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Fotografia: Manuel Abelho (com Rita Santa Marta na ilustração sobre fotografia)
Publicado a: 16/07/2022

Puchito, qual é a manha?

C. Tangana no Super Bock Super Rock’22: um homem ingovernável a cantar para uma plateia de velhos e novos crentes

Fotografia: Manuel Abelho (com Rita Santa Marta na ilustração sobre fotografia)
Publicado a: 16/07/2022

Se perguntarem a C. Tangana o que é, para ele, a música espanhola, a resposta que ele dará será, muito provavelmente, a mesma que Pepe Blanco deu no programa Cantares: “mi vida”. Quando o excerto dessa entrevista, que foi usado em “Cuándo Olvidaré”, uma das últimas faixas de El Madrileño, apareceu nos ecrãs da Altice Arena, já todos estavam completamente rendidos a essa ideia: não é possível fazer um espectáculo daquela dimensão sem se ser completamente devoto à matéria que está a tratar. 

Há quem lhe chame “veneno”, mas preferimos usar “armadilha” no seu lugar: o álbum que Antón Álvarez Alfaro lançou em 2021 foi uma habilidosa artimanha em que todos caímos; não satisfeito com isso, o cantante ainda decidiu que o seu Tiny Desk (em casa), um dos mais visualizados de sempre do canal de YouTube da NPR Music, seria a amplificação daquilo que tinha feito em estúdio, fazendo-nos a maior das pirraças com aquele convívio: quem é que não quereria estar naquela mesa, a cantar (sem preocupações) aquelas músicas, no meio de um dos períodos mais sombrios para a Humanidade em tempos recentes? 

Porém, e para alguns sortudos, esses momentos terríveis podem, facilmente, tornar-se em pausas benéficas: para Tangana, a concessão desse tempo foi crucial para mudar completamente de registo e preparar-se para levar um autêntico blockbuster musical para palco – e que difícil parecia a tarefa de traduzir o ambiente construído em estúdio com aquelas 14 canções para um espectáculo ao vivo.

Ao contrário do que se possa pensar, a fantasia no Parque das Nações só começou realmente a ganhar forma quando caiu o pano. À nossa frente, um cenário ambicioso, desde as secções de cordas e de sopros até às mesas espalhadas pelos palcos, e um banquete real – cheio de bebidas, diga-se, apontando mais para o final de uma festa que ainda se irá prolongar pela noite fora do que para a fase em que ainda comemos tímidos e sem o muitas vezes necessário “desbloqueador” a alterar-nos o espírito. 

Tudo girou à volta do sucessor de Avida Dollars (2018), mas os primeiros momentos até voltaram a esse trabalho de há quatro anos com “Still Rapping” – e logo aí entendemos que os filtros na voz de Tangana seriam mais benéficos do que prejudiciais; para quem anda na estrada com Sin Cantar Ni Afinar como mote, nada como mostrar que as limitações, quando as entendemos e olhamos para elas de uma forma positiva, são pontos-de-partida para chegarmos a um sítio bonito e singular – e, bem, quando se pode requisitar todas as noites os serviços de La Húngara, Antonio Carmona e Niño de Elche, essas questões também passam para segundo (ou terceiro) plano. 



O convívio não era só lá em cima: as letras eram, praticamente na íntegra, devolvidas cá de baixo com tal intensidade que mais parecia que todos, músicos e público, tinham escrito aquelas histórias transformadas em canções em conjunto. “Te Olvidaste”, “Comerte Entera” – a primeira explosão a sério – e “Ateo” (e Nathy Peluso, que actuara antes no mesmo palco, não apareceu) foram logo excelentes exemplos dessa comunhão, mas eram apenas o início. 

Apesar de Tangana ser uma espécie de anfitrião, a verdade é que, mesmo dando (muito) espaço aos seus companheiros para brilhar, não deixa de puxar para si as atenções, aproveitando o palco e o seu cenário para se sentar em diferentes mesas com os músicos, interagindo com um dos actores a fazer de empregado para um pequeno momento mais teatral que desemboca em “Llorando en la Limo”, outro resquício da sua época mais trapera, ou emocionando-se, como se fosse a primeira vez que visse aquilo acontecer, quando um dos cantores, Ismael “El Bola”, que o acompanha mete a alma flamenca toda cá fora – esse mesmo intérprete teria, a certa altura, a bandeira romani às costas; ignorar a importância desse povo e dessa cultura para a criação deste som seria contraproducente, e Tangana não tenta escondê-lo, muito pelo contrário. 

Com um espectáculo coreografado ao milésimo de segundo (do trabalho de câmara a dar-nos a sensação que estaríamos a ver um DVD da actuação enquanto ela estava a acontecer até às movimentações regradas das pessoas), é difícil escolher um momento maior, mas a réplica do que fez no Tiny Desk é candidata natural. “Me Maten”, “Ingobernable”, a colagem de “Los Tontos”, “Bizarre Love Triangle” (dos New Order) e “Alegría de Vivir” (de Ray Heredia) ou o regresso ao groove rap em “Tranquilisímo”, já com o protagonista em cima da mesa, obrigavam a abrir quase todos os botões da camisa – e havia na plateia até quem cantasse de braço no ar e punho bem fechado, uma das várias reivindicações que os fãs fizeram daquelas canções que já não pertencem a Tangana. Elas agora pertencem a esse mundo que nunca pareceu tão enamorado com a palavra cantada em espanhol como agora – não garantimos que isto seja completamente factual, mas achamos sempre que as nossas paixões são mais intensas que as dos outros.

Para além do que já foi mencionado, também se ouviu “Demasiadas Mujeres” (em todo o seu esplendor), “Tú Me Dejaste de Querer” (com La Húngara e Ñino de Elche noutro nível e a guitarra a ser tão boémia ali como no estúdio), “Un Veneno” (deste todos queremos) ou até “Antes de morirme” (sem ROSALÍA, como é óbvio, mas com Lucía Fernanda, que também “fez” de Peluso, no seu lugar e a receber uma reacção tão efusiva como as faixas mais recentes). Nalguns destes temas, o acesso aos muitos e diferentes instrumentistas e vocalistas permitiram uma expansão bem-sucedida de certas partes das canções, chegando a um lugar ainda mais orgânico e emocional. Não dava para pedir mais (nem melhor). 

Já com a manga à cava à mostra e tudo de copo na mão, o artista espanhol deu por encerrada a sessão ao abrir uma garrafa de champanhe – nada mais adequado, mais uma vez. Não sabíamos, mas depois da noite de ontem passámos a saber: C. Tangana é, inclusive, um ilusionista em topo de forma. Durante uma parte da noite passada, o madrileno deu-nos a ilusão que estaríamos com ele e com a sua banda naquelas mesas, em cima do palco, a fazer parte da vida desta família que se reúne para celebrar a música em espanhol. Também nos enganou à boleia do nível da produção do espectáculo, levando-nos a acreditar que aquelas pessoas estariam ali em cima pela primeira vez a conjugar aquela magia de um encontro inusitado em que a música e as bebidas alcoólicas tomam conta dos acontecimentos. Alguém que peça a Pucho para estalar os dedos, por favor, temos de andar para a frente com a nossa vida. Como é que se segue para outros concertos como se não se tivesse passado nada?

“Yo era ateo, pero ahora creo” ganhou outro significado a partir de agora…


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