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Fotografia: Vera Marmelo
Publicado a: 22/05/2021

Elegância, sofisticação e engenho.

Bruno Pernadas na Culturgest: quando não se limita o génio, todos ficamos a ganhar

Fotografia: Vera Marmelo
Publicado a: 22/05/2021

A música que Bruno Pernadas apresentou ontem no Grande Auditório da Culturgest (e que hoje pelas 19 horas voltará a apresentar) é pura matéria de maravilhamento, mas, antes de abrir totalmente a cancela aos adjectivos para os deixar correr livremente por este texto fora, é importante abordar um par de delicadas questões.

Ontem, em cena, estiveram 10 pessoas, mais, durante alguns momentos, o senhor Moritz Kerschbaumer que além de assegurar a mistura de som de palco teve ainda por missão ler um breve trecho científico no tema “Fuzzy Soul”. Para que estes 10 elementos (+1…) pudessem ter apresentado o concerto, houve, necessariamente, que envolver mais gente: pelo menos um técnico de som de frente, um técnico de luz, talvez algum roadie. E a isto ainda acrescem recursos humanos tanto do lado do artista (editora, agência, etc), como do da sala em que o concerto foi apresentado (stage hands, frente de sala, etc). É, portanto, o trabalho de uma complexa engrenagem humana aquele que se presencia de cada vez que alguém sobe a um palco e tem pela frente uma plateia. Nunca é demais relembrar isso.

E num tempo em que o “bom senso” convida à redução da escala – menos público, menos datas, poderá ditar contenção no departamento de recursos humanos – é assinalável acto de coragem a recusa de comprometer a arte com cedências nesse campo. Por isso mesmo, impõe-se, logo à partida, o aplauso a todas as entidades que tornam possível um espectáculo como o que ontem uma sala esgotada (de acordo com a capacidade actualmente permitida, obviamente) pode aplaudir (de pé, na verdade): editora, artistas, sala, programador – todos estão de parabéns.

Mas deve-se igualmente sublinhar uma ideia de responsabilidade cultural que é absolutamente crucial que mais salas, eventos e programadores de todo o país tenham por estes dias bem presente: só essa responsabilidade permitirá que a ambição artística, que se manifesta de muitas formas, incluindo na tal escala humana que se dilata até às orquestras, mas que se pode igualmente traduzir em complexidades técnicas de outra natureza, continue a ter lugar. E é importante que isso aconteça sob pena de outras salas, outros artistas e outros públicos poderem ser privados daquilo que ontem vimos acontecer na Culturgest.

E que se abra então a tal cancela.

O palco, em primeiro lugar: noutras apresentações referentes a trabalhos anteriores, Pernadas teve por moldura, por exemplo, um cenário tropical e luxuriante, bem condizente com a música então executada, mas ontem, tudo era geométrica elegância – os “L” invertidos em néon a recortarem o espaço, o friso superior de luzes, a pequena torre de lâmpadas lateral e, claro, as projecções de motivos gráficos de carácter algo hipnótico a evocarem de forma subtil a mesma opção estética que tem tradução visual na capa de Private Reasons. Ou seja, nem eventuais constrangimentos orçamentais impostos pelas condições agora vigentes justificaram alguma desatenção nesse plano que embora seja visível é também bastas vezes desvalorizado. Música elegante precisa de enquadramento cénico igualmente elegante. Bravo.

O som, depois: Tiago Sousa, na mesa de frente, não tinha missão fácil. Em primeiro lugar estavam as vozes de Minji Kim, Afonso Cabral, Francisca Cortesão, Margarida Campelo e até do próprio Bruno Pernadas (e ainda a de, para aí durante 20 segundos, Moritz — command+c — Kerschbaumer), todas perfeitamente definidas, todas com generoso espaço na mistura, todas transparentes nas suas texturas, incluindo a do líder, mesmo que em modo ultra-processado via efeitos de “crooner do futuro”, soando como uma espécie de Brian Wilson em modo Daft Punk.

E depois vieram os instrumentos, todos com caracteres muito próprios, todos com amplo espectro sónico para deixarem a sua distinta personalidade nos arranjos: Bruno Pernadas oscilou entre os sintetizadores e a guitarra, com bastantes periféricos que lhe foram permitindo temperar os instrumentos com diversos efeitos; Margarida Campelo além de cantar maravilhosamente ainda tocou muito bem piano, piano eléctrico e sintetizador; João Correia confirmou, uma vez mais, que é um monstro de precisão, swing e subtileza na forma como dispõe o seu baterismo, colocando-o sempre ao serviço das composições; Nuno Lucas, que é uma força da natureza, pois claro, foi a grave cola que tudo segurou, o guia que conduziu as nossas ondulantes cabeças; Afonso Cabral também acrescentou textura pontual via guitarra; e depois havia ainda os sopros: Diogo Duque soou (e solou…) absolutamente maravilhoso no trompete e na flauta, evoluindo com pura classe pelas elipses melódicas imaginadas pelo compositor; João Capinha, em tenor, soprano e alto, foi um subtil colorista, perfeitamente capaz de oferecer argumentos importantes para o puzzle harmónico que se montava com cada peça; e Raimundo Semedo, no assertivo barítono, mostrou ser pura lava incandescente, dono de uma força absolutamente telúrica. Foram estas as especiarias aurais que Tiago Sousa teve que combinar para nos dar o incrivelmente perfumado caril sonoro que ontem nos saciou os ouvidos (a cancela está escancarada, já perceberam, certo?)

E a música? Bem, por esta altura, é verdade, já não surpreende a capacidade que Bruno Pernadas tem de apresentar as suas ideias sem rede. Escutando Private Reasons é fácil perceber a minúcia do trabalho de estúdio, a precisão dos detalhes, a qualidade na captação de cada fragmento que, quando dispostos na mistura final, compõem os maravilhosos quadros que se sucedem no alinhamento. Mas passar tudo isso para o palco requer outro tipo de capacidades e, nesse departamento, Bruno Pernadas também não falha. O seu combo destila elegância em “Family Vows”, puro nervo afrobeat em “Lafeta Uti” (tema que responde à pergunta “a que soaria um grupo composto por membros dos Brasil 77 de Sérgio Mendes e da orquestra de Bruno Nicolai se lhes fosse pedido para interpretarem peças do reportório de Fela Kuti?”), psicadelismo tropical em “Jory” (que letra incrível, a de Catarina Barros, que nos foi revelada na projecção), balanço hip hop vincado com tremendo poder rítmico de João Correia em “Brio 81” e até na revisão de matéria passada, como aconteceu em “Spaceway 70”, relembra que tem total domínio daquele balanço cósmico-tropical que só não deu em baile porque felizmente estávamos todos vacinados com bom-senso. Dá para tudo nos cerca de 75 minutos disponíveis (ainda há um recolher mandatório, como divertidamente nos relembrou Pernadas no final, fazendo saber que do planeado díptico preparado para o encore, só uma das peças poderia ser executada – “vão ter que imaginar a que soaria”). Bruno desenha o que se apresenta no palco com régua e esquadro, procurando nunca comprometer a sua própria visão artística (e percebeu-se, por isso mesmo, o ligeiro pânico, quando uma das pautas parecia estar perdida). E somos nós, ouvintes que preenchem a plateia, que ficamos a ganhar com tal integridade.


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