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Fotografia: Vera Marmelo
Publicado a: 25/08/2022

Se alguma vez tentarem decretar o fim da música nacional, as gentes de Cem Soldos farão um festival para contrariar isso.

BONS SONS’22: uma aldeia a falar-nos de amor

Fotografia: Vera Marmelo
Publicado a: 25/08/2022

Depois de caminhos de terra e muito arvoredo com pouca rede, a partir do momento em que se vê a seta que anuncia “Cem Soldos” há algo que se transforma na atmosfera. Podemos começar por falar do conceito deste festival, que muitos consideram pioneiro: nada se perde, tudo se transforma, adicionando-se “apenas” os palcos e todas as infra-estruturas necessárias à realização de um festival e a ideia é experiencar a aldeia — não se tira quem lá está e acrescenta-se quem lá quer ir.

Esse local, de ruas apertadas e paredes de cal, uma visão campestre que tem tanto de simples como de magnífico, rasga-se para acolher, ano após ano, manifestações maiores da cultura musical portuguesa; e o resultado é um sítio transformado, ainda mais bonito e pronto para receber, de braços abertos como se fosse um filho da terra, qualquer um. Mesmo que nunca se tenha lá estado antes, a sensação predominante é a de regresso; como se estivéssemos a regressar a casa depois de se estar longe.

É um sentimento de reunião e harmonia que se apanha muito rápido, como se isso estivesse plausivelmente no ar ou em todos os jactos de vapor de água com que a multidão é pulverizada — tão necessário –, pela mão de todos os voluntários presentes – tão cruciais. Somos convidados a (con)viver quatro dias com alguma da melhor música portuguesa, espalhada por palcos com conhecidos nomes da nossa praça, ou pela rua, com a participação de bandas programadas pela Música Portuguesa a Gostar Dela Própria, que brilha no papel de “juntar artistas e público no mesmo espaço, sem a obrigatoriedade de palco físico”. Existe ainda uma garagem destinada a todos os que querem dar o seu próprio concerto, algo que se justificou como altamente necessário pela forte adesão, com concertos a toda a hora e grupos de curiosos que passavam por perto e ficavam para apreciar o espectáculo.

Também com o intuito de dar a conhecer o que a aldeia tem de melhor, para além da feira e do percurso sonoro presente pelas ruas, ficam à disposição inúmeras actividades tradicionais; de passeios de burro a oficinas para crianças, passando pelas histórias de avós, os jogos tradicionais do Hélder — sempre concorridos — e workshops de música para crianças: em cada esquina, uma actividade (e um amigo também, é o festival perfeito para isso).

E com tudo o que já há para fazer, é de louvar quem teve a ideia de não sobrepor concertos. Dessa forma foi possível ver a grande maioria dos nomes presentes no cartaz. Nesta primeira parte, destacamos alguns dos melhores que vimos e em que sentimos uma das características que mais fazem sentido neste festival: o casamento entre a actualidade e a tradição. 



E começamos com um concerto bastante emocionante, nomeadamente pelas suas propriedades castiças – e fica já aqui um disclaimer de quem vos escreve: lágrimas foram uma ocorrência comum. Ao chegar à hora do jantar vê-se (e ouve-se) uma quantidade de gente sem fim virada para a igreja da aldeia em puro êxtase enquanto olhava para cima, para perto do sino. Tratava-se de um concerto de OMIRI, um dos mais belos exemplos da fusão de elementos tradicionais com modernidade, electro-folk que junta de tudo um pouco, incluindo nomes como Capicua, mas também testemunhos de aldeões já em idade avançada e grupos de coros tradicionais ou cânticos regionais. E tudo misturado com elementos electrónicos, sem nunca perder a sonoridade tão portuguesa; o resultado foi apresentado em vídeo, projectado na fachada da igreja e recebido com um furor que nos apanhou na curva e emocionou. Uma multidão de pessoas aplaudia cada conto ou canto dos mais velhos, gritando palavras de apoio e cantando, em coro, os cânticos apresentados, enquanto nascia um aplauso e se dançavam versões do vira, de braços no ar e com estalares de dedos — mesmo com um copo do Bons Sons cheio de cerveja na mão. 

Este é um exemplo muito entusiasmante de práticas tradicionais com jeitos modernos que deve ser mostrado a camadas mais jovens — ali resultou e receberam-no com grande euforia e risos também, como quando uma senhora idosa apareceu a dizer: “Já seguiram OMIRI no Instagram? Não seguiram que eu ainda não vi ninguém tirar o telemóvel do bolso!”

Esta mesma recepção foi agradecida, também em lágrimas, pelo criador do projecto, que rematou o concerto com uma simples mensagem, trazida por outra aldeã, “boa noite e sejam muito felizes toda a gente!”, terminando assim com um grande aplauso e gritos.



Também no mesmo dia assistimos ao concerto de Rita Vian, uma das mais ilustres vozes da nossa geração. Desta vez no Palco Zeca Afonso, um anfiteatro no meio de oliveiras, virado para toda a zona rural de Cem Soldos, a cantora fez magia sob uma lua cheia que iluminava a vasta multidão que se apresentou para sentir as suas palavras. Foi neste concerto que foi inaugurado um “cântico” que se ouviria muito ao longo dos quatro dias, “Senta! Senta! Senta!”, na expectativa de poderem assistir sentados, como se de um filme se tratasse; no entanto, as reclamações não foram ouvidas e na colina mais abaixo todo o concerto foi visto de pé, com muita dança e agitação.

Embora falemos de um nome já conhecido, com músicas como “Purga”, “Sereia” e “Plana”, e instrumentais mais virados para a dança, há sempre um momento onde Rita Vian cai de joelhos em palco e, iluminada por apenas um holofote, mostra, a cappella, temas que diz “só cantar sozinha em casa” e dedicados a pessoas que lhe são próximas. E assim, com uma voz poderosa, arrebatou toda uma plateia já emocionada, entoando bonitas palavras como: “Estás no meu pensar/ Estás cá dentro em mim/ Peço a São Marçal, peço à Virgem Mãe/ Que não estejas mal, que tu estejas bem”. Destacamos ainda a belíssima versão de “Carmen”, desta vez sem Mike El Nite e com uma ligeira alteração na letra.

Esta noite, a primeira, terminou com uma das actuações bastante aguardadas: José Pinhal Post-Mortem Experience. Não se percebe muito bem de onde veio este repentino fenómeno e o porquê de ter acontecido — se bem que se suspeita de um típico caso de word of mouth de mãos dadas com o poder das redes sociais –, mas a verdade é que ainda bem que aconteceu. É uma bela homenagem que move multidões. Sendo um concerto perfeito para quem gosta de uma boa festa, o repertório deste artista não se esgota com o hit “Tu És As Que Eu Quero (Tu Não Prendas o Cabelo)”, arrancando a pura loucura com outros hinos como “Magia (Bola de Cristal Mentia)”, “Porém Não Posso”, “Covarde” e ainda “Baby Meu Amorzinho”… Impressionante. Estamos perante a ressurreição de um nome dos anos 80 com todos os ingredientes para ser considerado um grande nome da música de baile, embora tenha sido subvalorizado e esteja agora a “viver” em todo o seu esplendor, numa segunda chance de sucesso que tanto apela a fãs mais antigos como a uma camada mais jovem (principalmente) — o comentário, “quando me casar chamem esta banda” ouvido a meio do concerto, dito por uma rapariga ainda no início dos seus 20s, assim como o testemunho de um utilizador do Twitter que afirmou, “Bons Sons 2022 é estares no chuveiro do campismo e alguém estar a cantarolar baby baby baby baby meu amorzinho”, só nos leva a acreditar que este fenómeno está longe de parar o seu crescimento, dando-se mais à expansão.

Outro nome que nos deixou igualmente entusiasmados foi Bia Maria, jovem que tão bem carrega ao peito a tradição. Num concerto a abarrotar no Palco Giacometti-Inatel, com uma naturalidade que a caracteriza — como se não estivesse a emitir uma das mais belas vozes ouvidas nos últimos tempos — e após a performance de várias músicas do seu reportório, que inclui todo um álbum dedicado a cânticos tradicionais chamado Tradição –, chamou ao palco xtinto para nos presentearem com um dos momentos mais distintos de todo o festival. Por ambos terem temas que apresentam semelhanças na progressão de acordes – “Dissabor” e “Pentagrama” –, foi apresentada uma versão desta última música pelo autor de Ventre, onde, desta vez, e num modo mais suave, debitou os seus versos profundos, enquanto Bia Maria debitava palavras da sua “Dissabor” com voz cristalina e de pianinho ao colo. O ambiente ali sentido, de pessoas sentadas em cartões (decorados) no chão e num silêncio apenas quebrado pelo vozeamento de elogios ou acompanhamento das suas canções, fez-nos sentir perante algo especial, como se de um encontro de amigos ou algo muito íntimo se tratasse. 



Este foi também o palco que acolheu Fado Bicha, um dos concertos mais poderosos do Bons Sons 2022. Ao entrar de salto alto, véu vermelho e vestes e maquilhagem imponentes — acompanhada por João Caçador e Labaq, não menos deslumbrantes –, Lila entoou: “as bichas chegaram ao Bons Sons!”; e a euforia foi tal, que começou logo assim: “Então, obrigada e boa noite!”.

Prontamente, Fadista mostrou o seu vozeirão com o tema “Povo Pequenino” e, caso os arrepios na pele causados por essa música não fossem o suficiente, estávamos prestes a levar outra dose, e não pelas melhores razões. O grupo fez questão de relembrar como há umas semanas se chegou ao segundo aniversário do assassinato de Bruno Candé, recordando todas as palavras de escárnio proferidas aquando da sua morte. Em tom de homenagem, foi pedido um aplauso que se ouviu forte por todas as ruas da aldeia, assim como os gritos de quem não fica indiferente, o mínimo a fazer como foi relembrado por Lila: “Somos uma sociedade mergulhada num caldo racista e colonialista e quem acha que não é um problema nosso está enganado”. Como tributo a esta mesma causa entoaram “Lisboa não sejas racista”, que trouxe àquelas ruas a maior alma do fado popular e espírito de romaria — se acham que acabou em Lisboa no mês passado, desenganem-se: estávamos a 14 de Agosto no meio de uma aldeia em Tomar e sentia-se ali bem vivo e em metamorfose.

No mesmo registo chegou-nos “Fado Alice”, em que a vocalista decidiu fazer outra pausa, desta vez para passar uma mensagem em inglês, que aqui traduzimos: “Para quem não fala português e não tem bem a certeza de que é isto que é o fado, fado é exactamente isto, e sempre foi”, o que arrancou palmas e vários risos da plateia. E assim continuou: “As queers de Lisboa há anos e anos que se reúnem numa cave para cantar fado!”, um momento onde mostrou que o seu talento para entreter se estende para além daquele que tem para cantar. Apesar de este ser um instante cómico, não deixou de aproveitar a deixa para lembrar que vozes LGBTQIA+ fazem, sim, parte do fado há muito tempo, mas os seus contributos foram apagados e esta música “é uma prova que existiram”. Essencialmente, este foi um dos mais bem executados exemplos da fusão do novo e do antigo, transformando algumas das partes mais problemáticas que a tradição tem em algo de educativo e que soa bem.

Foram muitos os momentos de diálogo com o público em que se contaram histórias e partilharam emoções, neste festival que, nas palavras de Lila, traz impacto e visibilidade, acrescentando ainda: “Se estiverem desconfortáveis, aguentem mais um bocadinho”. Ninguém parecia sentir-se desconfortável, mas impactado pelo espectáculo que Fado Bicha deram, tendo deixado centenas de pessoas a gritar “Só mais uma!”. “Quero que saiam daqui a dizer: ‘Vi um concerto de três bichas hoje… e foi do cara-NÃO,
DA CONA!'”, foram algumas das últimas palavras de Lila e só temos a dizer que saímos de lá exactamente com essa sensação de empoderamento de que estávamos no sítio certo e do lado certo da luta.



Sem termos recuperado ainda deste espectáculo e já de madrugada, assistimos também à obra de arte construída pelos Criatura com o Coro dos Anjos. Para quem é conhecedor das suas faixas, já se adivinhava o nível de espectáculo a que se iria assistir, porém, nada nos podia preparar para o que se sentiu lá; quase duas horas de grande emoção com uma energia constante que provavelmente se sentiria a léguas. 

Com uma presença de palco absolutamente extraordinária — especialmente Gil Dionísio –, este foi um concerto que captou cada segundo da atenção de qualquer um. Com a utilização de inúmeros instrumentos, um coro de vozes, dança, teatralidade e uma capacidade exímia para contar histórias, este poderia ser um espectáculo dividido em actos — e todos seriam igualmente incríveis.

A apresentação de temas como “Bem Bonda”, “A Noiva”, “Lobbysómem”, “Pastor sem Cajado” e “O Padeiro”, enlaçadas com fortes críticas sociais — como a crise de habitação e a pressão heteronormativa da sociedade — juntas com o entusiasmo do público para com as mesmas, levam-nos a afirmar que, mesmo com tantos concertos já vistos, este colocou-se certamente e prontamente no top 3 pessoal de muitos daqueles que estavam em Cem Soldos. Saímos de lá com o sentimento de que o que tínhamos acabado de ver seria irrepetível e com uma comoção nos corações de levar um ou outro lenço ao olho. Este foi outro exemplo de como algo tão ligado à tradição com coros, gaitas de foles e referências musicais a romarias ou tempos medievais pode também ser tão actual. 



Algo que também se mostrou bastante inserido no presente foi a actuação de Emanuel e Toy de Matos, de quem não poderíamos deixar de falar, que trouxeram o canto cigano ao Palco MPAGDP na Rua do Pombal, tendo bloqueado totalmente a rua com gente que tanto os queria ver.

Trazendo a tradição como ela sempre foi e ainda o é, assistimos também às bonitas actuações do Grupo de Gaitas da Golegã pelas ruas, e ainda das Cantadeiras do Vale da Neiva, que actuaram no portão da igreja, com harmonias de arrepiar qualquer um, seja pela nostalgia de se ter crescido a ouvir cânticos semelhantes ou pela carga emocional que se sentia. Os presentes trataram estes concertos com a mesma atenção de todos os outros nomes mais recentes, algo tão importante no papel da difusão desta cultura para faixas etárias mais jovens.

Apesar da tradição desempenhar um papel fundamental no Bons Sons, este festival procura ser eclético e, por isso, houve música para todos os gostos. Como também por estas páginas digitais se nutre uma paixão pelos mais variados estilos musicais, assistimos ainda a vários concertos que merecem uma menção honrosa, agora mais virada para a parte moderna que tanto poder de encaixe possui.



Para os amantes de uma boa dose de moshs, crowdsurfing e rock, tivemos nomes como Cancro, que destacamos pela versão rock de “Fala-me de Amor” de Santos e Pecadores; Sunflowers, cuja energia da baterista, Carolina Brandão, merece um shoutout, assim como todo o resto da banda que tornou aquele cruzamento numa rotunda de pessoas que faziam mosh e crowdsurf (com o próprio vocalista) e cantavam as suas músicas a plenos pulmões; Pluto pela pedalada de Manuel Cruz, que não perde andamento e talento para os solos de guitarra em tronco nu; e ainda 5ª Punkada, uma banda de rock constituída por utentes da Associação de Paralisia Cerebral de Coimbra que encheram por completo o Palco António Variações e deram um verdadeiro espetáculo de abanar a cabeça e gritar um “yeahhhh” a plenos pulmões.

Os amantes de hip hop e das suas ramificações também não foram totalmente esquecidos, com a apresentação de GROGNation, um grupo que não pára de arrastar fãs devotos por esse país fora, todos com as letras na ponta da língua. Também por lá passou David Bruno, sempre acompanhado do seu guitarrista de eleição Marco Duarte e o entertainer nato António Bandeiras.



Por outro lado, e numa atmosfera mais calma, assistimos ainda a alguns dos mais belíssimos concertos que ali tiveram lugar, pelo cenário idílico onde se inseriram, assim como pelas composições que carregam. 

Iniciamos esta parte do relato por B Fachada, que após a nossa entrevista entregou ao público um concerto sob uma lua magnífica — mais uma vez a fazer-se protagonista –, em que cantou temas que tão bem combinavam com o cenário, como é o caso de “Natureza Radical” e todo o seu mais recente álbum Rapazes e Raposas, acompanhado pela sua fiel companheira, a viola braguesa (e não só). Como factor surpresa, o cantor apresentou “Contramão”, uma daquelas raridades que muito poucos puderam testemunhar ao vivo. Nós, os sortudos, fomos abençoados naquele anfiteatro completamente cheio. No mesmo palco, e numa quente tarde de Agosto, tinha actuado André Henriques, que proporcionou um concerto a solo e apresentou músicas do seu álbum Cajarana como “Uma Casa na Praia”, “Maria Odete” e “Para Me Aleijar”, contribuindo para o deleite profundo de quem se encontrava deitado à sombra ou a apanhar sol.

Outro dos nomes que chamou uma quantidade avolumada de público foi Lena D’Água, que convidou todos para a “Grande Festa” com temas tão conhecidos como “Robot” ou “Dou-te um Doce”, contrabalançados com alguns dos seus mais recentes hits como “Hipocampo”, que arrancou coro de toda uma multidão que só pedia bis no fim. Também com casa na lotação máxima se apresentou Maria Reis, desta feita no Palco Giacometti-Inatel e com uma vibe maioritariamente “sunset pacific”, descrição da própria, onde vimo-la acompanhada de Júlia Reis, a sua irmã e companheira nas Pega Monstro. Mas nem sempre foi “pacífico”: apesar das suas músicas mais calmas a solo, a artista fomentou, por exemplo, o mosh em “Branca”, música da sua adorada dupla.

Em mais uma prestação com casa cheia, vimos A garota não, um espectáculo que serviu como aula de consciencialização para muitos assuntos: dos rendimentos da Galp à crise da habitação, passando pelo apela à luta feminista, levámos desta actuação algumas frases impactantes ditas pela cantora, como “podem decretar o fim da arte, a gente faz uma canção sobre isso”. De bonita voz e entre arrepios causados nos dois sentidos, debitando letras carregadas de significado, entregou certamente um concerto digno de nota.

Para terminar numa atmosfera de festa — podíamos estar numa qualquer feira de Agosto naquela altura –, estivemos presentes no arraial de Sebastião Antunes & Quadrilha, onde reinou a música de baile que despertou de tudo um pouco: de moshs ao típico comboio e lançamento de um peluche dos Angry Birds — atirado em cada concerto –, tudo culminou em loucura com a apresentação da tão popularmente adorada “Cantiga da Burra”, cantada (ou melhor dito, gritada) a plenos pulmões pela plateia, que fez de tal maneira a festa que se viram obrigados a repetir a faixa.

Todas as réstias de energia foram queimadas em Bateu Matou, que juntaram hip hop, funk e funaná num cocktail explosivo para fazer qualquer pessoa livrar-se dos agasalhos que tinha. Não se via um único pé no chão ou anca que não abanasse, enquanto o grupo apresentava remisturas e versões de músicas já conhecidas, feitas especialmente para fazer dançar, do mais velho ao mais novo, ainda com tempo para enaltecer uma das iguarias mais adoradas do festival: sangria de melão.



Com tudo isto, pode concluir-se que houve música (e actividades) para todos os gostos, como a diversidade do público deste festival pedia, algo importante de realçar pela beleza que se pode encontrar neste factor: para onde quer que olhássemos era possível ver jovens, idosos, adultos e famílias com bebés, crianças e cães por todo o lado, algo que se traduziu em tantos momentos ternurentos; miúdos e miúdas que passavam o dia descalças debaixo dos aspersores de água ou a saltar à corda, dando de caras com os mais velhos — que descansavam na sede e trocavam dois dedos de conversa — para no fim do dia adormecerem nos braços de seus pais, que juntos viam um concerto de B Fachada e Aldina Duarte. Ou Rui Reininho, como pudemos testemunhar na primeira pessoa: com uma mantinha pelas costas, um casal mais velho via o cartaz no seu tablet enquanto apreciava o concerto. E os que não se deslocavam lá abaixo, viam da janela de suas casas com um sorriso repleto de curiosidade estampado no rosto.

Todo este ambiente abre espaço para que se conheçam pessoas, se façam amigos e se testemunhem momentos tão cómicos que ficam para a memória, como aquele bem caricato passado numa das casas de banho. Um “orientador de urinóis“, sim, era assim que era descrito, justificava o seu “trabalho” dizendo, “às vezes pensa-se que não há mais urinóis ou casas de banho disponíveis e afinal há”, algo que se estipulou e foi assumido por outro jovem que dizia: “‘tavas a fazer cá falta, há bocado isto ‘tava uma desorganização que até pensei ‘o gajo deve ter ido jantar’.”

E é neste sentimento de comunidade e pertença que se constroem os alicerces do Bons Sons, onde qualquer alma que passe vem sem artifícios numa leveza de ser que contribui para tudo o que se passa lá. Entre idas e vindas do campismo, veste-se da maneira que deu para chegar a tempo do próximo concerto, às próximas sessões com aquele amigo que tem uma viola e canta as “Dunas” ou Toranja no café improvisado e às longas conversas em bancos corridos enquanto se bebe uma cerveja e alguém ao lado assa febras. Mas era sempre aquando de mais um pôr-do-sol na aldeia que surgia a introspecção: o lema “vem viver a aldeia” não podia ser mais bem cumprido.

Tudo isto é cultura, bem viva, por sinal, mostrando o forte poder de metamorfose que a tradição consegue carregar. Felizmente, existem festivais como este, há anos prontos para acolher as suas mutações e enaltecê-las, estejam elas no próprio berço ou não. Numa palavra, Cem Soldos é “alma” e este é um festival como existirão poucos: quem vai fica a querer voltar e leva certamente um bocadinho da aldeia embrenhado em si.


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