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Publicado a: 02/03/2018

Grama: a memória da música experimental portuguesa de regresso ao vinil

Publicado a: 02/03/2018

[TEXTO] Rui Miguel Abreu [FOTO] Direitos Reservados

A etiqueta Grama, ligada à loja e distribuidora portuense Matéria Prima, inaugurou recentemente o seu catálogo e conta já com quatro edições: Oceanos, de Cândido de Lima, Canto Ecuménico, de Filipe Pires, Música Intuitiva, de Armando Santiago, e ainda Um Argentino no Deserto, de René Bertholo.

Em declarações à revista Time Out, Hugo Oliveira, da Matéria Prima, explicou que existe uma intenção didáctica e de preservação da memória da música experimental portuguesa na base das edições da Grama: “A motivação foi percebemos que algumas obras musicais relevantes para a compreensão da música experimental contemporânea portuguesa ou ficaram indisponíveis ou não tiveram o merecido destaque, ou até nunca tinha sido editadas. Havia portanto essa urgência em garantir a sua visibilidade. Em 2015, fomos desafiados pelo Paulo Cunha e Silva a integrar a candidatura ao programa “Tripartido da Cidade do Porto” co-financiado pela DGArtes, o que tornou possível materializar o desejo de voltar a disponibilizar algumas dessas obras em edições revistas e actualizadas e que inequivocamente merecem chegar a um público mais vasto”.

Com um rigor visual muito vincado, as edições em vinil da Grama ocupam o mesmo espaço de projecção de matéria de arquivo no presente que séries como a Recollection GRM das Editions Mego também vieram preencher, aliando uma pertinente visão editorial a uma inteligente actualização gráfica dos diferentes lançamentos, reforçando assim a ideia de pertença a um mesmo pensamento, mesmo tendo as obras diferentes origens temporais e estéticas.

“Sendo um formato com crescente procura”, explica Hugo Oliveira referindo-se ao facto de todas as edições da Grama serem disponibilizadas em vinil, “também é o que nos permite edições mais cuidadas e sobretudo explorar o trabalho editorial como linguagem, um território onde a comunicação é exercida através de códigos específicos. Nas reedições temos tido o cuidado de usar elementos gráficos das edições originais e para algumas capas tivemos a colaboração de artistas visuais que acederam ao nosso convite para criar novos elementos ilustrativos (Pascal Ferreira para a GRAMA 001 e Pedro Tudela para a GRAMA 003). Tendo noção que a capa de um disco é o convite inicial para o que se vai escutar, quisemos manter a composição tão simples quanto possível, destacando o nome do compositor e o título e mantendo a mesma estrutura e linha gráfica em todas as edições. A partir de um certo momento é também importante reconhecer uma edição como sendo da Grama a partir do elemento visual. O design é da responsabilidade de Miguel Carvalhais (@C e Crónica Eletrónica)”.

Com orientação da Matéria Prima em ligação com a Associação SOOPA, as três primeiras edições foram coordenadas por Pedro Junqueira Maia (Atelier de Composição) e a quarta edição pela própria Matéria Prima em conjugação com a SIRR Records.

Para já, Hugo Oliveira adianta que ainda não há certezas quanto ao caminho que se há-de espelhar nas próximas edições: “tanto podem ser reedições como inéditos”, revela. “Gostaríamos de continuar a repescar algumas obras contemporâneas e retirá-las da sombra. Para isso continuamos a contactar muito de perto com os autores o que nos tem permitido ter acesso a gravações que nunca foram editadas. Antes de planear as próximas edições facilmente percebemos que há ainda muito trabalho de investigação e de divulgação a fazer”.

 


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[CÂNDIDO LIMA – OCEANOS]

Lançado originalmente em 1992 no selo Portugalsom (à época com ligação à cadeia de lojas Strauss, já extinta), o título original da edição (que só foi disponibilizada em CD) referia as três peças incluídas – Sand Automata . Legends of Neptune . Oceans. Para este relançamento com carimbo Grama o título foi abreviado para Oceans, embora se mantenham as três composições (alterou-se a ordem, colocando a mais longa “Oceans” a abrir, mas editada para cerca de 22 minutos por causa das limitações do vinil – a peça original tinha 26 minutos e 25 segundos).

Criada num contexto académico em estúdios franceses e com recurso a electrónica (incluindo os famosos VCS – 3 da EMS), este álbum foi depois misturado nos estúdios da RDP Porto e muito provavelmente estreado pela Antena 2. A música de carácter electro-acústico inspira-se nos estudos da NASA dos “oceanos” de Neptuno e portanto explora a possibilidade de mundos estranhos à nossa própria realidade, com pulsares de carácter profundamente abstracto e manipulação através de efeitos dos sons registados em fita. Música opaca para um mundo desconhecido, mas, ao mesmo tempo, com um natural poder evocativo, tal o “exotismo” dos sons eleitos por Cândido Lima para a construção das suas peças. Trata-se de uma obra do arranque dos anos 70/80, mas bem poderia servir como banda sonora alternativa à criação electrónica do casal Barron para Forbidden Planet, em meados dos anos 50.

 



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[FILIPE PIRES – CANTO ECUMÉNICO]

Uma vez mais, na segunda edição da Grama, o título original – que resultava dos títulos das três obras incluídas – foi encurtado para apenas um deles, Canto Ecuménico, mas desta vez respeitou-se a duração integral das obras, o que faz sentido já que o constrangimento da capacidade do vinil se colocou também aquando do lançamento original, em 1980, na Imavox.

Dos quatro lançamentos da Grama este será o mais notório e aquele que possui uma mais vasta história editorial: foi originalmente incluído no catálogo da Imavox, como já referido, em 1980, lançado mais tarde em CD pela Portugalsom / Strauss (em 1997) e ainda alvo de uma reedição bootleg na notável Creel Pone de Keith Fullerton Whitman (2014), a label de mini-réplicas de vinil em CD-R que tem o mais espantoso catálogo de electrónica pioneira, música concreta e erudita de vanguarda existente à face da Terra (são mais de 100 lançamentos erguidos a partir de uma vasta colecção de títulos que, nas suas versões originais, chegam muitas vezes às várias centenas de euros no mercado especializado de coleccionismo). Trata-se de uma muito bem vinda reedição por parte da Grama já que o vinil original se encontra bastante valorizado (180 euros pela cópia mais barata no discogs, neste momento).

Mas a maior pertinência nesta reedição prende-se, na verdade, com a imensidão desta obra de Filipe Pires, compositor que faleceu no Porto em 2015, quando contava 80 anos. Obra de uma densidade impressionante e de tons profundamente negros, faz-se da manipulação em estúdio próprio de sons concretos registados em fita, sobretudo gravações de campo de carácter religioso, no caso do tema título, dispostos em colagens rápidas, dramáticas e vibrantes nos seus contrastes (talvez devido a limitações técnicas do equipamento pertença do compositor). “Litania” e “Homo Sapiens” foram por outro lado gravadas nos estúdios da ORTF, quartel general da principal célula criativa da música concreta, o Groupe de Recherches Musicales criado por Pierre Schaeffer e Pierre Henry em Paris, nos anos 50 do século passado. A primeira a partir de múltiplos sons metálicos manipulados e tratados com efeitos, a última tomando como ponto de partida a voz humana. O resultado final bem que poderia ter ilustrado um qualquer obscuro filme de terror psicológico da década de 70, quando a paranóia nuclear alimentava fantasmas muito particulares um pouco por todo o mundo.

 




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[ARMANDO SANTIAGO – MÚSICA INTUITIVA]

Tanto quanto é possível perceber, trata-se de uma obra inédita de Armando Santiago, professor português que nos anos 70 se naturalizou como cidadão canadiano, assumindo importantes funções académicas em instituições de ensino superior no Quebec. Faz por isso mesmo sentido encontrar um único single editado por si na mesma CAPAC que lançou Portrait Musicale de Bernard Bonnier, excêntrico e obscuro experimentalista do Quebec cujo clássico Casse-tête é uma pérola da electrónica dos anos 80 que navegava entre as margens da pop e a experimentação pura.

A data apontada na edição da Grama para a criação destas abstractas peças erguidas a partir de uma sintética orquestra de vozes MIDI é de 2003, quando o compositor contava já 71 anos (conta 86 neste momento). O autor refere opostos como coordenadas para a sua obra: escuridão e luz, vida e morte, e isso sente-se na música que alterna dinâmicas contrastantes, quase silêncios seguidos de dramáticos crescendos, com a cromática muito particular das vozes electrónicas orquestradas através da batuta do MIDI a concederem um aspecto extremamente moderno ao todo. O carácter intuitivo a que o título se refere, porém, parece muito remoto perante uma música que soa tão determinada, tão pensada, tão gizada a partir do rigor matemático das máquinas.

 




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[RENÉ BERTHOLO – UM ARGENTINO NO DESERTO]

Originalmente editado em CD em 2001, com carimbo da então nascente Sirr de Paulo Raposo — Um Argentino No Deserto foi a segunda entrada no seu catálogo –, este trabalho perde o original tema de encerramento — “Fado da Mar” — no alinhamento da nova edição em vinil.

Trata-se do mais singular dos discos até este momento lançados com marca Grama, uma vez que é uma obra da autoria não de um compositor, mas de um pintor e escultor de mente inquisitiva e inquieta que sem formação concreta criou em 1973, tanto quanto se entende dos seus escritos, uma espécie de híbrido de escultura e dispositivo musical electrónico baseado nas caixinhas de música: “uma espécie de sintetizador digital, programável”, escreveu o autor, que foi evoluindo, quase como um organismo vivo, ao longo dos anos. Bertholo chamou-lhe “Makina” e ao som que produzia, por não ter a certeza de lhe poder chamar “música”, “mosik”.

René Bertholo nasceu em 1935 em Alhandra e faleceu 70 anos depois em Vila Nova da Cacela. Frequentou a António Arroio e a ESBAL, e no arranque dos anos 70, estudou a aplicação da electrónica à arte em Berlim. Estas criações surgiram na sequência desses estudos. Trata-se de música maravilhosamente inocente, com o seu quê de infantil e um carácter estranhamente mágico, de simples progressões electrónicas em peças de linearidade aparente, mas que a cada nova audição se vão revelando crescentemente complexas. Um Argentino no Deserto é talvez o mais cativante e intrigante registo da colecção até agora lançada pela Grama.

 


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