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Fotografia: Diana Mendes
Publicado a: 27/02/2024

O concerto em Lisboa marca o arranque de uma digressão comemorativa.

Bruno Pernadas a caminho da Culturgest no 10º aniversário do seu disco de estreia: “Eu criei um idioma, uma identidade”

Fotografia: Diana Mendes
Publicado a: 27/02/2024

How Can We be Joyful In a World Full of Knowledge?, o álbum de estreia de Bruno Pernadas, completa em 2024 dez voltas ao sol, pretexto mais do que apropriado para regressar ao palco com essa matéria prima que inaugurou uma das mais entusiasmantes carreiras nacionais da última década. Será já dia 1 de Março que Pernadas regressa a essa fundacional pergunta, How Can We Be Joyful in a World Full of Knowledge?, pois claro, oferecendo a resposta em cima do palco da Culturgest, momento que marca o arranque para uma digressão que passará ainda pela Covilhã, a 9 de Março no Teatro Municipal, por Ovar, a 15 de março no Centro de Arte, e por Braga, a 20 de Abril no Theatro Circo.

Sobre o álbum, escrevi a dada altura:

How Can We Be Joyful… é provavelmente o mais ambicioso e corajoso lançamento do ano em território nacional. A ambição vem do largo espectro de coordenadas abraçadas por Bruno Pernadas — arranjador, compositor e guitarrista de serviço neste trabalho. À frente de um ensemble dilatado que funciona como uma espécie de ‘Pataca Discos All Stars’, Pernadas viaja por África e pela América Latina de Esquivel, mergulha no oceano Pacífico da Exótica, passa algum tempo nos laboratórios da bachelor pad music re-imaginada pelos Stereolab e emerge do lado de lá com um disco sofisticado, imaginado não em função do que poderia ser a sua vida em cima de palco — embora fique o registo de uma triunfal apresentação no Maria Matos — mas de uma vontade puramente exploratória. Para cobrir tão complexos terrenos estéticos é preciso ambição. E num momento em que fazer discos significa quase sempre arranjar pretextos para tocar isso é um ato de coragem.”

Agora, um tipo que não é muito de olhar para o retrovisor propõe-se revisitar esse big bang pessoal com alguns dos mesmos músicos com que o gravou e tocou, com outros que são elementos novos, sem muitos dos instrumentos originais, que entretanto já ganharam outros donos, mas com uma visão ainda mais refinada de uma música que continua a ter muitas músicas dentro. É o regresso de um autêntico laboratório estéreo em que foram criadas fórmulas que ainda hoje resistem dentro da nossa cabeça.



Vêm aí os 10 anos de celebração do teu primeiro registo em nome próprio. Mas eu reparei que, através das fotos que chegaram com o press release, que tu congeminaste uma banda diferente para esta celebração, não é?

A banda que está na foto promocional é a banda que vai fazer o concerto. Algumas das pessoas que fizeram o concerto de estreia já têm outras vidas e fazem outras coisas. Esta vai ser a banda que vai fazer o concerto, com as pessoas que estão na foto.

A Jéssica Pina é quem mais salta à vista entre as novidades.

Ela já tem tocado connosco, na verdade. Já faz alguns concertos connosco desde 2017 ou 2018. Basicamente, o Diogo Duque é um membro efectivo, que toca trompete, flauta e percussões. Quando ele não podia ir a algum concerto, ia a Jéssica. O Duque foi para o Rio de Janeiro ontem, então a Jéssica é agora, oficialmente, a trompetista da banda. Vão surgir outros concertos fora da celebração dos 10 anos, noutros contextos, e vai ser ela a tocar.

O que é que tu achas que estes 10 anos fizeram a este disco? Como é que sentes esta música hoje, uma década depois? Quando leio textos meus antigos, há vezes em que coro, outras fico surpreendido… Tipo: “Uau! Eu já estava a pensar assim naquela altura?”

Percebo, percebo. E concordo contigo. Há coisas dessas. Reflexões desse género. “Eu já estava a pensar naquilo naquela altura?” ou “jamais faria isto hoje em dia” [risos]. Eu continuo a gostar muito da música que está no disco, acho que foi um momento em que houve muita luz na composição. Mas não foi escrito de imediato, demorou um bocadinho. Mas depois, o tema “Guitarras”, por exemplo, acho um bocado… No disco faz sentido essas músicas estarem lá. O “Première” também é uma música que eu não… Vai-me custar um bocadinho tocar ao vivo.

Então?

Aquela parte enquanto a voz não passa. Depois quando chega à improvisção, em sol maior, sem mudar de tom, tudo bem, já gosto. Agora aquela primeira parte, já não me identifico muito com ela. Mas genericamente, continuo a indentificar-me muito com o disco. Foi feito sem esforço. Nada ali foi feito com muito esforço. Obviamente que foi aplicada técnica, conhecimento e etc., mas o processo foi sem pressão nenhuma. Demorei dois anos a fazer o disco. O que faz 10 anos é a edição, mas eu em 2012 já estava a começar a gravar o disco.

Voltar a um disco destes para o levar novamente para o palco implica uma reaprendizagem?

Sim. Mas eu também vou acabar por fazer alguns arranjos novos, algumas secções diferentes de improvisação sem mexer na ordem. A ordem do disco é a mesma do que a do concerto.

Então vai ser uma espécie de reescrita da história?

Sim. Mas nada que seja muito notório. Quer dizer, vai ser notório, mas sem alterar a estrutura das músicas. Ou vai? Se calhar vai. Não sei [risos]. Altera. Mas quem gosta vai perceber que são as mesmas músicas que estão a acontecer.

Passando aos detalhes de coloração dos arranjos, tomas decisões do género: “O som do teclado nesta música já não faz sentido e temos de ir à procura de uma coisa nova”?

É mais: “Quem me dera ter esse teclado e muitos dos instrumentos com que gravei este disco” [risos]. Muitos deles já nem existem, porque eram do Mário (Feliciano) e ele vendeu-os. Na instrumentação, há algum equipamento que usámos para o último disco e que, julgo eu, quase todo deve funcionar. Na altura, havia uma maior urgência em representar o disco na sua essência, então eu levava mesmo os instrumentos todos. Havia uma música que tinha vibrafone, então eu levava vibrafone. Outra tinha um órgão tipo Hammond, só que era Farfisa, então eu levava o Farfisa. À medida que o tempo foi passando, logisticamente começou a ficar impossível e adaptámos. Agora raramente toco teclados, mas acho que aqui vou tocar.

Há-de haver um Nord ou um sampler que substitua esses teclados todos, não?

Eu prefiro não usar um Nordlead, mas já aconteceu algumas vezes.

Tu acreditas na intemporalidade da música? O disco vai fazer 10 anos e tu até me disseste que o começaste a compor dois anos antes. A música não é como os iogurtes, pois não? [Risos]

A tampinha não levanta? [Risos]

Exactamente [risos].

Eu acho que levanta. Acho que dá para perceber que não é um disco dos anos 50, por exemplo. Quando as pessoas usam o termo “intemporal”… A década, se calhar, é difícil de perceber. Podia ser dos anos 90 ou… Se calhar, até nem é assim tão difícil, na verdade, por causa do som — percebe-se que é deste século.

Certo. Mas o que eu te estou a tentar perguntar é: ela faz sentido em 2024, não faz? Tal como fará em 2034.

Faz sim.

Nesse sentido, o prazo não passa.

Não, não.

E o que é que sobrevive? É a parte dos arranjos, a melodia?

Acho que é tudo. Até o conceito, de não ter paragem. Enquanto andava à procura do teu texto, que na altura escreveste sobre o concerto, encontrei outro, que foi uma sinopse que eu fiz para o Teatro Maria Matos, em que eu explicava como é que o concerto ia acontecer na altura. Dizia que não se tratava de várias músicas juntas, mas de uma peça sonora gigante.

Uma suite?

Uma suite, com momentos que tanto passam pela música improvisada, como pelo jazz, pelo rock, vários estilos. O concerto era construído dessa forma. E eu acho que continua a ser isso. Sendo que agora… Na altura o concerto estava muito tight, muito preso, e as pessoas estavam a olhar para as folhas, as pautas, toda a gente muito contida. Eu tenho parte da filmagem do primeiro concerto e eu quando o vejo noto que está tudo muito controlado, muito académico. Hoje em dia é impossível tocar assim. Nós já não tocamos assim, já não usamos pautas no palco. Quer dizer, os sopros não decoram. Mas há uma maior exploração e cada vez vai haver mais no que diz respeito aos discos e à música que eu farei ao vivo.

Fará algum sentido registar isto para uma edição como álbum ao vivo?

Acho que não. Eu não gosto de álbuns ao vivo. Tirando os de jazz.

E porquê?

Jazz e música clássica, sim. Agora discos ao vivo de rock, pop, hip hop… Soam mal. São discos que são feitos para estúdio.

Mas eu lembro-me de ter saído desse concerto ultra-entusiasmado e a achar que aquilo tinha sido uma coisa absolutamente incrível.

E foi. Porque os olhos também ouvem. Mas só ouvindo… Quer dizer: se calhar, para o público em geral até tinha interesse, mas para mim não tem qualquer interesse.

Por falar nisso: se bem me lembro, era um espectáculo visualmente cuidado, do ponto-de-vista cénico e até de desenho de luzes e etc.. Vais ter esse cuidado nesta revisitação dos 10 anos?

Sim. Vou ter. Não posso ainda revelar muito do que vai acontecer, mas posso dizer que não vai ter plantas, como teve na altura.

Nem de plástico?

Plástico? We’ll see [risos]. Mas terá uma componente cénica, sim. Na altura, a EGEAC e o Jardim Botânico ajudaram-nos com as plantas e foi um autêntico pesadelo. Eu sei que, para as pessoas que estavam a ver, era um cenário lindíssimo. Mas eu, a Rita e o técnico de som, que era o Pedro Sá-Chaves, é que tivemos de tirar tudo da carrinha da câmara e pôr no palco. E uma pessoa do teatro ajudou. Não houve uma equipa a pôr lá aqueles vasos [risos].

Não havia uma equipa de roadies para isso [risos].

Havia, mas só para desmontar. É engraçado, porque o concerto já estava esgotado há algum tempo e as pessoas viam-me lá e perguntavam: “Mas és tu quem está a fazer isto?!” E eu: “Se quiseres ajudar…” [Risos]

E passados 10 anos, já tens um nome para esta música? Porque eu lembro-me que, na altura, havia aquela coisa toda de “o disco não é bem ‘isto’ nem é bem ‘aquilo’. Tem um bocadinho ‘daqui’ e um bocadinho ‘dali’.” Hoje já consegues designar esta música de uma forma mais assertiva?

Não. Acho que continua igual ao que falámos na altura. Há a referência da space age pop, que era a mais usada. É pop com algum jazz…

Exótica? Easy listening?

Acho que o Those Who Throw Objects At The Crocodiles Will Be Asked To Retrieve Them tem mais. Este tem mais folk… Não sei. É mais analógico. Não vou dizer que é mais puro, mas tem menos componentes electrónicas do que os outros. O meu último álbum, então, tem imensos, porque metade foi feito em casa, outra metade no estúdio, e então tem muita coisa digital. Tu, como crítico, o que é que dirias sobre o disco?

Epá… Tu sabes que um dos maiores elogios que eu costumo ler em relação a determinados artistas — vejo essa frase escrita em inglês muitas vezes — é que “aquele(a) artista é o seu próprio género musical.” Vejo-te muito como alguém que cruzou certas coordenadas de forma tão personalizada, ao ponto de mais ninguém conseguir fazer isto. Não sei se não escrevi já isto, mas acho que — e isto é raro na música portuguesa, muito sinceramente — dá para perceber quando é uma composição ou um arranjo teu imediatamente.

Sim. Ok. Eu criei um idioma, uma identidade.

Exactamente.

Eu acho que sim. Porque cruzei estas disciplinas, estas linguagens musicais. Às vezes há grupos assim, que mandam mensagem a dizer que encontram uma relação na música do lado italiano, que passou para os Stereolab. Há pessoas que acham que os Stereolab é que inventaram aquele género e estão completamente enganadas.

É tudo library music italiana, claro.

É muito parvo aqueles portugueses que acham que eu imito Stereolab. Porque se eu fosse imitar alguém, obviamente que seriam os originais, que eu adoro. Tal como também adoro os Stereolab, claro. Ouvia aquilo todos os dias quando era adolescente. Obviamente que vai estar dentro de mim e não há mal nenhum. Mas há muitas pessoas que não sabem de onde é que veio aquele som. Veio do krautrock com todos aqueles compositores italianos. O Alessandro Alessandroni…

Um dos meus favoritos...

Pois. E se fosse só esse lado, se calhar dava para encontrar um género. Mas depois tem um lado mais erudito, mais jazz… Os Stereolab não têm esses elementos tão jazzísticos. Até podem ter na harmonia, mas não tão descarado, acho eu.

E este é um caso clássico de dar um passo atrás antes de dar dois em frente? Como é que vai ser o resto de 2024? Há coisas novas no horizonte?

Em 2024 ainda se vão fazer alguns concertos a promover o Private Reasons, que foi o meu último álbum. Vai haver também haver uma tour para promover o How Can We Be Joyful In A World Full Of Knowledge?. Por isso, ainda não me quero comprometer com a data de lançamento de um novo álbum. E eu nem sei se vai ser um ou vão ser dois.

Já está gravado?

Estou a fazer e a gravar coisas. Há coisas que estão dentro de uma cena de jazz mais espiritual, se é que se possa dizer assim, e outras mais próximas da música de fusão brasileira dos anos 80, tipo Piry Reis. Está muito estranho. Eu não controlo. A coisa vai para ali e eu respeito [risos]. As outras, são mais dentro da onda daquele jazz feito nos anos 60, mais livre, mas não tão livre como The Art Ensemble of Chicago ou Ornette Coleman. Tipo aqueles discos em que tens uma vozes que aparecem, depois desaparecem, com momentos de improvisação longos…

E com uma cola de groove a ligar os elementos todos?

Tem a ver com aquela espiritualidade, aquela calma… É frenético, mas a harmonia que o suporta está ali, tipo os discos de Don Cherry ou Alice Coltrane. Tem muita coisa a acontecer, mas a base é assim, muito quentinha.


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