Em Burburinho, Leonardo Pereira olha pelo retrovisor e oferece destaque aos discos — muitas vezes não tão óbvios — que mais o marcaram ao longo do mês anterior, com especial enfoque para tudo aquilo que se vai colhendo nos campos do hip hop. Sem restrições ao nível da estética, por aqui vão cruzar-se propostas que vão desde o mais clássico boom bap às cadências soulful que aproximam o género do R&B, não esquecendo nunca as reformulações mais modernas do som nascido em Nova Iorque, que hoje gera infindáveis ecos a partir de qualquer cidade à volta do globo através das visões gélidas do trap ou do drill.
[Vayda] VAYTRIX
Vayda é capaz de ter a voz mais ternurenta do game e propomos a tese de que é ela que está a carregar o plugg, com polvilhos de jersey club, trap e até drill neste VAYTRIX, o seu sexto disco desde 2022. Diretamente do poço fervilhante da cultura hip hop e respetivos subgéneros que é a Georgia, acreditamos que não há ninguém a fazê-lo como Victoria Bryant — nunca o braggadocious foi tão fofinho, mesmo quando ela afirma que caça para matar logo na primeira faixa do disco.
Este projeto é composto por 15 canções com pouco mais de um minuto cada uma (como já estamos habituados com esta MC/produtora) e ouve-se num instante, até percebermos que o estamos a ouvir pela 4ª vez seguida — a fórmula é executada tão precisamente que é impossível não ouvirmos, e reouvirmos, e reouvirmos. Se há característica que nos faz elevar discos, é mesmo a duração deles na nossa rotação, e há pelo menos 10 faixas aqui que vão rodar constantemente em qualquer playlist. Para além da facilidade com que os versos e os refrões se cravam nos nossos ouvidos, retemos connosco a disposição para dançar que quase todas as faixas nos obrigam a ter. Fora algumas baladas mais vagarosas e emocionais, o disco está a rebentar pelas costuras com vontade de abanar o corpo.
Menção curta para as features, todas elas brilhantes: de Amindi a Na-Kel Smith, com Zelooperz, MAVI, Tony Shhnow e Popstar Benny pelo meio. Não interessa a cor do comprimido aqui, o que interessa é tomá-lo com Vayda.
[Rome Streetz & Daringer] Hatton Garden Holdup
O assalto aos cofres nos Hatton Gardens, em 2015, ficou marcado para muitos como um acontecimento inesquecível. Seis homens, todos para cima dos 50 anos, roubaram cerca de 14 milhões de libras, os serviços policiais ingleses demoraram mais de 4 meses para os apanhar e apenas 4.3 milhões de libras foram recuperadas até ao momento.
Rome Streetz e Daringer juntam-se então para tentar criar um acontecimento musical com um impacto semelhante. E chegam lá perto. Apesar de acharmos que o disco se vá perder um bocadinho no que o ano ofereceu, a voz de Rome oscila monótona, não num sentido aborrecido, mas num sentido quase psicopático, de uma afirmação da sua certeza no que está a dizer, na crença pura do seu skill. Daringer cria uma sequência de ambiências expectantes de que alguém conte as suas histórias aspiracionais sobre elas, preparando um boom bap ansioso e sinistro, como se uma fria brisa noturna e uma certa eletricidade percorresse nas frequências sonoras dos nova-iorquinos.
Mais uma vez, acabamos o parágrafo com uma menção a uma feature. Certo, há várias mencionáveis — Conway the Machine, Meyhem Lauren ou Cormega deixam a sua marca —, mas aqui o verso mais impactante de um convidado pertence a ScHoolboy Q, que volta à ação com uns pares de rimas absolutamente inesquecíveis, transpirando puro drip.
[Nowaah The Flood & Kyo Itachi] Sudan Samurai Scrolls
Sudan Samurai Scrolls é mais um exemplo de como o hip hop consegue surpreender. Se o nome do disco já é contundente, os nomes dos seus criadores carregam o mesmo impacto. Nowaah The Flood é um rapper texano com uma crescente discografia desde 2016 e juntou-se a Kyo Itachi, produtor francês com quase 15 anos de projetos editados, para brotarem um disco brilhante de um boom bap que já não se ouve com tanta frequência hoje em dia, invocando uma aura que soa a uma mistura de Wu-Tang Clan, Mobb Deep e até influências mais recentes como o coletivo Griselda.
As batidas partilham qualidades etéreas com intenções líricas impactantes, amparadas por sintetizadores arejados e samples vocais espaçosas e demoradas para darem margem às histórias de vida que demandam respeito e apreço. Tanto pela qualidade poética que contém, como pelo trabalho de referenciação, como pela sua materialidade: sentimos que estas fábulas são partes integrantes da vida de Nowaah The Flood, e que contá-las com esta expressividade não é trabalho fácil. Desta vez, não podemos falar em features — o disco não as contém —, mas também não fazem falta absolutamente nenhuma aqui. Este duo é completo, apontado a objetivos claros, direto ao argumento e sem necessidade de mais vozes; a do rapper texano já enche pergaminhos e torna vinte e três minutos de música em algo que poderia rodar em quaisquer colunas durante dias seguidos.
[Samara Cyn] The Drive Home
Samara Cyn já foi alvo de uma exposição maior aqui no Rimas e Batidas em março, e voltamos a dar-lhe um espaço para que se apercebam do que estão a perder, caso ainda não tenham apanhado o nosso conselho para uma das artistas mais entusiasmantes dos anos recentes, que se estreou em outubro com o seu primeiro disco — The Drive Home. Deixa os freestyles passados para trás e foca-se nestas rápidas mas memoráveis 10 faixas para uma entrada a pés juntos maravilhosa na sua discografia.
Não se inibe de um braggadocious bem convencido misturado com temática cristã (ou, pelo menos, adjacente à igreja, com as referências em “Sinner” a serem claras), pontua o seu álbum com interlúdios mais introspetivos em “KO”, “tho it hurt” e “D’s Piano”, retira-se para si própria em canções como “imightdie.” e “Entry#149″, e ainda ameaça a sua competição com refrões inesquecíveis em “Rolling Stone” e “MFTB”. Multitalentosa, com um futuro claramente aberto a qualquer via musical, e inteligente o suficiente para não se limitar a um só género neste primeiro disco, deixamos a nota final para a escolha de beats, das mãos de Ovrkast., PoWR Trav, Tommy Parker, D’Mile, entre outros, que parecem ter entendido perfeitamente a tarefa de que ficaram encarregues. Apanhem a boleia para casa de Samara — e que não tenhamos medo quando ela sair das nossas colunas.