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Fotografia: Will Cooper Mitchell
Publicado a: 28/12/2020

Tudo é paisagem.

Bonobo e a metamorfose símia de Black Sands, 10 anos depois

Fotografia: Will Cooper Mitchell
Publicado a: 28/12/2020

Com mais de 20 anos de carreira, Simon Green, mais conhecido como Bonobo, tem sido alvo de interesse constante por parte de uma vasta audiência de apreciadores de música electrónica, mas também de um jazz global mais acessível (muitas vezes descrito como jazz lounge) – a editora de que faz parte há largos anos, a Ninja Tune, ficou também associada a esse tipo de sonoridade por trabalhos de Mr. Scruff ou The Cinematic Orchestra – e da música chill out, duma extrema funcionalidade para o som background de um café, por exemplo, mas também, no contexto mais actual, para as tão faladas playlists que concebem a música como mero papel de parede aural. Por essas mesmas associações, o produtor sofreu, em grande parte pela crítica especializada, o justo cunho de ser considerado “middlebrow“, sendo a arte middlebrow aquela que é de muita qualidade, mas que “peca” pela sua acessibilidade excessiva; a sua, digamos, simplicidade. No entanto, em 2010, a sonoridade de Bonobo transformou-se e cortou com essas associações à sua música. A culpa foi de Black Sands, disco que fez 10 anos em Março passado.

De facto, o seu primeiro álbum, Animal Magic, que também celebrou o seu redondo vigésimo aniversário em 2020, era bastante mais loopbased, centrado numa abordagem mais hip hop/trip-hop na composição. Na altura foi percepcionado e falado como algo bastante simples, monótono e com pouca personalidade, dando razão às apreciações negativas sobre o downtempo, que tem muito de som de fundo, mas pouca substância para ser memorizada ou mesmo repetida.

Assim, Black Sands é um registo que bebe de instrumentação jazzística – como o seu antecessor Days To Come já bebia –, à volta de batidas e estruturas musicais da música electrónica, à semelhança do que os colegas de editora The Cinematic Orchestra já faziam. É, muito provavelmente, o seu trabalho mais orquestrado para o formato banda com muita instrumentação acústica, enquanto posteriormente The North Borders foi mais corpulento e electrónico e Migration – o mais recente – foi mais contido e melancólico, numa espécie de aglutinação destes dois registos que o antecedem.

Porém, não é com o pós-Black Sands que este disco se afirma; é com a retrospectiva à primeira década da carreira de Bonobo que podemos sentir que em 2010 há um impacto, principalmente porque para trás deste trabalho muito do que foi feito é pouco memorável. Black Sands destoa dessas considerações sobre o downtempo e o chill out, desde os ritmos mais dinâmicos e irregulares de “El Toro”, à agressividade dos graves e das batidas sentidas em “Kiara” ou “Kong”, que parte do seu interesse crescente pela cena bass music inglesa – influência essa que se viu mais presente posteriormente em The North Borders. Acrescentam-se mais cores neste álbum, à volta das surpreendentes síncopas de “Eyesdown” ou “We Could Forever”, mas também das dançáveis “1009” ou “All In Forms” ou no trip hop de “Stay The Same” e na catártica e altamente celebrada faixa homónima, “Black Sands”, sem qualquer dúvida o apogeu do álbum, um belísismo instrumental numa valsa jazzística com um crescendo brutal, e um incrível solo de clarinete.

E de facto, este disco de Simon Green é, até hoje – e apesar da génese ideológica e narrativa de Migration, à volta da sensação de vida nómada da estrada – o seu trabalho mais “global”, pois, além de abranger uma variedade de timbres e instrumentos muito interessante para um trabalho de downtempo desta envergadura, apresenta ritmos e texturas das quais é difícil sequer apontar o continente em muitos dos momentos – apesar de se terem sido apontados para os ritmos sul-americanos e para melodias asiáticas (na faixa de abertura).

Tal como SBTRKT tem Sampha, Vince Staples tem Kilo Kish ou os Massive Attack têm Tricky e Horace Andy, Bonobo trouxe Andreya Triana para Black Sands, colaboradora de Mr. Scruff e Flying Lotus, que aparece em grande em “Stay The Same”, na qual surge contida mas a sobrevoar a caixa de música e a guitarra acústica, enquanto em “The Keeper”, um tema mais desinteressante, mais performancefriendly, encontra-se no centro do instrumental. No entanto, as suas passagens, embora adequadas e insubstituíveis – é difícil imaginar abordagens e melodias diferentes das registadas em Black Sands – nunca chegam a ser tão memoráveis quanto os arranjos e os timbres tão distintos da orquestração de Green.

Em grande medida, a obra de Simon Green pode ser olhada de forma análoga à capa de Black Sands: a composição paisagística montanhosa, tão impessoal, não permite que olhemos a pormenores e detalhes relevantes. Não aparenta assim qualquer unicidade, à partida. No entanto, paradoxalmente, é neste Black Sands que surge a identidade sónica de Bonobo. Há 10 anos deu-se a metamorfose de um dos mais importantes símios da produção electrónica mais lenta e acessível, tendo-o elevado a outro estatuo, levando-o a uma década bastante mais próspera – a que viu nascer este mesmo disco, The North Borders, Migration, algumas faixas soltas e ainda o subvalorizado EP mais house Flashlight – e influenciando artistas e beatmakers duma geração que seguiu os passos de grandes figuras como o próprio Simon, mas também colegas com quem ombreia como Four Tet, Flying Lotus ou até Nujabes e Nosaj Thing.

O seu trabalho é acessível e paisagístico, sim, mas nem por isso esquecível.


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