pub

Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 29/12/2023

Descentralizar a música brasileira.

Bruno Berle: “Existe muito mais além do eixo Rio de Janeiro – São Paulo”

Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 29/12/2023

Para Bruno Berle, não importa apenas promover a sua arte, nem tão pouco ela recorre única e exclusivamente à sua criatividade. Nascido e criado em Maceió, no estado de Alagoas, no Brasil, este cantautor quer provar que a música do seu país não se restringe ao que vai sendo feito nas principais cidades e que há muito mais a descobrir nos lugares mais remotos, como é o caso do município do nordeste de onde veio.

Após integrar a banda Troco Em Bala e ter colaborado com gente como Ana Frango Elétrico e Dora Morelenbaum, a sua música — um misto entre composições suas e de conterrâneos contemporâneos seus — chegou aos ouvidos da Far Out Recordings, uma editora londrina que mantém uma ligação umbilical com os sons do Brasil, por onde já passaram nomes como Marcos Valle, Azymuth, Milton Nascimento, Arthur Verocai ou, mais recentemente, Amaro Freitas. Foi através do selo britânico que No Reino Dos Afetos, aquele que Bruno considera ser o seu primeiro álbum, chegou à Europa, um LP que assenta numa estética de canção minimal e lo-fi, esculpido com a ajuda de batata boy na produção e ainda de alguns amigos que passaram pelo estúdio caseiro para acrescentar algumas camadas adicionais de instrumentação.

Editado em 2022, esse LP apenas nos chegou aos ouvidos no início do Outono deste ano através de uma abençoada sugestão feita pelo algoritmo do Spotify. No Reino Dos Afetos tem-se mantido em repeat até aos dias de hoje e, pelo meio, tivemos a feliz coincidência de apanhar o seu autor num concerto a solo em Lisboa, que decorreu na Valsa apenas com voz e guitarra acústica. Antes dessa intima actuação, sentámo-nos à conversa com Bruno Berle para uma entrevista, durante a qual o cantautor fala sobre os seus projectos e frisa a importância de escutar os artistas que vivem afastados dos principais polos culturais do Brasil.



Andei a pesquisar sobre o teu percurso e percebi que fizeste parte da banda Troco em Bala. A tua aventura na música começa aí ou já fazias coisas antes?

Já fazia. Eu sempre fui músico, desde que nasci. Aos 7 anos eu comecei a ser profissional, a cantar e a tocar, e desde aí fui fazendo coisas. Mas eu comecei a compor na banda. Essa foi a minha primeira experiência como compositor.

Vi também que foste trabalhando com alguns nomes da música contemporânea brasileira, como a Ana Frango Elétrico e creio que, também, com Bala Desejo.

Com Bala Desejo não exactamente. Eu sou mais amigo deles. Mas eu e a Dora Morelenbaum, a gente gravou um projecto juntos num festival chamado Carambola — a gente cantou canções um do outro, tocando juntos no palco e tal. Com a Ana foi uma experiência numa música que está no disco novo dela — eu fiz uma ponte entre ideias, uma ideia dela e a de uma amiga de Maceió, e meio que compuzemos a música juntos.

Já passaram 10 anos desde que te estreaste na composição de temas para Troco em Bala, mas só agora é que te estreias com um disco a solo. Foi algo muito ponderado da tua parte? É algo que surgiu de forma espontânea ou é uma ideia que já andavas a maturar há algum tempo?

Eu fui gravando um monte de coisas, um monte de trabalhos sozinho. Eu sempre gravei. E eu lancei um disco há 10 anos atrás que hoje em dia eu acho bem ruim. Não considero ele e aí retirei das plataformas e tal. Acho que esse álbum, No Reino Dos Afetos, ele é o primeiro, no sentido em que eu fiz ele do meu jeito, eu mesmo o produzi, assinei com um selo que tem um certo respeito, que me prensou o disco e fez uma divulgação interessante. É por isso que eu coloco esse trabalho como sendo o meu primeiro. Mas eu já vinha tentando de várias formas. Eu sempre busquei ter um contacto com um selo legal.

Esse selo é a Far Out Recordings, que apesar de ser britânico tem muitos artistas de renome da cena brasileira. Como é que surgiu a possibilidade de te juntares a essa editora e o que significa para ti teres agora o teu nome ao lado de tantas lendas da música do teu país?

Me sinto muito honrado. O selo é interessante, porque lançou e relançou muitos discos importantes para a música brasileira, dando uma força para esses artistas também, sabe? Isso fez com que esses artistas voltassem a tocar mais e tudo. É uma honra para mim. E aconteceu porque eu tenho um amigo, o grande percussionista alagoano Wilson Santos, que há mais de 10 anos atrás lançou um disco pela Far Out chamado Bantus e Caetés, como parte da Orquestra de Tambores de Alagoas. Ele estava para enviar para a Far Out um disco que esteve a produzir recentemente e sabia que eu também estava à procura de um selo para o meu álbum, que já estava pronto. Aí ele mostrou, o selo gostou e lançou. A ideia agora é a gente lançar o segundo, No Reino Dos Afetos 2. Tá sendo bem legal a parceria.

No Reino Dos Afetos soa a um disco muito honesto. Ele soa a algo caseiro e não tenta emular aquele som das grandes produções. A sua beleza está muito na sensibilidade, na simplicidade e nos detalhes. Eu quase que te imagino em casa a gravá-lo todo sozinho. É desta forma que ele nasce?

Foi um processo solitário. Tem várias músicas que fiz sozinho, mas eu também contei com a ajuda e produção do batata boy, um artista também de Maceió, Alagoas. Ele é um grande produtor e está produzindo várias outras coisas fodas de outros artistas de São Paulo, como o Castello Branco — o álbum novo do Castello Branco vai ser produzido por ele. Foi basicamente muito eu e ele, mas também aparece um artista ou outro, amigos lá de Maceió que apareceram pra colocar algumas coisas. Mas a produção mesmo sou eu e o batata boy.

Já tinhas as composições feitas ou mesmo essa parte da escrita foi feita por vezes ao lado do batata boy?

Tem uma composição que foi feita junto, a última faixa do disco. As que são com o batata boy, os beats são dele. Eu gravei algumas músicas minhas e outras que são de outros compositores, tipo o João Menezes, um compositor alagoano que é da minha geração, o Phylipe Araújo, compositor de Santa Cruz Do Capibaribe, Pernambuco… Eu estou sempre gravando, tocando e reproduzindo a música de alguns desses amigos.

No Reino Dos Afetos é assumidamente lo-fi e nota-se muito aquele granulado no som. Mas é uma estética lo-fi muito específica, que eu facilmente associo à cena de beats lo-fi do hip hop, embora a tua música não seja de todo hip hop. Ainda assim, esse é um género que tem algum tipo de influência naquilo que fazes? O hip hop faz parte da tua dieta musical?

Com certeza. O hip hop tem uma influência muito forte no meu trabalho, tanto nesse primeiro álbum como no que já está pronto para sair, o segundo. Eu gosto e escuto muito. Na primeira parte do álbum tem beats onde existe essa influência. Essas músicas foram feitas… Basicamente, a base do beat já estava pronta, aí eu fiz a voz em cima, improvisando com palavras, algo que tem muito a ver com a forma de fazer música hip hop. O hip hop é uma parada que eu gosto muito. A questão da sonoridade do meu disco… Quando a gente acaba gravando em equipamentos ruins, a gente tem de retirar muitas frequências, de limpar de mais. Aí a gente fica limpando muito, depois sujando mais um pouco. Foram os equipamentos da gente que só permitiram a gente chegar nesse lugar assim.

Eu li uma entrevista tua à Popload, em que dizias: “Faço a música brasileira do meu tempo.” E eu descobri a tua música precisamente por andar a escutar artistas brasileiros do presente e o algoritmo do Spotify me ter sugerido o No Reino Dos Afetos. Posso dizer-te que me têm passado pelos ouvidos Sessa, Negro Leo, Tagua Tagua, Bala Desejo, Ana Frango Elétrico… Posso juntar o teu nome a esta lista e já ficam 6 artistas brasileiros contemporâneos e todos eles com sonoridades muito distintas. Portanto, o que é que é isto da música brasileira do teu tempo? O que se está a passar actualmente na música brasileira é muito amplo, não é?

É. Mas eu acho que não quis dizer que faço uma música relacionada com os meus contemporâneos. É mais no sentido de que estamos neste momento do mundo e eu tenho de me relacionar com a música desse momento no mundo e como sendo brasileiro. É muito difícil a minha música sair… Vai ser muito difícil eu fazer algo que não tenha a música brasileira como influência. Mas eu não faço uma música inspirada no que se fez nos anos 70, como alguns artistas que você citou. Há uma influência fortíssima da tropicália e que se sente. Isso é uma coisa da qual eu me afasto. Eu acho que a tropicália não existe na minha música. E também não faço uma música totalmente moderna e tal. É uma mistura. Faço a música desse momento no mundo. Essa afirmação foi mais para fugir dos meus contemporâneos do que para me aliar a eles, entende?

Mas como é que olhas para o actual estado da música brasileira? Eu tenho assistido a vários casos de artistas que, como tu, ainda não são propriamente badalados no Brasil, mas que já têm vindo a conseguir trilhar carreiras internacionais com espectáculos principalmente no continente europeu.

Há essa coisa… No Brasil continua sendo difícil viver da música. Mas existe essa tendência, na Europa e nos Estados Unidos da América, de adoptar a música brasileira como sendo algo forte, tal como aconteceu nos anos 60 e 70. Sinto que os artistas estão aproveitando isso mesmo. Eles correm atrás. Investem para fazer acontecer aqui também. E sinto que aqui a gente é bem pago, é valorizado, então acaba sendo um lugar para a gente até fortalecer a nossa correria lá. A gente consegue os recursos aqui para levar para lá e continuar fazendo música. Eu fico feliz com esse florescimento da música brasileira fora do Brasil. Isso acaba por ir trazendo, também, um olhar das pessoas de fora para a gente. Infelizmente, o país tem esse vira-latismo cultural. Mas é o que é. A gente tem que olhar de uma forma prática para esse momento e aproveitar ele.

O que eu acho mais curioso é que até os artistas mais discretos acabam por ir conseguindo tocar em países onde a língua portuguesa nem tem expressão. Tu, por exemplo, antes de aterrares em Lisboa, andaste por Alemanha e Inglaterra. Como é que a tua música é recebida por lá?

Pois é. Eu sinto que as pessoas conhecem música brasileira nesses lugares. Pelo menos nos festivais em que eu fui. No festival de Munique, as pessoas conheciam música brasileira. Eu fui em um restaurante judaico e estava tocando toda a música brasileira clássica — João Donato, João Gilberto, Tom Jobim e até alguns artistas novos, também. Então esses povos conhecem. E agora, com esse florescimento da música fora do Brasil, com uma grande quantidade de música sendo feita, ficou um pouco difícil de brecar. E eu sinto que agora existe um movimento de selos ao redor do mundo que querem ter o seu artista brasileiro. Cada selo quer ter o seu.

A Mr. Bongo, por exemplo?

A Mr. Bongo já tinha uma história com a música brasileira, mas que agora está trazendo alguns artistas contemporâneos, como Bala Desejo e a Ana Frango Elétrico. Tem pessoas na Alemanha que também estão começando a fazer. Tem um festival em Colónia que tem levado vários artistas brasileiros, como o Sessa, Arthur Verocai, Gilberto Gil… Em Londres tem a Far Out, que já vem há algum tempo lançando tanto a música mais antiga, como a mais contemporânea brasileira. Também tem selos nos Estados Unidos, como a Psychic Hotline, que lançou o Tim Bernardes e vai lançar o meu próximo álbum lá também, junto com a Far Out e a Coala. A Stones Throw Records, que tem o Gabriel da Rosa… É engraçado, porque é um cara branco fazendo samba de um jeito muito clichê [risos]. E essa gravadora não é de clichês. Eles lançam coisas muito fodas, tipo o Mndsng, o J Dilla — que é um cara histórico que inventou uma parada e tem uma influência muito forte no meu trabalho —, o Benny Sings… Eles lançaram vários tipos de música, mas estão agora procurando ter o seu próprio artista que tenha essa coisa da música brasileira no ar. Então é o momento de aproveitar, fazer dinheiro, negócios, de trazer outros tipos de música… É porque existe muito mais além de todas essas pessoas que você citou há pouco. Eles são muito do eixo Rio de Janeiro – São Paulo. Há gente a fazer música muito mais diversa, no nordeste, até na Bahia. Lá também se faz uma música muito moderna. Acho que é uma obrigação… Talvez não uma obrigação, porque obrigação é uma coisa forte. Mas é importante que esses artistas, que você citou e que estão tendo a oportunidade de vir para cá, comecem a trazer a mensagem dos outros artistas que estão fora do eixo, para que a gente não fique a vida inteira tendo que fazer esse tipo de música que agora está sendo vendida, entende? A gente mesmo, esses artistas do eixo — e eu me enquadro, no sentido em que eu estou morando lá e estou vindo para cá; mas eu sou de outro lugar, Maceió — têm de mostrar que existem outros artistas de fora, que fazem outro tipo de música, para que eles também possam vir para cá e a gente não tenha de estar a vida inteira reproduzindo bossa nova.

No Reino Dos Afetos tem um título que se explica por si mesmo — é um álbum que aborda assuntos do coração. No primeiro single do teu próximo trabalho, “Tirolirole”, continuas dentro dessa temática. Os sentimentos são algo que te move muito durante o processo de composição, ou é uma questão de conceito para estes projectos em específico?

Eu sempre escrevi sobre isso, desde que comecei. 80% das minhas músicas são sobre amor. Mas eu sinto que isso vai acabar por passar. Acho que é uma coisa que tem a ver… É um pouco táctico da minha parte, digamos. Acho que falar de amor é mais fácil. Houve um momento na minha história como compositor em que eu virei a chave, porque eu estava começando a odiar as músicas que eu fazia. Comecei a usar menos palavras… Fiz um recomeço. Arranjei outro jeito de compor, outro jeito de construir as coisas. Isso foi bom de mais para mim, porque eu comecei com outra forma de fazer e fui expandido ela. Agora estou começando a falar de amor junto com outras coisas. Falo um pouco mais da cidade, de dinheiro e outras coisas assim. O caminho é esse. O segundo álbum vai ser muito baseado em amor, é uma continuação do primeiro. Mas acho que a partir do terceiro álbum eu vou ter mais liberdade — fé em Deus — para fazer e falar de outras coisas.

Em breve vou ver-te em palco a tocar. O que é que podemos esperar de um concerto de Bruno Berle a solo, só com voz e violão?

Eu toco músicas de alguns amigos, especialmente esses dos quais eu gravei algumas músicas. Toco algumas músicas minhas, mas poucas. Isto faz parte desse processo que eu te disse anteriormente, de que eu não estava gostando tanto das minhas músicas, então estou construindo um repertório de músicas minhas com calma. E canto algumas coisas de outros compositores que eu gosto, mais antigos, clássicos, trazendo algumas ideias deles que passaram um pouco despercebidas. Mas isso é a menor parte. A maioria são músicas minhas e de outros compositores da minha geração.

Apresentares-te com banda é algo que está nos teus planos ou preferes a aposta neste formato?

Eu gosto muito deste formato. Mas eu me apresentei com banda em São Paulo, no festival Coala, e em Brasília, no festival Picnik. Da primeira vez que vim para a Europa eu toquei com o batata boy — ele solta os beats e eu só canto. Tem esses três formatos. Mas o meu desejo é voltar à Europa depois do álbum sair, em Abril, com uma banda.


pub

Últimos da categoria: Entrevistas

RBTV

Últimos artigos