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Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 19/11/2021

Música solarenga também surge debaixo de céus cinzentos.

Benny Sings: “Aquilo que eu queria fazer era música que soasse àqueles refrões que escutava nos discos de rap”

Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 19/11/2021

Por vezes, a vida traz-nos felizes acasos como este. Durante a viagem a Amesterdão para assistir à edição deste ano do Super-Sonic Jazz — a primeira de uma série de reportagens aterrou por cá durante o dia de ontem — cruzámo-nos com Benny Sings, um dos raros casos de artistas europeus cuja música ajuda a embelezar o catálogo da prestigiada Stones Throw, ele que, curiosamente, estava a meros dias de se apresentar ao vivo no nosso país, concerto esse que acontece amanhã às 20h30 no Coliseu dos Recreios, em Lisboa, a propósito do Super Bock em Stock.

Não havia, por isso, altura mais oportuna para nos sentarmos à conversa com Tim van Berkestijn, que em Abril passado tinha até editado Music, o seu segundo álbum pela editora de Los Angeles, e tem neste momento a sua Beat Tape IIrecheada de interessantíssimos convidados, diga-se — na calha para um lançamento a 10 de Dezembro.



Estava a ler sobre ti a caminho daqui, e apercebi-me de que existe esta ideia recorrente do quão solarenga e californiana a tua música soa. Talvez isso explique a tua ligação à Stones Throw, mas não explica como é que uma pessoa como tu, que vive nesta zona do globo, consegue fazer passar essa ideia através da música. Como é que explicarias a forma como o teu som evoluiu?

Eu vivi numa cidade pequena. Nos 90s tiveste aquela cena enorme do grunge e toda a gente era mais sombria, vestiam roupa preta. Tinhas bandas como os Nirvana a representar aquilo que era o lado alternativo da cultura daquela altura. Eu e os meus amigos meio que formámos uma rebelião contra isso. Éramos skaters. A cultura que nós consumíamos era igual à dos skaters americanos. Isso vinha da California e formou-se a partir de toda aquela cena do surf que veio antes. Essa é uma cultura muito solarenga. Era a nossa forma de ir contra toda aquela cena mais negra da altura.

Deve ter sido durante essa juventude que começaste a coleccionar os teus primeiros discos. Que cenas é que te marcaram na altura?

Acho que o hip hop foi sempre a base. Lembro-me de ouvir o primeiro álbum do Snoop Dogg… Mas, ao mesmo tempo, também andava a ouvir Jamiroquai e assim. Também ouvia jazz e uma grande influência para mim é o Chet Baker Sings. Gostava especialmente desses álbuns em que ele cantava os standards. Ouvia também outras coisas, tipo Astrud Gilberto. Só que nunca fui verdadeiramente um crate digger. Nunca tive muita coisa. Mas tinha alguns discos dos meus pais e, esses poucos, tocámo-los imensas vezes. Não posso dizer que tenha sido influenciado por muita coisa. Apenas esses poucos álbuns.

Estava a dar uma vista de olhos ao teu estúdio e consegui encontrar lá instrumentos de percussão, teclas, guitarras e, claro, todos aqueles apetrechos electrónicos que usas como ferramentas de produção. Qual é que foi o teu primeiro instrumento? Tiveste algum tipo de formação nesse sentido?

Eu toquei clarinete quando tinha sete ou oito anos.

Na escola?

Não. Fora da escola. Lembro-me de ser um grande fã dos Wham! e, então, fui para aprender a tocar saxofone. Só que as minhas mãos eram demasiado pequenas e calhou-me o clarinete. Mas foi fixe. Consegui algum tipo de educação musical, embora odiasse essa parte.

Basicamente, o que tu querias era apenas tocar o “Careless Whisper“. Quem nunca?

Exacto. Depois disso, já pela altura do secundário, aprendi a tocar guitarra. Comprei uma guitarra muito, muito barata. Meio ano depois, veio a bateria. Um amigo meu tinha um baixo e, juntos, já tínhamos os instrumentos necessários para formar uma banda.

Logicamente que tu tens um passado e que, sem ele, não tinhas chegado onde chegaste. Ainda assim, há um detalhe que me salta sempre à vista, já que és dos poucos artistas europeus a pertencer à Stones Throw. Como é que se deu essa ligação?

Eu nem sei. Foi uma ideia do meu manager, basicamente. Ele pensa sempre mais alto do que eu. “Nós temos de ir a Los Angeles e temos de ir visitar a Stones Throw.” É claro que eu conhecia a Stones Throw, desde todo aquele fenómeno do J. Dilla. Eram uma grande editora, a meu ver. Eles foram uma inspiração para mim. Não há assim muitas mais labels que eu te possa apontar, que tenham aquele selo de qualidade que eles têm. No mesmo patamar punha, talvez, a editora daquele gajo… Que canta “Daft Punk is playing at my house, my house”.

O James Murphy, dos LCD Soundsystem?

Isso. E o nome da editora, qual era?

A DFA Records.

A DFA Records e a Stones Throw eram das poucas editoras para as quais eu olhava e pensava, “isto é que é uma label a sério!” Por isso, ter chegado até aqui significa muito para mim. Eu nunca tinha imaginado que a minha vida fosse tomar o sentido que tomou. O meu manager disse “vamos”. E nós fomos. Fomos visitá-los e…

Assim do nada? Experimentaste ir lá bater à porta?

Sim, sim. Enviámos um e-mail a perguntar se podíamos passar por lá e eles responderam que sim. Então fomos lá.

Conheceste logo o Peanut Butter Wolf?

O Chris? Sim. Foi a ele que mostrei as minhas demos do City Pop. Ele disse, “se quiseres levar uns discos, podes ir ali à parte da loja.” Ficámos… Uau.

Tipo miúdos numa loja de doces.

Mesmo. Eu e o meu manager ficámos a olhar um para o outro, a pensar em toda aquela cena estranha que estava a acontecer [risos]. Fomos embora e…

Com uns quantos discos a mais.

Discos, t-shirts e essas cenas assim. Nós continuámos a enviar-lhes e-mails mas não nos disseram mais nada durante, talvez, um ano. Depois fez-me sentido, porque tudo aquilo que tinha acontecido lá foi mesmo estranho. Numa altura em que já nem esperávamos por mais nada da parte deles, o Chris envia-nos um e-mail, do tipo, “bora lá fazer esse disco.” Fiquei… Yeah! E foi assim que tudo começou. É essa a história.

Tu mencionaste o J. Dilla há bocado. Quem eram os produtores para quem olhavas mais? Aqueles que possas dizer que aprendeste algo ao ouvi-los?

O J. Dilla teve uma importância enorme para mim. Especialmente aqueles êxitos, como o “The Light” do Common. Aquele álbum do Q-Tip, o Amplified, teve um grande peso para mim. Entre outras coisas das quais não me recordo agora. Como o material de Slum Village, que teve uma influência insana em mim. Todo o trabalho de bastidores dele na cena do D’Angelo, claro, também me marcou imenso.

Do Dilla, qual dirias que foi o melhor ensinamento que obtiveste? Há sempre aquela conversa, de que uns gostavam mais da escolha dos samples, outros era a forma como ele montava a secção da bateria ou a maneira como ele quebrava as regras…

Para mim, era toda aquela cena do groove. Era tão fresco naquela altura. Era de ficar pasmado. Mas eu não diria que isso tenha influenciado directamente a minha música, talvez por ter tido algum receio em tentar falsificar essa corrente ou assim, sabes? Aquilo era uma cena muito específica e era por isso que nós adorávamos. Mas também posso apontar a escolha dele em relação aos samples, porque era enorme. A “The Light”, por exemplo, tem lá aquele sample do Bobby Caldwell. Na verdade, ele samplou muita blue-eyed soul, o que é engraçado. Quando eu comecei toda esta cena do Benny Sings, aquilo que eu queria fazer era música que soasse àqueles refrães que eu escutava nos discos de rap. Mas sem as partes do rap. Os versos seriam cantados. Foi isso que eu tentei emular. Depois, tive jornalistas que me disseram que eu fazia blue-eyed soul. “O que é isso, de blue-eyed soul?” Fui pesquisar e fui dar a esses gajos, como o Bobby Caldwell. Talvez tenha sido essa particularidade na música dele que me fez ligar tanto ao que ele fazia, da escolha de samples dele. Então, passei a fazer blue-eyed soul. Daí toda aquela cena na Stones Throw ter sido estranha para mim. Porque a música que eu lhes estava a apresentar, na verdade, tinha mais a ver com a música que o J Dilla samplava do que propriamente com toda a irreverência que ele trouxe ao hip hop.

Aquilo que tu fizeste até aqui também foi algo premonitório. Hoje, tens gajos como o Thundercat, por exemplo, que está a emular o Michael McDonald. Talvez esse tipo de som tenha ficado esquecido por algum tempo. Tinhas aquela conversa de alguns produtores, que diziam “eu não samplo nada que tenha vindo depois de 1973”, ou algo desse género. De repente, o fim dos 70s e o início dos 80s começam também a surgir enquanto samples. Tu meio que fazias isso antes de ter virado tendência.

Sim. Eu comecei por volta de 2001, a tentar emular os tais samples de hip hop e ainda sem ter a noção de que estava a fazer blue-eyed soul. Só que isso não ressoou muito na altura. O meu sucesso foi muito pequeno, nada comparável como o que tenho agora. Eu estava mesmo a tentar, com força. “Este é o caminho! As pessoas têm de adorar esta música sumarenta!” Mas não foi, de todo, assim. Houve um certo momento, por volta de 2010, em que tudo voltou a ficar meio sombrio, com aquelas influências dos Depeche Mode e toda a cena da new wave. Aquele som mais jazzy parecia estar destinado a desaparecer para sempre. Mas, de repente, lá para 2015 ou 2016, houve um revivalismo de toda aquela cena orgânica do som do jazz. Talvez as pessoas tivessem mais informadas, derivado à Internet. Mas foi do nada, que toda a gente passou a adorar blue-eyed soul. O meu telefone não parava de tocar. Foi estranho, porque eu tinha decidido acabar com Benny Sings e que ia só passar a escrever para outros artistas. Ia viver uma vida mais tranquila. Mas, de repente, tenho putos de 16/18 anos a quererem trabalhar comigo porque cresceram a ouvir discos meus, comprados pelos pais deles. Mas eles, por causa da internet, estão mais bem informados que os pais. O Michael McDonald e esses gajos? Eles estão a par disso. E isso teve uma importância enorme na minha carreira, porque me trouxe de volta à ribalta. Estou a apanhar essa onda, de momento.

Tens o próprio título de um dos teus álbuns, City Pop, a ser utilizado para descrever um certo tipo de música japonesa. Outro caso premonitório.

Pois é [risos].

Teres um trabalho cujo título acaba por virar uma palavra-chave pelas quais as pessoas pesquisam quando querem comprar discos é uma cena incrível. Mas, entretanto, estás prestes a lançar o segundo volume da tua Beat Tape. Como é que conseguiste reunir aqueles artistas todos?

Fui eu e enviar uma data de coisas às pessoas. Tinha beats aí, parados. Na Beat Tape anterior, usei apenas beats. Não tinha o hip hop tão vincado, talvez. Entretanto tinha aí uma data de beats e pensei que, dado eu estar a atravessa uma fase de sucesso, talvez as pessoas quisessem trabalhar comigo. “Quem sabe?” Enviei esses beats a muita gente e esperei pelas respostas.

Surpreenderam-te?

Claro! Sem dúvida! Foi muito bom.

Queres falar-me sobre a forma como te estás a apresentar ao vivo? Em que formato é que te vamos escutar, em Lisboa?

O meu formato ao vivo afasta-se do hip hop. É uma banda, no seu verdadeiro sentido. Tenho bateria, teclas, baixo… Eu toco guitarra e canto. É uma banda normal mas eu estou muito orgulhoso dela, porque sempre me deu muito trabalho encontrar formas de levar a minha música para o formato live. Eu sou muito beat-based e há uma certa complexidade nos meus temas que dificulta a sua transformação para algo possível de ser replicado ao vivo. Sempre me deu muito trabalho encontrar as pessoas certas, o equipamento certo, os instrumentos certos. Eu trabalho muito com drum machines virtuais, samples. Trabalhar dessa forma ao vivo nunca funcionou comigo. De repente, encontro esta malta… Tem muito que ver com encontrar as pessoas certas.

Eles também são daqui, de Amsterdão?

A maioria deles vive por cá, sim. A cena simplesmente aconteceu. Fomos tocar para uma sala, sem saber muito bem o que iria sair dali, mas deu-se o clique. Agora, as coisas ao vivo soam totalmente diferente daquilo que surge no disco. É muito mais fluente, diria. Eu adoro tocar ao vivo. É estar ali em palco a fazer a música acontecer em directo. Não se vê muito disso por aí, nos dias que correm. És capaz de o ver no Tiny Desk Concert — e falo na versão do escritório, não desta mais caseira, em que cada artista faz a coisa como quer. É assim que se vê a música nascer.

Já calhou ires ao Tiny Desk?

Já fui, sim. Mas correu tão mal… Foi um falhanço total. Foi durante essa fase em que eu ainda estava à procura de como passar os meus temas para o formato ao vivo. Entretanto, já tive oportunidade de repetir, mas foi nesta nova edição, em casa. É meio que uma farsa. Eu toquei as coisas ao vivo mas…

O sentimento não é o mesmo.

Nada. E eu quero ter aquela sensação de que as pessoas estão mesmo lá. Que elas fazem sons e tu as ouves e sentes. Há tanta gente que tenta soar ao que está no disco. As pessoas são mais fechadas nesse aspecto. Já não se vê muita música a acontecer em cima de um palco.

Pode ser uma continuação do ciclo. Tu tentaste emular, através de máquinas, música que nasceu de forma orgânica, como o que ouvias na soul e no jazz. A máquina traduzia isso. Talvez sejam as pessoas, agora, a quererem elas próprias traduzir o que vem da máquina.

Verdade. Espero que, algum dia, se retire o electrónico da equação. Que sejam só as pessoas e os seus corpos, com os instrumentos, a fazer isso. Provavelmente nunca vai acontecer. Mas acho que as coisas são menos interessantes na forma como são hoje apresentadas.

A tua música, além da componente electrónica, tem também muita coisa orgânica. Vejo aqui todos estes instrumentos…

Claro que sim. Mas nunca são takes inteiros. Sou pequenos pedaços.

Samplas-te a ti mesmo.

Isso. E funciona bem. Não sei se alguma vez me vou descolar dessa forma de fazer as coisas, porque gosto mesmo de música feita através de máquinas. É óbvio, com todo o meu background do hip hop. Mas seria tão mais mágico ter apenas a tua mente, as tuas mãos e o teu instrumento a fazer tudo isso. Isso é magia. É o objectivo máximo disto tudo.

Antes de eu me ir embora e deixar-te mais à vontade, queres falar-me um bocado sobre o teu estúdio? Vejo ali uma LinnDrum, uma MPC…

É tudo coisas que eu já utilizei nos meus projectos. Essas não as uso de momento. Até porque estão todas estragadas [risos].

Mas têm bom ar. Davam boas peças de museu. E vejo ali um disco especial, que serve de prova de como a tua música consegue vender.

É verdade. Não é tudo inteiramente meu mas…

Certo. Mas tem a tua marca.

Tem, sim. É algo que me deixa orgulhoso. Sou só eu a exibir-me. Acho que é muito engraçado e muito bom ao mesmo tempo.

Estás no teu direito de te gabar. Uma última pergunta, agora que estamos com 2022 já ao virar da esquina: o que se segue a seguir na tua carreira?

Estou a escrever para um novo álbum. Faço sempre grandes planos… Ando a experimentar fazer as coisas afastado do computador. Escrevo canções ao piano, escrevo com a banda, escrevo quando estou ao lado de outro produtor… Já não sou só eu a produzir.

Será para sair pela Stones Throw?

Espero que sim. Esse é o plano. Certamente que vão surgir mudanças aqui e ali e eu terei de pensar em direcções diferentes. Mas estou mesmo ambicioso relativamente a este álbum. Porque acho que a música que já tenho é muito boa mas sinto que pode crescer ainda mais. Há qualquer coisa a mais para extrair dali.


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