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Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 05/01/2021

A apanhar o último comboio...

Bright Dog Red: “Um bom MC, que faça freestyle, faz o mesmo que um baterista ou um saxofonista quando improvisa”

Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 05/01/2021

Joe Pignato, baterista e líder do colectivo nova-iorquino Bright Dog Red, é um generoso conversador que gosta de esmiuçar as ideias e ir ao fundo de cada questão. Respondendo no Zoom a questões do Rimas e Batidas, o músico não regateou no entusiasmo e aplicou-se como se do lado de cá estivesse alguém do New York Times ou da DownBeat. No final, quando lhe agradecemos esse cuidado e esse empenho, Joe respondeu que o que realmente o surpreende é receber solicitações de entrevistas de quem se encontra tão longe: “se te dás ao trabalho de me escutar com atenção, então eu vou retribuir aplicando-me em responder o melhor possível ao que queiras perguntar”. Óptimo princípio.

O álbum que os Bright Dog Red lançaram no final do último Verão, Somethin’ Comes Along, foi mais um sinal de um agenda agitada em termos criativos, num ano em que os criadores mais aventureiros entenderam que a música pode servir um impulso de mudança.

O que por aqui se escreveu: “Escutando Somethin’ Comes Along, sobretudo a primeira parte (trata-se de um duplo álbum com cerca de duas horas de música!!), subtitulada Somethin’, compreende-se que Pignato reclame o período eléctrico de Miles da primeira parte dos anos 70 como uma referência estruturante da sua identidade. De facto, os grooves musculados (mas também algo exploratórios) que a secção rítmica destes Bright Dog Red conjura servem de perfeita base para expedições intensas à estratosfera, com os dois saxofonistas a revelarem-se sólidos improvisadores e o guitarrista a justificar plenamente as piscadelas de olho ao rock mais hendrixiano com um estilo abrasivo e harmonicamente expansivo. As pincelas de electrónica servidas por Cody Davies são igualmente bem proporcionadas e encaixam no som do grupo (escute-se, a título de exemplo, a fantástica ‘Brothers, Strangers’), tal como o flow de Matt Connan, poeta na verdadeira acepção da palavra, com obra publicada, e amplo palmarés no competitivo circuito da slam poetry. Em ‘What’s It All Really Worth?’ o seu ‘storytelling‘ funde-se de forma perfeita no cristalizado som do grupo, num tema que soa solto e estruturado ao mesmo tempo e em que LaBombard nos oferece um longo e curioso solo de sax altamente processado a soar quase como um sintetizador. ‘Schism of a Cutthroat’, quase a fechar a primeira parte do álbum, é outro ponto alto, um tema que foi gravado em 2019, mas que poderia ter sobrado das sessões de Romantic Warrior dos Return to Forever não fossem as rimas de Matt Connan a ancorar a peça em terrenos mais contemporâneos.”

Coordenadas que permitem compreender melhor a conversa tida com Joe Pignato e a música que os seus Bright Dog Red criam quando partem à aventura. 2021 há-de, certamente, trazer mais novidades.



Vamos começar por falar naquilo que tu sentes que o novo álbum representa para a evolução da banda. A editora descreve-o como o vosso trabalho mais bem-conseguido até hoje. Onde sentem que chegaram com este novo álbum e que ainda não tinham conseguido chegar em discos anteriores?

É uma óptima pergunta. Acho que uma boa forma de descrever este álbum é que ele representa um esforço ambicioso. Nós tentámos fazer mais neste álbum do que em projectos anteriores. Por isso, o nosso primeiro álbum pela Ropeadope resultou de sessões de ensaio muito longas e não tinha sido gravado a pensar num disco. Aconteceu ter boa qualidade de som e boas performances. A Ropeadope gostou e daí surgiu o nosso primeiro álbum. O que difere dessa altura para o presente é a intenção. No nosso segundo álbum já tivemos essa intenção de criar um disco e fizemo-lo com uma formação muito particular, uma espécie de versão quinteto do grupo que tocou junto durante bastante tempo, talvez entre 2017 e 2019. Só que não representava o fôlego todo da banda, todos os géneros e estilos que nós conseguimos combinar juntos. Foi um bom álbum, teve mais intenção do que o primeiro, foi mais coeso, algo que apreciei bastante em relação ao anterior. Neste álbum houve uma intenção mais clara. Tínhamos imenso material das sessões de gravação e pensámos que conseguíamos um álbum duplo. Para o ser, ele tinha de ter a variedade que pode emergir durante os nossos concertos e representar todas as vertentes do nosso ensemble, que estão sempre a mudar devido às dinâmicas de cada membro, aos nossos sets serem totalmente improvisados e à nossa abordagem em estúdio, também ela muito focada no improviso. Isso é o que serve de fundamento para estas faixas. A intenção é mais ambiciosa. Tentámos fazer algo que resultasse em mais faixas, em mais tempo — são duas horas de música divididas por 20 temas — e quisemos também que fizesse sentido dividi-lo em dois discos. Por outras palavras, não quisemos apenas reunir muito conteúdo, porque isso já existe muito por aí. Muitas bandas agora apostam nos EPs ou nos singles. Ao ouvirmos as sessões de gravação para este álbum — especialmente eu, enquanto produtor, mas também a Ropeadope —, percebemos que havia duas partes muito coesas. A discussão passou por equacionar lançar um [álbum] em 2020 e outro em 2021 . Mas como veio tudo das mesmas três sessões e era coeso, acabámos por chegar a essa ideia de editar como um duplo álbum. A intenção deste disco foi diferente da dos dois primeiros.

A improvisação, conforme mencionaste, desempenha um papel importante na vossa identidade. Mas diz-me, quando vocês sobem ao palco, como é que a história se desenrola exactamente? Como é que um grupo de músicos atinge um som tão coeso? É só uma questão de muito trabalho, de vocês se conhecerem, ou há algumas coordenadas que vos guiam? Como é que isto acontece?

Tudo isso são factores. Definitivamente que existe muito trabalho durante os ensaios, até porque os nossos ensaios se baseiam muito em improviso. É nessas sessões que nos conhecemos uns aos outros, as tendências de cada indivíduo ao improvisar. Cada improvisador tem as suas tendências, os géneros que servem de referência a cada um. Conhecer isso tudo é importante. Há um outro ponto que nos permite termos coesão em palco, que é o sentirmo-nos confortáveis no desconforto. Quando tocámos os nossos primeiros concertos isso aconteceu em palcos relativamente grandes. Tivemos a sorte de, nos primeiros meses do ensemble, conseguir agendar espectáculos bastante bons. Pensámos que, por se tratarem de actuações com uma fasquia mais elevada, deveríamos ter um alinhamento, ou talvez fosse meio improvisado, meio estruturado. Acabámos por decidir em manter tudo completamente improvisado, dentro do possível. Nos clubes de jazz onde tocamos — uma das nossas salas favoritas é a do ShapeShifter Lab, em Brooklyn, Nova Iorque, gerida pelo grande baixista Matt Garrison — existe esse tipo de “zona de conforto” com a plateia, que nos permite correr riscos, ser vulneráveis e sentirmo-nos confortáveis dentro do desconfortável. Comprometemo-nos a isso desde o início e acabámos por ficar à vontade. As pessoas perguntam-se a como é que aquilo vai soar. E nós também. “Sentem-se e vamos descobrir juntos como é que a banda vai soar esta noite”. Isso é porque nós soamos de maneira diferente todas as noites. Se ouvires o álbum, nós nunca tocamos aquelas músicas ao vivo, aquelas composições. No entanto recebemos o feedback de alguns fãs, que por vezes dizem “comprei o álbum e aquilo que ouvi foi bastante diferente. Ao mesmo tempo senti uma continuidade, uma ligação àquilo que escutei no álbum”. Sentimo-nos confortáveis com o desconforto, estamos dispostos a correr riscos e a colocar-nos em posições que nos deixam vulneráveis. As nossas plateias, mesmo que aquelas que nos ouvem pela primeira vez, nós somos muito honestos com elas. “Isto vai evoluir no decorrer do nosso alinhamento e queremos que façam parte do processo connosco”. Acho que isso os faz escutar de maneira diferente. Talvez ouçam com mais atenção, não tão para se entreterem mas mais pela experiência. Para nós, enquanto existir incerteza não existe medo. A adrenalina está sempre a correr quando tocamos. Há sempre aquela energia. Mas nenhum de nós fica nervoso. Se a coisa não estiver a funcionar, se não estiver a ir na direcção desejada, eu, enquanto líder, faço uns ajustes. “Ok, vamos tentar algo novo”. Mas às vezes, mesmo quando as coisas não estão a acontecer, eu deixo-nos ficar dentro daquela ideia. É porque confio muito nos outros músicos, na experiência deles dentro do grupo. Alguns deles, como o Eric Person, têm carreiras sólidas. Os instintos dele são muito bons. Mas pode ser qualquer um a surgir com uma ideia e nós, bem como a audiência, respondemos ao chamamento dessa ideia. Nós vivemos desses momentos, em que de repente estamos coesos e a plateia está a responder.

Por acaso há uma questão acerca da vossa ligação com o público que eu te quero colocar. Por norma, uma pessoa vai a um concerto para se entreter mas também para ouvir algo que lhe seja familiar. Podes ir a um concerto do Bruce Springsteen porque conheces as músicas todas, por exemplo. Mas vocês oferecem algo novo de cada vez que tocam. Que tipo de público é que melhor se relaciona com a vossa música? Deduzo que seja composto por gente com uma mentalidade mais aberta, mais aventureira. Por isso: música aventureira requer um público também aventureiro?

Sem dúvida. Tenho duas respostas para isso. A primeira é sim: definitivamente que temos fãs que nos acompanham ao vivo regularmente ou que compram os nossos álbuns ou interagem connosco nas redes sociais e têm gostos bastante aventureiros, são apreciadores de música improvisada; não apenas daquilo que nós fazemos, mas de qualquer tipo de música que seja improvisada. Depois temos segmentos de plateias que são fãs aventureiros de alguns dos géneros que integramos no nosso projecto. Nós não somos uma banda de jazz na sua essência, mas temos uma adesão considerável por parte do mundo do jazz. Também não somos uma banda de rock per se, mas há músicos de rock que gostam bastante daquilo que nós fazemos e que nos seguem de perto. Não somos uma banda de electrónica, de todo, mas usamos elementos de electrónica na nossa música e há pessoas que gostam desse tipo de música, aventureiras, que vêm à procura dos sons e texturas que nós temos. O Cody Davies trata da parte da electrónica, mas muitos dos outros músicos da banda também têm os seus próprios efeitos ligados aos instrumentos. Nós pegamos em diversos pedaços dessas audiências. O desafio nisso é, provavelmente, não sermos jazz o suficiente para o universo do jazz ou não sermos rock o suficiente para o universo do rock. Estamos onde os géneros abrem fendas. E estamos bem com isso. Quando encontramos o nosso público e ele nos encontra a nós, é uma coisa maravilhosa. Mas não o podemos tomar por garantido, porque, como tu disseste, esta música não é necessariamente para toda a gente. Com isto dito, há uma outra coisa que eu gostava de acrescentar. Quando desenvolvíamos a banda, no início, tivemos alguns concertos mais bem cotados, mas também tocámos em muitos bares habituados a bandas de jazz. Nós avisávamos os donos que éramos um bocado diferentes. Tivemos duas experiências. Uma foi, ao terceiro ou quarto concerto, abrimos para o grande George Clinton e os Parlament Funkadelic. Sabíamos que, perante aquela audiência, não podíamos ser completamente livres no nosso alinhamento. Tínhamos de ter algum tipo de ideia, baseados no facto de que, como tu dizias há pouco, as pessoas tinham lá ido à procura de uma experiência mais familiar. Parte dessa experiência familiar — não sei se já viste o George Clinton e os Parliment Funkadelic ao vivo alguma vez? — é que é emocionante, tem um nível de energia muito elevado e tu vais querer dançar do início ao fim. É fantástico. Ele cria aquela narrativa de ficção científica, com todas aquelas personagens e temas… Nós tínhamos de entreter. Não podíamos limitar-nos a ir lá e fazer a nossa cena. Parte de seres acessível para as pessoas vem de seres honesto para com o que fazes, mas também de não forçares algo. Para o concerto de abertura do George Clinton, nós não compusemos temas mas também não estruturámos nada. O senhor George Clinton reviu-se pessoalmente na nossa música. Há partes da nossa música, conforme pudeste ouvir no novo álbum, que são muito ritmadas, com beats e groove, muito funcionais. Para esse concerto planeámos incluir momentos muito ritmados e também pensámos como iríamos transitar de um momento para o outro. O meu papel, enquanto líder e baterista, era estabelecer o ritmo, mais acelerado, e manter os olhos no relógio, porque tínhamos exactamente 35 minutos para estar em palco. Improvisámos por completo mas dentro dessa tal estrutura rítmica. Indo de volta à tua primeira pergunta, há, por vezes, parâmetros ou princípios organizacionais que tentamos seguir. Mas nesse concerto específico, também tivemos sorte porque a plateia foi bastante generosa. Tivemos uma experiência numa sala muito grande — maior do que a maioria das salas onde tocamos — e podíamos ver umas 800 pessoas abanar a cabeça consoante o que fazíamos e isso foi encorajador. Tivemos outras experiências semelhantes. Uma vez, a tocar num bar, já muito tarde, no nosso terceiro set da noite, encaixámo-nos enquanto grupo e a música saiu muito ritmada. Acho que é isso que faz com que as pessoas nos “abracem”. Elas sentem que se podem mexer ao nosso som e isso abre-lhes a mente, porque elas podem sentir o pulso da batida. Mas no bar, nessa noite, de repente havia um pequeno grupo a dançar. Só tínhamos tido essa experiência um par de vezes. É muito gratificante de ver. Numa outra vez fomos convidados a tocar num estival sem sequer nos apercebermos de que éramos os cabeças de cartaz. Era um festival a céu aberto, com famílias, pais com filhos. Inicialmente ficámos perplexos. “Será que sabem quem contrataram? Seremos a banda certa para esta audiência?” [risos] Pensámos “bem, estas pessoas vieram para se divertirem, vamos tocar novamente dentro desta cena mais ritmada”. O baixista e eu prendemo-nos a um groove e tudo o resto girou em torno daquilo. Tivemos um óptimo momento nesse festival, tanto que nos voltaram a chamar para a edição do ano a seguir. Portanto, eu creio que há decisões que tomamos a pensar em quem nos vai estar a ouvir. É parte do trabalho ler o público e ser justo para com eles. Por outras palavras, se eles estão à espera de se divertirem e nós vamos tocar música avant-garde dissonante… Não é bem o que eles procuram. Mas ao mesmo tempo também não podemos inclinar-nos demasiado para eles, porque as plateias sentem isso. Se tu estás a tocar algo apenas para os agradar isso também não se vai tornar interessante para eles. Há que encontrar a forma correcta de dialogar. Mas não no sentido literal. Embora eu às vezes fale com a plateia e lhes diga que somos uma banda de improviso e, como tal, a nossa actuação é um completo mistério até para nós. Por vezes o diálogo prende-se apenas com nós tocarmos e estarmos atentos à forma como as pessoas reagem, para depois decidir quais as direcções que o set pode tomar. Quando isso acontece, é parte da alegria do trabalho. Ver as pessoas a abanar a cabeça, depois mais tarde vão querer comprar CDs ou falar com a banda. Isso é muito gratificante.

As descrições que fizeste deixaram-me a pensar: que tipo de música é que vocês ouvem no autocarro quando andam de digressão? Quem faz as playlists?

Nós, por norma, viajamos separados. Não sempre. Pessoalmente, gosto de ir a ouvir música bastante diferente daquilo que eu vou tocar. Não há uma playlist específica mas, se eu vou tocar com Bright Dog Red, tendo a ouvir música diferente da de Bright Dog Red. Talvez vá ouvir algo que é muito acústico, com mais melodia. Mas eu não faço uma pré-escolha daquilo que vou ouvir.

Fala-me de Albany. Como é a música lá e quão abertos foram eles em relação ao vosso som?

Albany é a capital do estado de Nova Iorque. Fica a cerca de duas horas da cidade de Nova Iorque, indo de carro ou comboio. É pouco conhecida internacionalmente e também não muito conhecida mesmo dentro dos EUA. Mas é a capital do estado de Nova Iorque e tem uma cena musical independente muito vibrante. Só que tem uma cena jazz muito pequena. Na verdade, nós ainda não tocámos muito na nossa cidade. Demos uns três espectáculos lá. Foram bons, com boas plateias. Mas em cinco anos de existência da banda ainda só lá tocámos três vezes. Isso é porque, como eu estava a dizer, a cena jazz é mais pequena e tende a ser em torno de nomes já mais estabelecidos, que são os que tocam mais vezes nas salas de espectáculos. Também há bandas locais mas tocam mais em restaurantes e em clubes. Um dos nossos baixistas, que cresceu em Albany, já tocou bastantes vezes pela zona. Nós já lá tocámos mas, ironicamente, tocamos mais na cidade de Nova Iorque, que é de onde eu sou. No entanto devo notar que há um grande jornal de lá, chamado Times Union, e eles já escreveram peças maravilhosas sobre Bright Dog Red, pelo facto de ser um projecto local em crescimento e cujo sucesso se expandiu para lá dessa região.



De volta ao álbum. Foste tu mesmo quem o gravou, no teu estúdio, e pelo que me disseste antes o processo demorou três sessões. Como é que isso se procedeu? Vocês tocam todos ao mesmo tempo e na mesma sala ou gravam por pistas? Qual foi a abordagem?

Numa reposta curta: fizemos de ambas as formas. Então, existiram três sessões em 2019, uma em Julho, outra em Novembro e outra em Dezembro. As duas últimas foram planeadas. A primeira, na verdade, nós estávamos a ensaiar para integrar um MC a tocar connosco. Essa pessoa não apareceu e a banda ficou a tocar e a gravar. Existiram momentos em que pensei “eu quero guardar isto”. Diria que ficaram registados uns 30 ou 40 minutos dessa sessão. A sessão de Novembro foi planeada como uma sessão para a banda, com as sete pessoas que entram no álbum. A forma como nós trabalhamos começa comigo a lançar os convites para aquela data. A maioria veio, mas não todos. Nós gravámos com quem estava presente. Digamos que o nosso poeta, o Matt, não pôde aparecer. Eu digo “vamos fazer uns improvisos, gravá-los, mas deixamos algum espaço para o Matt. Vamos imaginar que ele é capaz de largar umas rimas”. Nós tocamos, atingimos aquele groove bom e achamos que o Matt consegue entrar. Deixamos uma certa área com potencial para ele entrar depois. É aí que se iniciam os overdubs. Quem não esteve presente na sessão pode fazer os overdubs de duas formas distintas. A maioria deles opta por apenas vir ao meu estúdio quando possível. Eles não sabem aquilo que foi gravado. Meto a tocar e gravo. Eles ouvem, improvisam e é como se eles tivessem estado presentes naquele take. Se existir alguma coisa de que eu não goste, posso remover isso na edição. Às vezes eles fazem uma combinação disso. Fazem um take, ouvem e depois fazem um segundo take. Ocasionalmente eles preparam-se. Não é escrever para determinadas partes, é algo como “eu vou tocar este tipo de solo nesta parte”. Diria que a base de cada faixa é o improviso. Algumas são 100% improviso, outras são 90%. Mas diria que a maioria são 70% para cima. A base de cada faixa é o improviso.

Através da electrónica presente no vosso som e também do Matt, como estavas a falar agora, podemos sentir uma clara ligação ao hip hop no vosso som. Poderíamos dizer que aquilo que um MC faz durante um freestyle não é muito diferente daquilo que faz um saxofonista durante um improviso. Também vês estas duas coisas como iguais?

Sim. Absolutamente. Tenho algumas observações relativamente a esse tópico. Toda a música que nós tentamos referenciar — jazz, improvisação livre, hip hop, electrónica e psicadelismo — são tradições musicais com as quais eu cresci. Essa é a razão pela qual fazem parte daquilo que nós fazemos. A ideia de ver essas duas coisas da forma que estavas a dizer veio-me muito cedo enquanto me desenvolvia como músico. Eu estudei bateria com o Max Roach e o ensino dele não era tão focado na forma como se toca, mas muito mais na forma como se deve pensar a música. Ele, no início dos 80s, viu uma ligação entre os rappers e a história da música de improvisação afro-americana. No mundo do jazz existia um debate acerca do reconhecimento do hip hop, que era ainda um género muito recente. Mas o Max andava a fazer colaborações com o Fab 5 Freddy e com outros artistas e DJs. Isso influenciou-me muito. Ele disse algo como “a tua música tem de ser sobre ti e a tua experiência. Tem de reflectir aquilo ao qual estás autenticamente ligado”. Eu vejo as coisas dessa forma que ele descreveu. Um bom MC, que saiba dar freestyle, como o Matt, está a improvisar tal e qual eu ou um saxofonista. Há um par de faixas no nosso segundo álbum em que a poesia do Matt tem um grande destaque. Ele improvisou aquilo junto da banda durante as gravações. A última faixa, por exemplo, pode parecer-te algo super-produzido. Mas na verdade esse álbum apenas tem uma faixa que não pertence à primeira sessão de gravação. A única coisa que se adicionou depois foram uns sons de guitarra. A poesia do Matt foi totalmente improvisada. Ele saberá dizer-te melhor que eu mas, pelo que já me explicou, a técnica dele consiste em improviso total, outras vezes com base em pedaços de coisas que ele escreveu. Ele já publicou poemas e tem grau avançado em escrita criativa. Também já competiu enquanto slam poet aqui nos EUA. Portanto, ele pode ir até buscar um poema que tenha escrito, mas no momento ele vai saber exactamente onde encaixar aquilo. Ele sabe que, se estiver a declamar um poema ou a largar umas rimas, nós vamos assentar naquele groove até ele acabar. Não o vamos mudar a meio da cena dele. Ele mistura entre o freestyle total e a poesia preparada e cria todo um leque de variações entre ambas. O que é muito agradável de assistir e dá um certo ímpeto aos músicos.

Tal e qual um músico. Um músico também tem as suas melodias, a sua bagagem, que leva depois para o concerto. Que projectos dirias que funcionaram como referências para aquilo que vocês fazem?

É uma boa questão. Dei uma entrevista com o Eric Person, outro membro da banda… Podes ver a biografia dele, já tocou com o Ronald Shannon Jackson, o Dave Holland, o McCoy Tyner… Não é apenas um músico, meio que um historiador também. Ele disse que esta abordagem à música já leva uma tradição de mais de 50 anos, de fundir o jazz com outras técnicas de improvisação. Ele lembrou a banda eléctrica do Miles Davis e eu acho que é uma excelente referência. Apontaria também o The Tony Williams Lifetime como uma óptima referência em termos de… Quando tu ouves o Emergency!, há toda uma crueza e energia naquilo. Os músicos estão a colocar de lado a sua abordagem normal e disciplinada para dar vida àqueles momentos que veem de uma banda impiedosa. A tua criatividade deixa de ter limitada ao “tens de soar bem, tens de soar polido, tens de soar coeso”. Isso é seguramente um espírito que está presente nos nossos três discos. Posso dar-te um terceiro exemplo, talvez não tão claro. Dizia-te há bocado que estudei com o Max Roach e estudei também composição com Yusef Lateef. Uma das marcas da sua música era juntar pequenos pedaços de influências. Para ele, talvez fossem conceitos de escalas egípcias trazidas para um registo americano, com elementos sulistas e o funk presente no baixo. Quando estudei com ele, ele ficava muito desconfortável com o conceito de género. Claro que ele entendia o que eram os géneros na sua forma e estrutura, mas ele achou que os músicos de improvisação ficaram muito presos aos géneros. Na minha geração — estou no início dos meus 50s — acho que vimos a malta a crescer com uma grande restrição a géneros. De certa forma, aquilo que fazemos é um reflexo da era em que vivemos. Muita gente está a tentar recombinar abordagens, fazer cenas mais híbridas. Mas são estes os nossos “ancestrais”. Acrescentaria só, talvez, o David Bowie. Sempre foi um músico que eu admirei profundamente, porque vai buscar muitas referências de forma pouco óbvia. É um bocado aquilo que nós fazemos.

Sendo tu o líder da banda, creio que o teu papel não se trata apenas de dirigir os músicos, mas também de administrar o colectivo, encontrar os concertos certos, lidar com as finanças… Quão árduo é um trabalho como esse?

Bem, é muito trabalho. É difícil nesse sentido. Eu também sou professor de música e professor de indústria musical. Eu dou aulas sobre a indústria musical porque trabalhei em algumas empresas, em Nova Iorque, incluindo algumas editoras de jazz como a ECM Records. Uma das coisas que eu fiz foi gestão de projectos. Aprendi a fazer discos, a misturar e masterizar. Todas essas coisas. Aprendi muito sobre a gestão de música, gestão de digressões, publicidade, média… Tenho alguma vantagem por saber tudo isso. Por outro lado, sim, é intenso e requer muito tempo. Mas faço por gosto, por isso não reclamo. A dificuldade é mesmo o facto de querer muito tempo. E é claro, que está mais complicado com o que está a acontecer à escala global, por causa do COVID-19, particularmente nos EUA.

Ia perguntar-te acerca disso. Quando é que tocaste ao vivo pela última vez e como é que tens lidado com esta situação tão delicada?

A última vez que nós tocámos foi no Winter Jazz Fest, em Nova Iorque. Foi um concerto muito bom e marcou uma transição, pois estávamos com o novo álbum prestes a sair. Teve um bom destaque na imprensa e começámos a ter mais e melhores agendamentos. Havia um certo burburinho em torno das nossas prestações ao vivo. Mesmo esse do Winter Jazz Fest foi muito bom, por nos ter incluido ao lado de nomes bastante grandes dentro do jazz. 2020 parecia promissor. Havia planos para uma digressão pelos EUA, com a banda a conseguir expandir-se para fora de Nova Iorque. Tínhamos alguns concertos para a Primavera e antecipávamos um Verão muito ocupado. O primeiro concerto era a 13 de Março e foi precisamente quando as coisas começaram a desmoronar em Nova Iorque. Até ao dia 11, nós tínhamos intenções de dar esse concerto. Alguns membros da banda começavam a levantar questões, eu ia acompanhando as notícias e comunicando com a organização do concerto. O dono do espaço foi muito atencioso. Todos concordámos que, desde que seguíssemos as directrizes sanitárias exigidas, tudo correria bem. Só que essas directrizes primeiro apontavam para um máximo de 500 pessoas na plateia. Depois não mais do que 50. Depois não mais do que 25. Foi aí que as pessoas começaram a ficar preocupadas. Surpreendentemente, um membro da banda ficou doente. Não com COVID-19, felizmente. Mas na altura a preocupação era testá-lo. De repente, o plano para o concerto começou a ficar baralhado porque tínhamos de encontrar alguém para colmatar aquele papel tão importante dentro do grupo. A história desenrolou-se até que, a 12 de Março, ligaram-nos do espaço a dizer que a data tinha sido cancelada. Não tocámos desde então. Tivemos algumas oportunidades no Outono para fazer performances em live stream, mas seria apenas uma ou outra aqui e ali. Não surgiu nenhum plano para continuarmos a tocar regularmente, porque o circuito está praticamente todo encerrado. Não para todos, mas para a maioria, nos EUA. Terminar este álbum foi complicado, porque a maioria foi gravada antes do COVID-19 mas haviam alguns overdubs que precisavam de ser feitos. Foi um problema porque nem todos têm estúdios caseiros. Alguns vivem perto de estúdios mas alugá-los não era uma opção. Tivemos de nos desenrascar. Masterizar o disco também teve algumas complicações, com o envio de ficheiros… Por norma, o engenheiro de som trabalha comigo ao lado e eu posso ir ouvindo. É muito mais eficiente. Depois, para alguns membros da banda, este período tem sido muito complicado. Tocar ao vivo — e não apenas nos Bright Dog Red — é a única fonte de rendimento que têm. Por isso esta é uma fase muito complicada para eles.


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