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Fotografia: Diana Mendes
Publicado a: 23/04/2021

Razões privadas, ideias universais.

Bruno Pernadas: “Em palco sempre quis que a minha música soasse visceral e orgânica”

Fotografia: Diana Mendes
Publicado a: 23/04/2021

Já são poucos os músicos que pensam como Bruno Pernadas pensa. O músico e compositor que hoje lança Private Reasons, álbum que sucede — finalmente! — a Those Who Throw Objects at the Crocodiles Will Be Asked to Retrieve Them e Worst Summer Ever, que já datam de 2016, não se importa mesmo nada de partilhar as razões que o levam a escrever música desta forma expansiva, com recurso a secções de cordas, a sintetizadores escolhidos a dedo, com uma banda dilatada que inclui uma flautista, mais um vibrafonista, um pianista, sopros, dois baixistas diferentes… Private Reasons é como um daqueles filmes com um cast dilatado, servido por um argumento com tramas e sub-tramas que nos prendem a atenção, com cenários ricos em detalhes, fotografia cuidada, patine de época muito particular, direcção de arte rigorosa espelhada na escolha de cada objecto. Nada surge ali por acaso, tudo tem uma razão de ser…

A ficha técnica lista 16 pessoas directamente envolvidas na execução da música que se escuta em Private Reasons ao longo de praticamente 75 minutos, uma “longa metragem” que será “projectada” já no próximo mês de maio em duas sessões especiais na Culturgest, dias 21 e 22. A ambição artística de Pernadas é especialmente corajosa numa altura como a presente, pouco convidativa para projectos que impliquem que muita gente ocupe o mesmo espaço, mas aí o músico, compositor e também produtor é irredutível. Ele explica que tem noção de que já no passado teria feito mais concertos se adaptasse a escala da sua visão a formatos mais viáveis, tanto em termos logísticos como económicos, mas, como faz questão de sublinhar, o lado “visceral e orgânico” da sua música precisa de sobreviver em palco e para isso são necessários amplos recursos humanos.

Essa visão artística de Pernadas rende agora mais um vívido e imponente “mural” pop que contém dentro muitos mundos diferentes: a arte orquestral aprimorada nos estúdios italianos nos anos 70; o pulso orgânico afinado em Lagos, Nigéria, mais ou menos na mesma altura; o néctar melódico depurado na Califórnia solarenga nos anos 60; a fantasia exótica com que vários directores de orquestra procuraram ilustrar a partir do final da segunda guerra mundial os mais remotos cantos do mundo que então se alcançavam: de Machu Picchu ao Vale dos Faraós e daí até às selvas tropicais mais densas e às ilhas perdidas no meio do Pacífico dominadas por vulcões, casas de estranhos ídolos de pedra… É preciso imaginação para viajar tanto tendo como principal meio de transporte uma orquestra e por mapa uma partitura onde se escrevem arranjos, mas Bruno Pernadas é esse intrépido viajante que permanentemente nos surpreende.

Por zoom, numa tarde recente, o principal protagonista deste “filme” titulado Private Reasons abriu-nos as portas da sua mente criativa e esmiuçou o seu processo criativo, ajudando-nos a todos a descodificar o argumento elaborado que hoje mesmo é lançado, em streaming, claro, mas também em CD e, brevemente (dedos cruzados) em vinil.



Conheces, obviamente, o adágio que diz que não se deve julgar o livro pela capa, mas eu acho que quem julgar o teu disco pela capa já vai chegar muito perto daquilo que ele é.

Muito perto.

Fala-me primeiro, antes de falarmos da música, sobre o artwork do disco.

Inicialmente, o artwork do disco seria feito pela Rita Westwood — foi a pessoa com quem sempre trabalhei nisso. O primeiro álbum fizemos os dois, o segundo já fez ela e depois neste acabou por não poder fazer. Fiz eu juntamente com o João Paulo [Feliciano]. Mas a capa até ia ser diferente desta, e foi logo decidida assim que vi a imagem. Até ia ser um desenho: fizemos um desenho e um dia olhámos para a capa e tanto o João Paulo como até o Rui Toscano, um artista plástico que estava lá presente, e eu dissemos, “olha, afinal não” [risos]. E não havia nenhuma razão em específico. Foi só de um dia para o outro olharmos e pensarmos: “não, isto não é capa para este álbum”. Mais tarde eu e o João Paulo fomos conversando e fazendo a capa os dois. E foi assim que surgiu esta bela capa. Inicialmente o fundo era diferente, um bocadinho mais indie rock. 

Interessa-me esse lado gráfico porque eu acho que a tua música tem uma identidade que se sente através de um conjunto de marcas… a tua música é muito visual, podemos dizer assim. Portanto, imagino que traduzir isso para uma capa de um disco implique algum pensamento.

Implica e é um assunto que eu levo muito a sério. Eu não vou editar o disco enquanto a capa não estiver feita. 

Tu envolves-te totalmente nesse processo?

Sim. Quando era a Rita Westwood a fazer, eu confiava inteiramente. Estava envolvido, mas sabia que ia acabar sempre por funcionar. Sendo eu a fazer com o João Paulo ao meu lado, demorei muito mais porque não tinha todo o tempo do mundo para estar a escolher as colagens que iam fazer parte da capa. Estava a fazer muitas outras coisas ao mesmo tempo, e é horrível fazer isto à noite. Foi mais complicado desta vez, mas quando chegámos a esta capa foi unânime.

No fundo, uma capa acaba por ser a condensação de um conceito. Aquelas linhas com aquelas cores… o que é que tu estás a tentar transmitir? Se tu acreditas que uma capa tem que dizer algo sobre o disco que está a embrulhar, o que é que sentes que aquela capa está a transmitir? Qual é a mensagem que existe ali inscrita?

Para já, o nome que dá título ao álbum, Private Reasons, eu queria uma ligação directa com o facto destas senhoras estarem de costas. Não se mostram. Portanto estão na sua privacidade, por assim dizer. Cria uma certa ligação com o título. Elas estão a olhar para algo que tu vês, mas não vês a perspectiva delas. Estas cores fazem pandã com as cores do título e do meu nome. É essa a ligação que existe na capa. É o facto de tu não veres a cara e estão a olhar para um conjunto de cores que tu também vês mas não é da perspectiva delas. E, portanto, acaba por ser privado para elas. E há outras muitas ligações como o facto de haver aqui um papagaio que nos leva para o tropicalismo, e que já existia nos discos anteriores. Este conjunto de cores de alguma forma ilustram as cores que fazem parte do disco. E este conjunto de cores podia nos remeter para um ambiente 70s que eu acho que o disco tem a partir de certa altura.

Era exactamente aí que eu queria chegar. Há uma linguagem gráfica que nos remete para uma época que eu acredito que está muito representada na música do disco. 

Sim sim. 

Vamos falar desse processo: nós fomos falando disto pontualmente ao longo dos últimos dois ou três anos, quando chegou o momento em que tu disseste, “ok, está na hora de gravar um disco novo, está na hora de trabalhar neste novo projecto”, que conjunto de coordenadas é que foste buscar? E, antes de responderes, quero apenas meter uma imagem na tua cabeça. Eu já vi várias vezes em documentários/filmes/séries o escritor que quando está a abordar um novo romance e está embrenhado no seu processo criativo normalmente na parede expõe uma série de post-its com dicas sobre as personagens e o enredo que o seu livro vai tomar e vai usando essa rede de ideias como uma espécie de mapa para construir a história que nos quer apresentar com um texto. Tu quando partiste para este disco tinhas esse conjunto de post-its, nem que fosse na tua imaginação?

Tinha tinha. Por acaso eu estou num iMac, mas se estivesse num portátil virava o ecrã e tu vias [risos] os restos das folhas que ficaram desse processo porque a maior parte eu mando para o lixo. Mas sim. Reconheço-me nesse processo desse escritor. 

Então fala-nos sobre isso: o que é que tu tomaste como pontos de partida para esta nova aventura?

Houve alguns, mas foram maioritariamente decisões técnicas, por assim dizer. Ou seja, eu sabia que ia usar um quarteto ou um quinteto de cordas, algo que eu não fiz nos outros discos. Já trabalhei muitas vezes com quartetos de cordas para encomendas de outras pessoas, num âmbito de encomendas de dança, cinema. Às vezes tocámos ao vivo durante as récitas e portanto já estava familiarizado com o quarteto e a escrita para isso. É algo que eu tenho vindo a fazer, mas sempre no escuro porque maior parte das pessoas não tem acesso a essas composições, sendo que o ano passado, em Junho, a Sony lançou uma banda sonora de um filme que eu fiz, que se chama Patrick, a primeira longa-metragem do Gonçalo Waddington. E a maior parte da música é um quinteto de cordas que a toca. Portanto, isso foi logo um ponto de partida, que eu iria usar cordas no disco, e sabia que havia quatro ou cinco temas que eu queria que estivessem incluídos no disco.

O Solina String Ensemble deixou de ser suficiente?

Não, eu misturo os dois. Olha, há uns tempos tive um convite de um aluno de produção da Berklee College of Music para falar… inicialmente ele queria falar com a Sevdaliza e depois com o Caribou e os managers deles não responderam, mas eu respondi [risos]. Eu acabei por ser a opção mais viável para esse rapaz da Califórnia que está em Boston [a estudar] e fizemos uma entrevista, que ele depois mais tarde mostrou aos professores e aos colegas. Ele reparou num apontamento que eu ainda não me tinha percebido. Ou que ainda não me tinha consciencializado disso. Que é o facto deste disco ser uma estreia em muitas coisas. Ele diz, “there’s a lot of first times“. Foi a expressão dele. Ele tem razão. É a primeira vez que se usa quarteto de cordas, é a primeira vez que se usa efeitos parecidos com o auto-tune, é a primeira vez que eu manipulei vozes de samples de outras músicas minhas — usei as mesmas vozes e manipulei-as. Primeira vez que há várias línguas no disco: temos alemão, coreano, inglês e uma língua que nós inventámos para um tema afrobeat inspirado nas cassetes dos anos 80 da África do Sul. Muitas estreias neste disco. E isso vai de encontro àquilo que estavas a perguntar, no fundo, mas que é uma miscelânea de coisas.

Portanto, eu imagino que nos tais post-its que tu foste colando aí no ecrã do teu computador incluem-se coisas como “quarteto de cordas”, “vamos inventar línguas”, “vamos experimentar coisas novas”. 

Isso tinha de certeza.

Este é o disco em que mais te desafiaste, mostrando ser um artista multifacetado — compositor, arranjador, músico, intérprete…?

Acho que é um começo para começar a ir cada vez mais longe. É difícil, eu acho que acabei por direccionar-me para zonas lamacentas em que não era um terreno completamente seguro [para mim]. Como nalguns elementos de r&b no “Little Season”. E o uso de vozes fora da mistura alteradas. Coisas assim que para mim na verdade até são bastante contemporâneas. Embora eu ouça r&b desde sempre — o r&b antigo –, acabei por me aventurar em caminhos em que ainda não me tinha aventurado. Mais uso de sintetizadores. Peças que misturam diferentes ideias, como o “Step Out of the Light” — podia ser uma peça contemporânea para orquestra e depois desagua naqueles universos das bandas sonoras italianas do Piero Piccioni, do Vittorio Paltrinieri, do Bruno Nicolai, do Alessandro Alessandroni. E, portanto, nesse sentido, sim, foi uma aventura. E foi o disco em que comecei a procurar caminhos não antes percorridos. 

Quantos “chapéus” usaste neste disco? Eu consigo identificar vários. E não li a ficha técnica, só ouvi a música. Mas para lá de músico, compositor, arranjador, és também produtor, não é? Como é que tu geres essas diferentes nuances do teu trabalho? Algumas colidem com outras, não é? O produtor pode exigir de ti, o músico, algo mais que tu não estás a dar. Ou o arranjador pode ter uma ideia expansiva que o produtor diz, “espera aí, não temos dinheiro para isso”. Como é que a coisa funciona?

A ideia de ter um produtor ao meu lado a trabalhar comigo é algo que me interessa sempre bastante. O que acontece aqui é que, por exemplo, para me dizerem, “olha, não faças músicas de 10 minutos, faz mais pequeninas” [risos]… acho bastante positivo esse tipo de processo, mas no meu caso é impossível porque quando as músicas começam a ser criadas não demoro muito tempo a decidir qual é o som que eu quero nos instrumentos, qual é a sonoridade, como é que eu quero ouvir os sons. A parte mais difícil do processo é quando é a mistura e eu tenho que passar essa informação ao misturador de como é que quero ouvir os sons. Esse é o processo mais longo e mais penoso. O processo de gravação e os sons que quero ouvir… eu tenho isso sob controlo porque quando vou para o estúdio tenho a pré-produção bem estabelecida, os arranjos definidos — passo os arranjos antecipadamente –, mas não sou a melhor pessoa para dirigir os quartetos e quintetos de cordas. Normalmente para os trabalhos de cinema eu contrato um maestro. Todas essas frentes acabam por se encontrar de uma forma saudável. E desta vez foi muito fixe porque o engenheiro de som foi diferente, não foi a pessoa com quem costumo trabalhar. Este engenheiro de som que trabalhou comigo chama-se Moritz Kerschbaumer, é austríaco, morou em Londres durante muitos anos, trabalhou lá enquanto engenheiro para todo o tipo de eventos e é uma pessoa que é muito paciente, muito dedicada e muito apaixonada pelo material e por estar no estúdio. Ele não tinha pressa. E é óptimo estares a trabalhar num estúdio com uma pessoa durante um mês e meio [nessas condições]. Essa sua disponibilidade deu-nos imenso tempo e relaxamento para podermos trabalhar como queríamos. Nós gravámos muita coisa no estúdio que não foi usada. Se estivesses a trabalhar nisto num contexto comercial, não era assim. É on the clock

E tu gravaste onde? 

Gravámos em vários sítios. Estávamos na pandemia e o que aconteceu foi que havia pessoas que não queriam estar no estúdio, mas depois acabaram por estar porque coincidiu com o início do primeiro desconfinamento. O que significa que era tudo muito recente e as pessoas estavam, “ok, mas agora vamos 10 pessoas para um estúdio tocar ao mesmo tempo e respirar o mesmo ar?” E eu disse, “sim” [risos]. Então gravámos no 15A, mas também na garagem do baterista e no Timbuktu — as cordas e o piano — que tem um muito bom lá. E o resto dos instrumentos gravei neste sítio que estás a ver. 

Olha, ainda recentemente entrevistei o Damon Locks e ele dizia-me, “sabes, gravar durante a pandemia apresentou um desafio porque a minha música vive da respiração”. Ele tem um coro. “A minha música vive de haver pessoas que estão a partilhar um espaço-comum e a respirar umas para cima das outras, e isso é um desafio. A solução encontrada para contornarmos isso foi irmos para o jardim do estúdio gravar lá, só que o aconteceu foi que as cigarras passaram a fazer parte das composições”. 

Óptimo. Eu adoro isso. É assim, no início o pessoal estava meio desconfiado, mas o que aconteceu foi que as pessoas foram fazendo testes e nós não tivemos máscara no estúdio, estivemos todos à vontade. Isso não aconteceu porque as pessoas estavam sempre a fazer testes. Mas esses sons… eu adoro esses sons. Eu não tenho qualquer necessidade de estar num mega estúdio a gravar neste momento.

Conta-me uma coisa: há alguma música neste disco que tu tenhas escrito com o propósito principal de incluir no teu arranjo um determinado instrumento ou som?

Sim, claro. Isso aconteceu em todas, na verdade. Não há nenhuma música em que isso não tenha acontecido. 

Mas uma coisa muito específica…

Vou dar-te um exemplo de um efeito e de um arranjo de instrumentação. Queria usar a voz processada numa canção, que é a “Fuzzy Soul”. Sou eu a cantar através de um processamento digital. E isso tinha a certeza que queria que fosse assim. Depois, no “Little Season 1”, sabia que era uma música r&b meio moderna meio antiga e que queria ter um arranjo de cordas um bocadinho composto à imagem daqueles discos de soul de Filadélfia. Sendo que no meu caso usei menos uníssonos, mas esse tipo de arranjos de cordas soul que fazem ali uma cama para apoiar a melodia das vozes. E sabia que a música tinha que ter esse arranjo e era assim que ia funcionar. Depois quando ouvi a primeira gravação, a primeira rough mix, fiquei em pânico porque estava um caos. Foi um grande desafio juntar estes sintetizadores todos com as cordas. Às tantas funcionava só com os sintetizadores e funcionava só com as cordas e só com piano e tive que decidir qual das… se fosse só com piano e com as cordas ficava mais clássico, não é? É mais naquela onda de discos soul antigos. Se fosse desta forma, ia ficar uma grande confusão. E foi o que ficou, mas acabei por me habituar ao resultado.

Olha, qual é o melhor ano para ouvir este disco? É mesmo 2021 ou tu achas que alguém iria captar melhor a essência se o estivesse a escutar em 1986 ou 1974 ou 1969? Qual é que tu achas que seria a situação temporal ideal para se perceber o teu novo álbum?

2020. [Risos]

[Risos]. 2021 não, mas 2020. Isso é um preciosismo. Explica.

Tem a ver com o processo. O disco poderia ter sido gravado em Abril. E depois não foi e a minha ideia era que o disco fosse lançado em 2020. Fazia sentido ter saído no término do ano. Ia fazer um ano. O disco começou a ser feito em Setembro de 2019, em Setembro de 2020 era o resultado final desse ano de trabalho e era o número par. 

O vinte vinte era uma coisa que te agradava.

Agradava-me, sim. Esse paralelismo agradava-me porque os discos saíram sempre em anos com números par. Não que eu seja muito OCD porque não sou. 

Mas posso ajudar nisso, acho eu. Podes sempe pensar que é um disco editado no ano 21 do século XXI. 

Olha, boa. [Risos]

Vamos falar da estética, que era o ponto que eu queria alcançar nesta conversa. Eu acho que é o teu disco mais pop de sempre, mas acho que é importante debatermos o que é que é isto de pop na cabeça de Bruno Pernadas. 

Também acho que sim. Acho que o disco se divide em duas facetas, na verdade: tem uma faceta pop e tem uma faceta instrumental próxima da música exótica como no caso do “Recife”; o “Step Out of the Light” podia ser uma peça contemporânea como referi há bocado, mas a faceta pop está bastante acentuada. 

E de onde é que vem essa faceta pop? De um estudo atento dos Beach Boys?

Nem é preciso ir tão longe — mas toda a música do Brian Wilson esteve sempre presente na minha vida. Não sei, eu acho que tem um lado assim mais r&b, na verdade. Tirando aqueles temas de indie rock como o “Family Vows” e o “Theme Vision”, o primeiro single. Na verdade, o “Theme Vision” não espelha muito bem o álbum. Foi uma decisão difícil, mas pronto: teve que se decidir ser esse tema. Mas essa característica da pop surgiu e é um disco com muita letra e com muitas melodias cantadas — a primeira parte. Estamos a falar de um disco de 74 minutos, que já não é muito comum. As pessoas fazem álbuns de 40 minutos ou nem sequer fazem álbuns, fazem só canções. É mais uma obra. Uma obra que reúne essas duas facetas da pop e da música instrumental. Tem menos improvisação que os outros — vou deixar isso para outro projecto. 

Há essa ideia de que é uma coisa muito escrita, muito planeada e há bocado quando eu te falava do grafismo da capa do álbum, que é uma coisa de linhas muito direitas, quase que tem ali uma componente matemática no arranjo gráfico, e eu sinto que isso também existe na música no sentido em que tudo soa muito ponderado. Muito pensado.

Sim. Eu concordo que o resultado auditivo seja esse, mas o processo não é. O processo não é uma coisa muito pensada, é bastante improvisada. Ou seja, todas as melodias, todos os instrumentos que entram… por exemplo, a maior parte dos instrumentos dos temas “Family Vows”, “Little Season”, o solo da guitarra do “Theme Vision” parece um sintetizador de música psicadélica indiana… todos esses elementos foram improvisados. Esses takes que ficaram são os primeiros que fiz em casa e depois fizemos reamp no estúdio. É uma cena estranha porque há um amplificador a emitir o som sozinho e a ser gravado, estás a perceber? Então, nesse contexto, a música é bastante improvisada. Noutros discos passados tentei recriar com melhor som no estúdio as coisas que tinha gravado em demos e nalguns casos funcionou, mas na maior parte não. Neste nem ponderei. Foi tipo, “está bom, foi assim que saiu, ficou bem tocado, é este”. Não regravei. Ficou. Nesse sentido, há muita improvisação. Nos arranjos não. Os arranjos são pensados, escritos e muitos deles demoraram muito tempo a fazer. Por exemplo, o “Little Season II”, que é um tema de dois minutos que dá continuidade ao “Little Season I”, que é um arranjo de cordas com flauta e fliscorne, eu demorei muito tempo até concluir esse arranjo. Muito tempo. Dos arranjos que mais tempo demorei a fazer na vida. 

Porquê?

Porque cada vez que ouvia sentia que faltava um elemento ou faltava uma cor em determinado acorde ou que já estava a ficar muito longo, já se estava a tornar uma composição grande e eu não queria, queria que fosse um apontamento mais curto, e demorei muito tempo. Fui fazendo muito espaçadamente enquanto fazia as outras coisas porque como as cordas foram a última coisa a gravar eu sabia que tinha alguma janela temporal. 

Quando se conversa, como eu tenho feito com alguma regularidade nos últimos tempos, com músicos de jazz é normal ouvi-los falar em estudarem modelos, nomeadamente ao nível da construção da ideia dos solos, etc. Pergunto-te a ti: que modelos enquanto arranjadores é que tu elegeste e estudaste com algum afinco? Já me mencionaste aí uma série de mestres italianos. Quem é que te inspira nesse plano? 

Depende dos instrumentos. Depende para que instrumentos estou a escrever porque eu tenho referências diferentes para cada grupo de instrumentos. Por exemplo, no caso das cordas para este disco em particular, não para as outras coisas que eu fiz para cinema, eu vou sempre ouvir aqueles arranjos de cordas que eu gosto, que de alguma forma têm referências destas que aparecem aqui no disco e [vou] perceber como é que eles constroem os arranjos. Por exemplo, aprendi com o Les Baxter um truque que ele usa em vários arranjos que tem a ver com o distanciamento das vozes. Descobri recentemente algo que normalmente as pessoas evitam, que são os uníssonos nas cordas. Os arranjadores evitam. Pode ter um ou outro momento em que estão todos em uníssono mas é algo que as pessoas evitam. E eu descobri que adoro isso. Comecei a adorar ouvir os uníssonos de cordas. É assim, aquela música indiana de Bollywood usa e abusa dos uníssonos. Imagina que tinhas uma orquestra ao teu dispor, se tivesses 20 minutos de música escrita em uníssono ias começar a receber alguns olhares. 

“Para que é que tens um recurso destes se não usas as nuances”.

Sim. Mas uma coisa é fazer uníssonos porque não se sabe fazer arranjos, outra coisa é fazer uníssonos propositadamente e tirar partido disso. E no passado (NR: 2016) saiu um disco do Nels Cline que se chama Lovers, que é com o irmão dele a tocar bateria e um ensemble a tocar e é um disco muito bonito. São só músicas de amor, sendo que não são todas de jazz. Então eles tocam uma música dos Sonic Youth, acho que é do A Thousand Leaves, e às tantas nesse arranjo ficam todos uníssono a tocar a melodia que o Thurston Moore canta… pá, o efeito é brutal. E é algo que eu no futuro vou investir. Nesses uníssonos. 

Estavas a mencionar Bollywood como uma inspiração para esses uníssonos, mas o afrobeat também funciona aí. 

Sim.

Aqueles metais a debitarem as mesmas frases em uníssono dão assim uma grande pulsão às músicas. 

Claro. E a orquestra do Sun Ra usa montes de uníssonos. Eu cada vez gosto mais. Mas ainda não usei essa nova descoberta neste disco. Este ainda foi baseado em coisas que me eram próximas. 

Desculpa porque te cortei o raciocínio. Falavas das referências para os arranjos. 

Para as cordas o Les Baxter foi sempre das maiores inspirações. No caso do “Little Season”, que era uma música mais soul, eu ouvi vários arranjos de cordas de música soul e r&b antiga. Neste caso acho que foi uma mistura entre essa capacidade de harmonização, de distribuir várias vozes por vários instrumentos, e alguns uníssonos. Na parte final da música há um uníssono e, para mim, é sempre um momento mais mágico até do que os outros. No caso dos sopros é sempre uma mistura. É um processo estranho porque no início quando se faz arranjos de sopros nós baseamo-nos — pelo menos no meu caso — nas aulas que tive de arranjos para big band e todos os recursos que existem. Não é que esteja presos a esses recursos, mas é uma técnica que te ajuda imenso. Só que depois à medida que vamos ficando mais velhos e vamos expandido mais os nossos horizontes começas a pôr isso tudo um bocadinho de parte, entendes? Já é quase só ouvido. O resto das outras coisas estão interiorizadas já. Eu sei como é que os instrumentos vão soar… mas já é um bocadinho tudo mais livre, já não há tanto o cálculo da pauta, de ver…

Eu ia-te perguntar se essa ideia do “mais velho” podia ser substituída por “mais livre”, “mais desprendido”. E é disso que tu estás a falar, não é?

Sim, mais desprendido. Não tenho qualquer attachment com recursos… é assim, os recursos antigos — e eu não domino, atenção, as pessoas que trabalham nisto o tempo inteiro é que dominam — funcionam sempre, mas há elementos que se vão transformando. Por exemplo, o Duke Ellington foi dos primeiros a passar a voz do barítono que normalmente estaria num registo mega grave para um registo médio. Em vez do barítono estar em baixo a dar as notas mais graves e o resto dos sopros continuarem a sua verticalidade, [ele] fazia um drop e os efeitos são bestiais. E isso foi feito nos anos 50/60. Por isso há sempre coisas que se estão a descobrir nesse ramo. Mas o que eu quero dizer é mesmo liberdade de largar… não é de largar o academismo porque depois de tantos anos dentro do meio académico há coisas das quais não se pode fugir, mas é quebrar um bocadinho algumas regras. Do género, “soa bem, não quero saber o que está a acontecer”. 

Em registos anteriores, neste cumprimento de onda, não falando dos teus projectos mais voltados para o jazz, tu andaste a fazer concertos com 10/11/12 músicos em palco. Como é que vai ser no caso deste trabalho?

Isso é uma boa pergunta e vou-te confessar uma coisa que é o seguinte: eu durante anos lutei para que o público tivesse a ouvir a música a ser tocada no palco porque venho desse passado. No sentido em que quando tocava rock e era adolescente, o que as pessoas estavam a ouvir no PA era o que nós estávamos a tocar. Depois, quando comecei este projecto a solo, havia uma frase que precisava de um sintetizador, eu metia-o no palco e íamos tocá-lo. Se a frase fosse muito difícil, pensava, “o Zappa fazia, eu também consigo fazer” [risos]. Obviamente que não é bem assim, nem nunca vai ser, mas pronto.

Mas o Zappa ia buscar o George Duke e pronto, olha…

Descobri recentemente que é ele quem canta no “Inca Roads”. Ele não era cantor, mas o Zappa insistiu tanto que ele acabou por ceder. 

Isto para dizer que tive sempre esse cuidado durante muitos anos e as pessoas diziam, “mas como assim uma banda…” Lembro-me do artigo da Pitchfork sobre o Primavera Sound e o jornalista escrevia “eight (eight!) people” com o ponto de exclamação e eu pensei, “mas qual é que é o teu problema?” Estava a pensar nisso dessa forma, lutei durante muitos anos para ter, a um custo grande, porque o que acontece é quando tens uma banda de nove elementos tu vais tocar metade dos concertos que poderias tocar com uma banda mais pequena. Lutei, lutei, lutei e a minha luta foi um bocadinho em vão porque hoje em dia não faz qualquer diferença para o público. Não faz diferença. E cada vez menos. Já se começa a ver coisas do género: um anúncio de um artista que vai tocar num festival no lineup e diz “with band”. No rock isso não acontece porque as pessoas continuam a tocar. Se eu tivesse disparado mais sons (pré-gravados) tinha feito mais concertos. Mas lutei sempre um bocado contra isso porque não fazia sentido para mim, em palco queria que a música soasse o mais visceral e orgânica possível. Então, isto para dizer que neste disco vou voltar a tocar com o mesmo número de pessoas [risos]. Não desisti [risos]. Embora saiba que não faça diferença para o público, mas faz para mim. E abriu-se uma janela que é o seguinte. Provavelmente toco mais depressa na Califórnia ou em Portland, Oregon, do que toco em Paris, ok? Porque é lá que a minha música é consumida. Está em segundo lugar a seguir a Portugal. Estou aberto a tocar com uma banda de cinco elementos, agora como é que vou fazer isso? Não sei. Mas está na mesa neste momento. Mas para este disco o que temos contemplado é: não só vamos ser 9 como vamos ser 10 porque a Minji Kim, que canta na música em coreano no disco e também canta o “Brio 81”, vai connosco em tour. E vamos ter um técnico de luz. Portanto, em vez de diminuir, a comitiva aumentou [risos]. 

Neste momento as datas da Culturgest são a chave para a apresentação deste projecto. Já começaste ensaios? Como é que a coisa está a funcionar a esse nível?

Não, ainda não comecei a ensaiar, mas vamos começar muito em breve porque já falta pouco tempo. 

É um bocado loucura pensar nesta altura tão particular da história da música e da humanidade levar essa gente toda para palco e estar a pensar em fazer ensaios, etc. Isso mói-te a cabeça ou não? Consegues dormir?

Eu consigo, o problema não é esse. Agora temos um problema aqui: se uma pessoa tem febre no dia do concerto, o que é que se faz? Há concerto? Não há? Vamos ter que fazer um teste rápido ao COVID-19? Não sei, é difícil. 

Mas há outras questões bem mais práticas e dramáticas nesta altura. Tu estás habituado a fazer concertos e a irem todos numa carrinha, a partilharem todos um camarim. Esse tipo de questões de como era antes e de como será agora tem-te assaltado o pensamento?

É chato. Não tem assaltado porque o último concerto com a minha banda foi em Julho de 2020 e isso já aconteceu um bocadinho. Foi no Teatro São Luiz, em Lisboa, os camarins foram partilhados. Tens de estar sempre de máscara. Mas o último concerto que dei ao vivo foi em Setembro com um quarteto de jazz na Praça da Alegria pela Câmara Municipal de Lisboa… sei que colegas meus andaram em tour e é muito chato porque é isso que estavas a mencionar. Há uma menor sensação comunitária de banda na estrada e acho que isso afecta. Mas as pessoas preferem estar a tocar nessas condições do que não tocar.

Olha, nós há anos que vamos brincando quando falamos sobre o teu disco de hip hop. Toda esta questão que dificulta a acção de ensembles mais dilatados, como é o caso do teu, não te fez pensar, “se calhar está na altura de fazer o meu disco de beats sozinho e ir para o palco com um laptop“. 

[Risos] Não. Para o palco sozinho, não. Em 2014 fez uma mini-tour sozinho com algumas máquinas, alguns aparelhos electrónicos, guitarra e samples e não gostava da experiência porque sentia que tinha que estar sempre a tocar. Prefiro tocar em trio do que tocar sozinho. 

Mas vamos algum dia ouvir esse disco de hip hop ou não?

Eu acho que sim, mas não sozinho. Eu acho que vamos ouvir quando eu fizer uma parceria com um MC que admiro. 

E já tens esse nome na cabeça? Olhando para o panorama português, com quem é que tu entravas em estúdio já amanhã se pudesse ser?

Há muitos. Mas posso generalizar e dizer que de certeza que seria alguém da geração mais nova. Embora… eu adoro a voz do Chullage. E os concertos que mais mexeram comigo foram sempre os do [Allen] Halloween. Acho que aquilo é de um poder… ver o Halloween ao vivo é uma experiência avassaladora. Mas não me imagino a fazer um disco com ele. Acho que se calhar não fazia sentido juntar os mundos. Mas tenha ouvido muitos novos rappers e acho que a trabalhar no futuro seria com alguém da geração mais nova. 


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