrar-se de um actor qualquer e não se lembrava. “É o Gary Cooper?” E ele, “é esse mesmo!” Eram coisas que saiam. Mas achei muito interessante eu ter adivinhado o pensamento dele. Peguntava-me sobre Portugal e arremedava-nos, soletrando e acentuando a pronúncia, com o termo ”portuguêsch”. Fui gravando coisas de conversas simples.

Já falámos sobre como — paradoxalmente, diria eu — é mais fácil aceder à obra que criou para a televisão do que muitas das suas gravações. A Grama reeditou o Oceanos, mas seria fantástico se outras peças que lançou — nomeadamente na Numérica ou na Portugalsom, que já não são fáceis de encontrar — estivesse disponíveis no presente. Porque é que não estão?

É verdade. Não sei. Não mexo uma palha para isso [risos].

Mas possui os masters dessas obras?

Sim. Há uma outra versão da “Músicas De Villaiana”, que tem electrónica, audiovisuais. No CD tem uma versão electrónica de uma obra que escrevi para os 750 anos do foral de Viana do Castelo… “Cenas da Montanha”? Não sei qual é o título.

“Músicas do Mar e da Montanha”?

Exactamente. É uma versão electrónica daí. Há outro disco em que há coisas muito importantes, para mim, pelo menos, que foram gravações de concertos, editado pelo MPMP – Movimento Patrimonial pela Música Portuguesa. O responsável foi o Edward Ayres de Abreu, o actual director do Museu da Música.

Então continuam disponíveis?

Acho que está disponível na Internet, porque foi editado há uns quatro ou cinco anos. É a Oceânides, que tem cinco obras instrumentais. A terceira é outra versão da “Músicas De Villaiana”. É uma versão mais curta, que apresentarei no próximo dia 17. Não sei se apresentarei essa ou outra. Já estou em diálogo com os serviços técnicos. Tem a presença da Ode Marítima, de Fernando Pessoa, dita por um actor de teatro declamado e por um rapper. Isso tem uma força incrível com orquestra. A orquestra é um mar que envolve aquilo tudo. Quase não há música, é mais teatro. É quase um painel sonoro de uma grande densidade. A minha grande dúvida é se passaria também essa faixa, chamemos-lhe assim, ou apenas a outra. Já fiz a pergunta. Eles vão dividir aquilo, porque há dois concertos, e disseram que o palco dá para cento e tal pessoas. Portanto, dividida a sala, se calhar fica pequena. Mas isso já me dá uma ideia do que será conveniente. E será conveniente a versão com imagem, em que eu improviso. É aí que eu apareço num combate titânico com o mar da minha terra, o Oceano Atlântico, e com as tempestades minhotas.


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