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Buraka Som Sistema: descolonizar mentes, um beat de cada vez

[TEXTO] Ricardo Miguel Vieira [FOTO] Direitos Reservados

 

A descrição mais clarividente do projecto Buraka Som Sistema ainda é aquela que reside nos primeiros segundos do documentário-perfil que o colectivo estreou em 2013 sob o título Off The Beaten Track. João Barbosa aka Branko: “Buraka é um acidente. Toda a gente tinha a ideia [para si] de que não era isto que queria fazer, mas isto está a acontecer. Fizemos uma banda com toda a gente a fazer o que não queria, mas resultou”.

 


 


Cristóvão Colombo terá pensado o mesmo quando navegava no imprevisível Atlântico à procura das Índias e deu por si a pisar o Novo Mundo. Não era esse o plano, “mas resultou”. Isto para dizer que, com as devidas distâncias, o acidente que Branko mencionou está carregado de uma acolhedora genuinidade portuguesa: porque há acasos social e globalmente relevantes inscritos na nossa memória histórica; e porque os Buraka também descobriram novos territórios (sónicos, e não só) porque decidiram explorar o mundo que avistavam de uma qualquer janela num qualquer quarto nas franjas do caldeirão multicultural da Amadora. E quando Portugal finalmente decidir confrontar o seu passado e, sobretudo, presente, então perceberá que o fenómeno cultural, agregador e progressista de escala planetária baptizado Buraka Som Sistema (BSS) é mais do que um simples parágrafo na história colectiva lusófona.

Kalaf, Riot, Branko e Conductor trilharam, ao longo de uma década e em conjunto, um percurso que se expandiu no espaço e que transformou a sociedade portuguesa por desafiá-la a escutar-se a si própria. Esse impacto é ainda meritoriamente ampliado se tivermos em consideração que os Buraka unificaram, através da música, da coreografia e do vídeo uma série de referências culturais. Referências, essas, que os membros da banda nem tiveram de resgatar através de viagens além-fronteiras, porque nos arredores da Buraca estava África, tropicalismo, kuduro, América Latina, hip hop, cachupa, bairros sociais, linha de Sintra, Centro Comercial Babilónia, multiculturalidade. Da Buraca para o mundo porque o mundo cabe todo na Buraca.

Ou seja, os BSS são uma constante num mar de variáveis, o que suscitou um crescente interesse, dentro e fora de portas, no trabalho que estavam a desenvolver. Do hook monossilábico de “Yah” (2006) ao esgotadíssimo espectáculo em Bruxelas, na semana passada, os termos de medida da dimensão dos Buraka Som Sistema foram-se multiplicando ao longo dos anos. Por exemplo, é indissociável o papel da web 2.0 e das primeiras redes sociais e das ligações de banda larga na amplificação da cena Buraka, seja por tradução num avolumar do hype, seja pelo aceleramento da disseminação de uma nova expressão artística que, inevitavelmente, influenciou outra tantas correntes estéticas. A amostra mais notória nos dias de hoje é o entusiasmo suscitado pela batida do gueto de Lisboa, que, sublinhe-se, emergiu do underground no ano de estreia dos BSS e também por plataformas de distribuição virtuais actualmente obsoletas (eMule).


 


Outra medida de comparação encontra-se offline, nos espectáculos: do Clube Mercado aos festivais nacionais e daí aos palcos europeus e do outro lado do Atlântico, o colectivo transportava para as plateias o exército de fãs que recrutava na rede e aliciava novos públicos a juntarem-se ao movimento. Espreitem a diversidade existente entre os mais de 380 mil seguidores do grupo no Facebook ou (bem mais interessante) as colaborações e remisturas e apadrinhamentos e mesclas sónicas que apresentam no portfolio, inclusive através da Enchufada, editora-mãe que, mesmo sem Buraka Som Sistema, permanecerá um espaço para novos aventureiros explorarem a reinvenção da música de dança global.

E, claro, os meios de comunicação, outro termo de medida que valida, uma vez mais, os Buraka Som Sistema como o maior movimento artístico popular português. As sucessivas publicações de artigos no The Guardian, The New York Times, CNN, El País, Pitchfork, entre tantos outros, evidencia um mundo rendido a este vendaval dançável e integrador que sopra de Portugal e que transporta consigo as impressões digitais de regiões historicamente desconsideradas. Catalogavam esta música fresca, audaz, diversa, lusófona e inovadora de “pós-colonial”. Historicamente, é um facto; mas, na prática, é ainda um processo revolucionário em curso, porque o carácter transformador dos Buraka não está exclusivamente na música globalizante que conceberam: encontra-se, também, na progressiva descolonização de mentes.


 


Senão, enumere-se: há o hype em torno da batida do gueto de Lisboa, que já levou muitos miúdos de bairro a trocar a incerteza das ruas pelas mesas de mistura e, consequentemente, pelos palcos nacionais e internacionais; há um bairro às portas de Lisboa que, há 20 anos, era uma pilha de entulho e de torres de betão inacabadas então habitadas por imigrantes das ex-colónias portuguesas e que actualmente é uma tela de arte pública (com visitas guiadas para turistas!); há vedetas da kizomba com produções cinematográficas no grande ecrã e presença assídua em programas familiares no pequeno; há a noite lisboeta (e até a norte) a acolher, de braços abertos, cada vez mais artistas, conceitos e residências de referências africanas, latinas e tropicais; há a influência em artistas e editoras de projecção internacional que acreditaram ser possível comunicar as suas ideias a uma diversidade de públicos e, ainda assim, permanecerem uma espécie de mensageiros de uma nova ordem social (Batida e Príncipe à cabeça); caramba, até uma ministra negra no Governo – a primeira, 41 anos depois de Portugal abandonar as suas colónias (!). O maremoto Buraka Som Sistema também se sente no estrangeiro através da geminação da cena global dance music, que arregimenta novos percursores todos os dias; e nos palcos que pisam por esse mundo fora, contagiando multidões com uma energia e linguagem singulares (e reparem que dentro de menos de um mês também vão descolonizar mentes na América que parece sucumbir aos devaneios de Donald Trump).

Ou seja, todas estas transformações, especialmente em Portugal, são intrínsecas aos dez anos de música, de novas narrativas corporais e de acolhimento de novos artistas que os Buraka Som Sistema facilitaram. Abriram portas, apontaram caminhos, semearam universos. Mesmo que, como Branko me disse numa conversa há uns meses, o nosso país prefira “não pensar muito sobre estas coisas”. “Não há muita abordagem socio-cultural sobre por onde as coisas estão a ir, o que é que está bem e o que é que está mal”. Na mesma conversa, justificou a paragem dos BSS “por tempo indeterminado” porque estão a “a fazer um império novo, diferente” e para os membros do grupo “pensarem noutras merdas, fazerem filhos.” Uma boa oportunidade para Portugal reflectir sobre os filhos que os Buraka Som Sistema nos deixaram.

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