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Fotografia: Beatriz Dias
Publicado a: 18/08/2022

Enquanto existirem discos para se fazer, o autor de Rapazes e Raposas vai continuar.

B Fachada: “Já não me sobram problemas que eu não consiga resolver nas canções”

Fotografia: Beatriz Dias
Publicado a: 18/08/2022

Embrenhados na atmosfera idílica de Cem Soldos e ouvindo Bons Sons a cada segundo, foi num backstage igualmente agradável que nos encontrámos com B Fachada. Prestes a actuar no palco Zeca Afonso, um palco “virado para a zona rural” da aldeia e com um álbum que tão bem combina com esse bonito cenário, adivinhava-se um concerto memorável, à luz da lua e em comunhão com todos os rapazes, raposas, crianças, adultos e todas as outras espécies que pudessem ser embaladas na sua folk-pop numa agradável noite de Agosto. Antes de tudo isso e para saciar a curiosidade, o Rimas e Batidas falou com o músico, uma conversa sobre o que está feito e o tanto que ainda está por fazer. 



O que significa o Bons Sons para ti?

O Bons Sons, então, eu vim uma vez, há 12 anos, e foi um dia muito especial porque toquei à tarde com o Martim [Torres]. Na altura, o Martim tocava comigo contrabaixo. Toquei à tarde com ele ali no palco Giacometti e depois à noite toquei com Diabo Na Cruz no palco grande e foi um dia muito especial. Depois lembro-me que o Norberto [Lobo] tocou na igreja e eu fui ver o concerto dele. Foi mesmo um dia memorável e o formato do festival ainda continua a ser muito especial, portanto nessa altura ainda mais especial era, assim como único e pioneiro, penso eu. Apareceram outras coisas parecidas, mas a ideia da transformação do espaço e do festival neste espaço é muito interessante e continua a resultar muito bem e a fazer muito sentido.

Sentes que isso influencia os concertos aqui? Quais são as expectativas para hoje?

Acho que isso define um bocado os concertos que acontecem aqui, de certa maneira, de certeza que sim. E não sei, eu tento sempre que o concerto seja um concerto o mais presente possível, portanto eu vou tentar estar o mais permeável possível à influência do espaço e do público, é um anfiteatro muito lindo. Este palco não conhecia, um palco que é aqui virado, digamos, para a zona rural de Cem Soldos, em vez de ser ali na zona urbana [risos] e é um palco muito lindo aqui virado para as oliveiras e ouvi dizer que tem estado uma lua fabulosa aqui por trás.

Já tens muitos álbuns, muita música e vários anos de carreira. O que dirias que mudou mais desde o B Fachada que tocava “Quem quer fumar com o B fachada” para o B Fachada agora de Rapazes e Raposas?

Eu acho que vai mudando sempre muita coisa, vou sempre tentando corrigir aquilo que vão sendo os pontos fracos que vou detectando em cada momento. Claro que isso é sempre muito subjectivo e a minha observação sobre o meu próprio trabalho é muito particular, mas depois isso é que desbloqueia sempre um bocado o trabalho que vem a seguir. No Rapazes e Raposas, acho que estou mais satisfeito com a maneira como escrevo agora, já não me sobram problemas que eu não consiga resolver nas canções. Já tenho mais facilidade em resolver os problemas até ao fim e ficar mais satisfeito no final com o resultado.

O que inspirou este Rapazes e Raposas, a começar pelo título? 

[Risos] 

Foi a fonologia da coisa? [Risos]

[Risos] Sim, o nome do disco surgiu quase antes do disco, é um nome que já estava estipulado do género: “Grande nome para disco este” [risos]. Acabou no fim por ir ao encontro do tema do disco e depois quando comecei a escrever já tinha aquele nome logo à partida. Mas o que inspirou o disco… eu acho que as crianças. Os meus filhos têm um papel importante na inspiração, no sentido em que me levam a querer fazer um disco mais completo e mais final, lá está, tentar finalizar as canções; e eu tentei que fosse um disco que tivesse umas canções mais para crianças, umas canções mais para adultos, umas canções mais para rir, outras mais para chorar, umas canções para pensar, umas canções mais para dançar. Tentei que o disco tivesse de facto uma panóplia de géneros e de estilos de canções.

E nota-se que tens também a influência da tradição em algumas músicas, como por exemplo em “Padeirinha”. Atribuis isso também ao facto de estares a querer deixar ou ensinar isso aos teus filhos e a faixas etárias mais novas?

Mais ou menos, eu não tenho uma relação nada nacionalista com música tradicional, não é uma coisa que fale aos meus princípios, não tenho relação nenhuma com isso. O que eu tenho é a música que está ao meu alcance, isso sim. Eu queria fazer também um disco centrado na viola braguesa e o objectivo era também provar a mim e ao meu próprio trabalho – que também foi uma coisa que eu descobri com este disco — que não é urgente descobrir sempre um som novo, no sentido em que está sempre muito mais música por fazer do que a que já está feita. É um disco que tem essa perspetiva acerca do meu próprio trabalho, no sentido em que vem mostrar aos outros discos que há mais discos por fazer do que os discos que estão feitos e isso também era importante para mim naquela altura. E nesse sentido a braguesa e o som tradicional facilitam, porque ajudaram-me a fazer o disco mais simples que consegui fazer e era uma coisa que eu queria: queria mostrar que mesmo dentro do mais simples possível continua a haver sempre mais coisas por fazer do que as coisas que estão feitas.

E ficaste satisfeito? Mudavas alguma coisa?

Fiquei. A gravação do disco custou um bocado porque foi forçada ao confinamento — o disco era para ter sido feito noutra situação. Mas depois, na verdade, o confinamento e a maneira como nós acabámos por ficar em Mértola aqueles dois meses, num sítio muito bonito e muito privilegiado para as crianças e para nós também, fez todo o sentido.

Ficaram numa residência artística? 

Não, era a casa de um amigo onde nós acabámos por ficar retidos naquela semana [risos]. Ficámos, começámos a levar o material para gravar e acabámos por decidir que tinha de se fazer ali o disco, não ia haver outra altura melhor para se fazer. E houve canções que foram acabadas lá: a “Natureza Radical” e canções que têm mais a ver com o meio rural, que se calhar não teriam sido acabadas da mesma maneira se eu tivesse ficado em Caxias, claro.

Lembras-te de alguma música que tenhas tido mais dificuldade em concretizar e também uma que tenha surgido mais facilmente? 

Não, são todas muito difíceis de concretizar [risos]. Tem tudo que levar muitas e muitas camadas de correção e de começar de novo, fazer tudo outra vez, escrever tudo outra vez e outra vez e outra vez.

Como é criar hoje em dia? Qual é o cenário ideal agora?

Quer dizer, eu tenho três filhos [risos], há muita coisa para fazer no dia a dia, é muito difícil. Tenho que aproveitar os tempos que tenho. Antes trabalhava muito à noite, agora não consigo, não posso, tenho que trabalhar no horário normal.

Tens três crianças: são as que estão na capa do disco?

Sim, são eles que estão na capa do Rapazes e Raposas. Foi a Mané [Pacheco], a mãe deles, que tirou.

Tens alguma música pela qual tens um carinho especial e que adores tocar ao vivo?

Eu gosto bastante de tocar ao vivo as músicas deste disco. Tenho um carinho especial pela “Natureza Radical”, que é uma música que eu cantava no confinamento para eles [crianças] dormirem à noite. Era a música assustadora e tem um significado especial por causa disso, por ser a música assustadora que no fundo reconforta no momento de ir dormir. Por essa razão, é talvez a música com a qual tenho uma relação mais pessoal no disco.



A minha música preferida tua (e de muita gente) é a “Contramão”. Não se encontra para além do YouTube e raramente a cantas ao vivo. Porque é que a odeias?

Eu não odeio essa música [risos]. Essa música faz par com a “Monogamia”, é exactamente da mesma semana e ficaram as duas músicas no intervalo entre o Um Fim de Semana no Pónei Dourado e o primeiro disco homónimo dos melões [B Fachada que tem melões na capa] e ficaram de fora do disco, não cabiam naquele disco dos melões. Mas essa música entrou agora há pouco tempo na série Sara e eu fiz uma gravação, existe uma gravação caseira dessa música. Mas, sim, é uma música que eu toquei talvez três vezes ao vivo. Mas tem alguma graça esse mistério e o tipo de fenómeno, porque se aquele concerto do Maxime não tivesse sido filmado, a música teria desaparecido. Não estava muita gente nesse concerto, não era uma altura em que os concertos estivessem muito esgotados [risos].

És uma pessoa algo reservada, lanças músicas sem anúncio prévio e com intervalos consideráveis e as pessoas consomem isso com um fervor que é de louvar. A que achas que se atribui essa consistência? 

Sou independente, eu mantive sempre o meu estatuto de independente, desde o princípio. Para ter uma campanha de promoção de um disco teria que ser eu a suar e a ter que ter esse trabalho e depois punha-me numa posição que não quero estar, de estar a escrever sobre o meu próprio disco. Não é uma coisa que eu goste de fazer, especialmente neste momento específico em que as pessoas têm sempre muita pressa em transformar tudo numa notícia para a poderem consumir num formato que entendem que é: “Olha esta novidade!” Eu achei alguma graça, também se calhar porque posso fazer assim, ao facto de as pessoas terem que ir ouvir o disco para saberem que disco é que era, porque não havia nenhum tipo de informação nem nenhum tipo de anúncio prévio, nem nenhuma música que as pessoas já conhecessem nem nada. Era tudo surpresa e tinha que se começar numa ponta e eu dei muita importância ao fim do disco, então quem chega à outra ponta tem uma opinião… e também fazia parte do conceito do disco tentar fazer um disco muito mais comprido do que os meus outros discos, para também ter algum grau de surpresa aí. Tem um tema instrumental perto do fim que é um retrato da salinha onde nós gravámos o disco, é uma história que podia ser contada num texto de apresentação mas que fica só por si, é só um microfone stereo que está a gravar, a lareira à volta de onde nós gravámos o disco e aquilo é só uma viola braguesa a cantar a música.

Foi uma sessão de improviso?

Não, era uma canção que não tinha letra e eu então dei a voz à braguesa e pus na mesma e fizemos uma faixa que tem a rola a cantar, que entra em dezenas de outras pistas do disco, mas que nunca se ouve no meio da confusão, mas que ali está sozinha e se ouve sempre. Como nós lhe chamávamos: a puta da rola [risos]. E, pronto, para mim o disco tem um discurso musical e quem quiser ouvir ouve, quem não quiser ouvir, não ouve. Mas a verdade é que o ser independente implica um bocado aceitar esse risco de deixar que o disco tenha só aquilo, não vamos estar a fazer força para aquilo espremer o sumo do público, espremer o público até ao último par de ouvidos. Não é preciso, até porque é um trabalho que eu acho que é um trabalho a longo prazo, porque depois como sou independente os discos são meus, todo o património é dos meus filhos e, portanto, não tenho interesse nenhum em esgotar aquelas músicas este ano, as músicas podem ficar aí, para quem quiser ir ouvir mais tarde. Talvez alguém um dia venha a cantar aquilo, um cantor ou uma cantora a sério que cante aquilo numa versão boa, uma coisa especial, tudo isso é para ter o seu próprio ritmo e não aquela fossanga de despachar e de ir rapidamente para o seguinte, para o próximo e próximo e próximo.

Tens alguma lembrança mais predominante de um espetáculo ao vivo?

Tenho muitas lembranças de concertos, mas o concerto é para ser queimado na hora. Não é assim uma coisa que seja para guardar memórias, porque depois isso vai sempre ter a uma parte de quebrar a quarta barreira ao contrário e isso é quase como quebrar a quarta barreira do público para mim, a quarta barreira que me protege a mim. Eu gosto de quebrar a quarta barreira de mim para o público e do público reparar que é um concerto e que é uma pessoa que não é uma máquina, não é um computador que está a acontecer, mas quebrar a quarta barreira do público para mim é mais difícil; depois vou para casa remoer nisso e perde a naturalidade. Mas, sim, há sempre muitas memórias com os concertos, principalmente de concertos em que eu não estou sozinho em palco e estou a partilhar o palco com outras pessoas e isso claro que é o lado da música que gera mais memórias pessoais.

Este é um festival que aposta muito em nomes novos da música portuguesa. Qual é o novo nome que mais te entusiasma?

Hoje vai tocar a Maria [Reis], que é uma pessoa que eu já sigo desde o princípio… não sei [risos]. Eu não sou um bom fã de música, também não sou um bom fã de livros para me perguntarem qual é que é o escritor do ano passado que estou a ler. Não estou a ler nada do ano passado. Também não sou um bom fã de música, não sou uma pessoa muito curiosa com o que aparece de novo, já fui mais. Há duas ou três coisas que me despertam o ouvido, quando ouço uma pronúncia que ainda não ouvi, quando ouço uma maneira de cantar que ainda não ouvi, alguém que está a dizer uma coisa ou a falar de um assunto de uma maneira que eu ainda não reparei, ou que ainda não ouvi, por exemplo. A Maria [Reis], o Vaiapraia… tem que ser alguém que faz as coisas com alguma novidade, tem que haver alguma novidade; eu para isso tenho alguma sensibilidade. Mas nunca acho que estou a perder alguma coisa que não conheça, antes pelo contrário, acho sempre que não vou gostar [risos]. Eu costumo dizer às pessoas para se prepararem porque nunca gosto de nada, sou sempre aquela pessoa que nunca gosta de nada e vejo sempre o lado que podia estar melhor de tudo, inclusive do meu trabalho. Sou um chato, pronto. E quando estou a descansar, quero ouvir música para descansar, não quero ouvir música para estar preocupado.

Talvez isso também se possa relacionar com o facto de não teres muitas colaborações. No entanto, tens algumas coisas muito bonitas como aquela sessão com a Bia Maria em A Música Portuguesa a Gostar Dela Própria. Há alguma colaboração que queiras realizar no futuro?

Eu vou colaborando como sei, “como tenho jeito”, e com as pessoas [que] aceitam, porque sou de facto chato e sou uma pessoa muito pessimista e muito negativa e é muito difícil trabalhar em conjunto, especialmente se for com pessoas que estão à espera de que eu vá à frente. Eu vou à frente só se for para não chegar a lado nenhum, porque chega-se ao fim do dia e continua-se exatamente no mesmo sítio onde se estava no início do dia. Só passados muitos dias é que se vê a diferença no trabalho. Não vim das bandas, não é assim, quando cheguei a Diabo Na Cruz, o Jorge [Cruz] já tinha aquilo muito bem montado, eu só tinha a acrescentar, não tinha responsabilidade nenhuma de começar nada do princípio nem de ser eu a desbloquear as ideias, antes pelo contrário, o meu talento é depois no fim; é quando  parece que está tudo feito e eu vou corrigir tudo no fim e trocar as palavras todas outra vez e tirar as palavras todas que estão a mais e fazer não sei o quê. É um trabalho que o Éme, por exemplo, gosta muito que eu faça e é uma pessoa que aceita muito bem que eu lhe diga que o verso ainda não está tão interessante como o refrão e que ainda não está bem.

Dás muita importância à escrita.

Não sou eu que dou muita importância à escrita, é a palavra. A voz do ser humano sobrepõe-se sempre a tudo o resto que está a acontecer, porque o nosso ouvido está treinado para as subtilezas da voz do ser humano e a música já é toda fabricada depois de existir a voz. E os instrumentos já são feitos a partir das noções musicais da voz e de cantar. Por isso é que quando existe uma voz, por muito baixinha que esteja, o ouvido desperta de uma maneira… é muito difícil a voz não ser o centro da canção. É preciso um esforço orquestral muito grande, um coro, uma coisa; o Kamasi Washington faz isso, um coro que entra e que sai, mas aqui na nossa música que nós fazemos de artesanato, é impossível a voz não ser o principal. E depois a língua é rítmica naturalmente e o ritmo da língua dá sempre muitas pistas acerca do significado daquilo que estamos a dizer, porque nós não dizemos as palavras como as escrevemos. Nós não dizemos metade ou mais de metade dos sons que estão lá escritos, deixamos subentendidos no ritmo e no contexto e na maneira como comunicamos uns com os outros. E quando se consegue passar isso para uma canção, está-se a trabalhar um território muito especial, porque começa a haver ali muito potencial.

Já tens tantos anos de carreira, sentes que ainda te falta fazer alguma coisa?

Acho que sim, acho que tem que faltar, não é? Tem sempre de faltar. É continuar a fazer, não interessa, tem que se ir continuando a trabalhar, fazendo mais discos. Nem eu poderia nunca fazer de outra maneira, eu não tenho nenhuma outra maneira de criar os meus filhos sem ser o meu trabalho, sem ser este trabalho e o trabalho de fazer discos, principalmente. Portanto, eu tenho que continuar; mais um disco à braguesa, mais um disco ao piano, um electrónico, ir avançando para fazer melhor e para fazer diferente. Há sempre muita coisa para fazer, se não o que é que os seres humanos que chegarem daqui a 500 anos tinham para fazer? Se o pós-modernismo tivesse razão e estivesse tudo feito? É exactamente ao contrário. Continua sempre tudo por fazer.


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