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Texto: Paulo Pena
Fotografia: DFOX
Publicado a: 15/11/2021

Um "rescritor" pronto para assumir a dianteira.

benji price: “Eu sempre quis que as pessoas soubessem aquilo que consigo fazer com as palavras”

Texto: Paulo Pena
Fotografia: DFOX
Publicado a: 15/11/2021

Depois de ter plantado profundas raízes nos campos do hip hop nacional através da produção — e de ter saído da escuridão dos estúdios para as luzes dos palcos com uma estreia, enquanto rapper, partilhada a meias com ProfJam, em SYSTEM —, benji price começa agora a revelar todo o seu corpo artístico, da escrita à composição, das rimas às batidas. 

“Girassóis” é o primeiro (e luminoso) vislumbre do que está para vir em ígneo, o seu primeiro álbum a solo, que verá a luz do dia no próximo ano. O single que conta com contributos de EU.CLIDES, SPLINTER e Alex Bastos espelha a abordagem do, agora inequivocamente, MC e produtor num projecto trabalhado ao mais ínfimo pormenor e pautado pela variedade de caminhos procurados. 

Com ponto de partida neste tema inaugural para chegar a todo o processo criativo por detrás desta fase individual (mas nunca solitária), João Ferreira abriu a janela ao ReB — “sempre bem-vindo” — e deu a conhecer muito do que está por trás do que está para vir. Alguém que sempre preferiu estar por trás chega-se agora à frente com a energia potenciada por um lugar ao sol.



Este “Girassóis” é o primeiro single de ígneo, o teu primeiro álbum em nome próprio. Para já, o que nos podes revelar acerca desta estreia a solo?

Era o passo mais lógico neste ponto da minha carreira, de momento estou mais focado nos meus temas a solo. Foram muitos e largos anos a trabalhar, em grande parte, para outras pessoas em colaboração, mais enquanto produtor, fosse isso a fazer beats, a fazer mistura ou a dar alguma orientação criativa. E chegou a uma altura — que iniciou no ano passado — em que me apetece. A resposta mais sincera é essa: apetece-me fazer música por conta própria. Embora o lado de produtor esteja sempre presente, a minha vontade, de momento, é fazer música em nome próprio porque é o que me falta mais explorar. 

Acabou por ser uma entrada pouco convencional, com o SYSTEM. Suponho que não haja muitos casos de pessoas que tenham apresentado o seu primeiro projecto como uma colaboração, mas internamente, para nós, fez-nos muito sentido. Eu e o ProfJam já fazíamos música juntos há anos, já nos conhecíamos há muito tempo e estivemos envolvidos num projecto que tu conheces — e acho que a maioria conhece — que é a Think Music. Por isso, embora para um público generalista possa parecer pouco ortodoxo, a nós fez-nos muito sentido. Então, eu quis dar continuidade a isto com um projecto a solo, basicamente.

Se calhar essa entrada a meias foi uma transição para te assumires não só como produtor, mas também como rapper.

Sem dúvida. Para mim, foi um projecto bastante entusiasmante de fazer, o SYSTEM, mas foi um projecto largamente desprovido de uma identidade individual. Obviamente, nós falamos das nossas coisas, mas o nosso foco era mesmo capturar a nossa dinâmica, a nossa sinergia. Há sempre cunho de cada um no que fazemos, mas foi mesmo nós decidirmos colectivamente o que queríamos fazer, tentando dar espaço um ao outro. 

No caso deste álbum, achei muito mais… foi simultaneamente mais fácil e mais difícil — mais fácil no sentido em que, obviamente, não tenho de prestar contas a ninguém, estou só a fazer o que tenho vontade de fazer; mais difícil no sentido em que a exigência para comigo mesmo é muito superior. Em larga parte, eu estive mais focado em tentar mostrar o que eu consigo fazer enquanto autor de canções do que propriamente fazer só uma coisa muito linear, entendes? Estive mais preocupado em trabalhar num mindset do género: “agora vou fazer uma música assim, agora vou fazer uma música assado”. E encontrar uma visão e uma estética diferente para um número grande de faixas torna-se um processo um bocado mais complicado. Neste caso em particular, eu estava mesmo a apontar para ter muita variedade. 

Curiosamente, o “Girassóis” foi a primeira música que eu fiz para este projecto, ou seja, saí do SYSTEM, tive uma pequena pausa — estive para aí um mês e pouco sem fazer música — e depois pensei, “vou já começar a trabalhar num álbum meu e vou dar um 180 no que eu estive a fazer”. Eu não queria fazer uma coisa muito standard ou previsível. Então, tentei fazer um beat inspirado numa sonoridade um pouco anime, assim uma coisa muito de leve. Tudo o que está aí é instrumentação ao vivo, ou seja, isto sou eu a tocar piano, as baterias são todas ao vivo — excepto aquela última parte em que há um beat switch; essas aí são programadas. Mas mesmo essas programadas, excluindo um snare que lá está, são tudo chops de coisas reais. 

E eu achei engraçado convidar alguém, que neste caso é o EU.CLIDES, embora não sendo um featuring; é mais um cameo. Eu adoro o trabalho do EU.CLIDES, acho que ele é um dos artistas mais interessantes a surgir agora no panorama da música urbana nacional — chamemo-lo assim. Acho que o que ele faz é difícil inserir num género específico. Achei que era uma boa forma de terminar a música, até porque ele consegue trazer coisas que eu não consigo, e isso também reflecte muito o projecto em geral. Aqui dando um pequeno spoil: eu colaborei muito neste projecto, não há quase nada que seja 100% meu. E esta música capta muito isso. Ou seja, eu fiz o tema sozinho, montei uma maquete da coisa ainda sem instrumentação real, excluindo o piano; depois de ter encerrado a primeira versão da música, falei com um amigo meu, que também é um baterista e um produtor muito talentoso, que é o Alex Bastos, e disse-lhe: “reproduz-me estas drums que eu fiz aqui e tocas tu, e depois eu vou pegar nas tuas drums e transformá-las numa coisa que tenha a sensação de sample, que tenha um feeling de chop” — um bocado a ideia de vasculhar vinis antigos à procura de drum breaks para utilizar em música, como se fazia nos anos 90. Houve essa saída do sample para o acústico, para depois voltar para o sample. Foi uma abordagem engraçada que eu ainda não tinha explorado. 

Depois, em último plano, chamei o SPLINTER, que por acaso foi uma das pessoas com quem mais trabalhei para este álbum, e ele também deu os retoques dele no tema, debatemos algumas ideias que eu tinha que achava interessante ele abordá-las.

Mas digo-te uma coisa: essa música — não o beat em si, mas o texto — teve para aí cinco ou seis versões. A música em si, na sua concepção, tem à volta de um ano. À medida que eu fui avançando com o projecto, foi sendo necessário, para mim, ir sempre reinventando, não porque não estivesse satisfeito com o que tinha feito antes, mas foi mais no sentido de “agora tenho aqui todo um outro leque de músicas que eu preciso que se enquadrem todas umas nas outras do ponto de vista textual”, então acabei por fazer muita edição a este texto. Estão aí, ainda, algumas coisas do texto original, mas mudei mesmo muita, muita coisa. 

Além desses nomes que surgem no “Girassóis”, na capa e no vídeo do single aparece mais gente. Sempre trabalhaste com muita gente, e agora que vais partir para um projecto a solo fazes questão de continuar rodeado dessas pessoas mais próximas?

Sim, completamente. Eu queria incluir, de uma forma ou outra, pessoas que têm sido importantes no meu percurso. As pessoas que aparecem no vídeo, foi exactamente nessa energia, trazer malta que faz sentido. A ideia desse vídeo… eu não tive nada a ver com o assunto, por assim dizer; entreguei as rédeas à Bárbara Rosa, que teve a ideia e realizou o vídeo, e eu simplesmente encaixei as peças. Isso ainda é para reforçar mais aquela energia colaborativa que eu tenho vindo a falar. Até para o vídeo e para a capa eu também queria transportar essa sinergia, ou seja, ir falar com outras pessoas e dizer “os traços largos são estes, o que é que isto te faz sentir?”, e depois reinterpretar a interpretação, se é que isso faz sentido. 

No início falavas de como fazer música só para ti podia ser mais fácil, por um lado, e mais difícil, por outro. Agora sozinho, por onde começas?

No meu caso, de produção própria, não vem necessariamente de uma escassez de ideias, mas mais no sentido de o que é que eu ainda não fiz. Isso é a parte difícil da coisa; a parte fácil é, efectivamente, fazer. Por exemplo, eu como fiz o “Girassóis” podia ter feito outras sete ou oito nessa linha, mas até encontrar uma que me agradasse foi um bocado chato. Ou seja, eu tinha a ideia que queria fazer esse som, abstractamente, mas experimentei umas quantas coisas que finalmente chegaram a um ponto de partida que levou a essa música. E isso aplica-se a muitas outras coisas, porque aí eu já me estou a filtrar a mim mesmo. As minhas produções para fora sempre vieram de um sítio de fazer um monte de coisas, um bocado sem pensar nelas, e depois mandar para pessoas e cada um pega no que quiser. 

O mais difícil foi só mesmo encontrar aquele som. Mesmo falando aqui um bocadinho do que vem a seguir para o projecto, eu tinha em mente todos os tipos de som, de músicas que eu queria fazer, e andei aqui a experimentar muito até encontrar a melhor versão de cada uma dessas músicas. Curiosamente, o “Girassóis” até foi o mais difícil de fazer. 

Para quem se mantém sempre tão resguardado — até em concertos de outros artistas, muitas vezes escondido a dar apoio vocal —, como funciona o jogo de não quereres revelar muito de ti e ao mesmo tempo abrires-te tanto nestas canções?

Como tu estavas a dizer, eu, por natureza, sou uma pessoa bastante privada. Não é necessariamente uma questão de eu não gostar da exposição ou de lidar mal com ela; é mesmo só uma escolha, porque sendo — aspas muito fortes — uma figura pública e interagindo com tantas pessoas, eu já sou visto tanto tempo enquanto benji price, não enquanto João Ferreira, que também gosto de ter a minha tranquilidade.

Agora, neste álbum, quis falar um bocado mais disso, das minhas experiências pessoais. É claro que sendo isto rap vai ter umas egotrips aqui e acolá, até porque é divertido de fazer e é mesmo muito inerente ao género de música que é. Mas eu quis entrar por uma abordagem muito mais concreta ao meu percurso, até porque este álbum é para pavimentar, para criar fundações para explorações ainda mais intensas disso, mais para a frente. Eu sinto que, depois deste, ainda vou mais por aí. Eu sempre quis ter uma abordagem um pouco biográfica na minha música, mas senti que tinha de haver um trajecto para aí. Eu sempre quis que as pessoas soubessem aquilo que consigo fazer com as palavras e com as fonéticas, tanto que eu considero-me uma pessoa que não se repete muito — não necessariamente em termos de temas, mas de barras e rimas; tento sempre não utilizar as mesmas bengalas. Até para haver mais receptividade para as pessoas me ouvirem, mais acerca de mim mesmo, e estarem mais concentradas na minha caneta, eu tive de mostrar que consigo fazer isto. 

Há aqui uma coisa super importante de mencionar, e eu às vezes até sinto que há artistas que não falam dela o suficiente: fazer música é uma coisa muito divertida. Uma pessoa entretém-se. Se eu for fazer uma música, 99% das vezes o meu ponto de partida vai ser divertido. E a minha preocupação era mais divertir-me e poder mostrar às pessoas aquilo de que sou capaz, e só agora que sinto que já fiz isso é que estou a chegar a um meio termo, estou a fazer música com uma intenção concreta. É claro que haverá sempre essa componente de diversão, mas agora também há outras coisas que quero incorporar e que as pessoas sintam. Tanto que, falando aqui um pouco sobre o meu processo, o “Girassóis”, na primeira versão, eu não estava a dizer nada. Estava só a escrever em linha recta, e depois é que percebi o que é que era a essência do texto. A esmagadora maioria do meu processo criativo actual é isso, no que toca à escrita. Eu definitivamente sou um “rescritor”, eu edito-me mesmo muito.

Houve uma linha neste tema que me despertou a curiosidade em particular. Quando dizes “depois de potenciar um MC, agora a energia em mim é elevar a dois”, o que queres dizer? Há aqui vários significados?

Eu acho que, embora seja uma frase simples, há aí muita coisa que pode ser interpretada. No meu olhar em particular, eu vejo aí uma série de coisas. Uma tem um lado um bocadinho pessoal, que é: eu já ajudei a potenciar um MC, ou seja, esse MC funciona de um ponto de vista vago — pode ser qualquer pessoa com quem eu trabalhei. Agora o que eu quero fazer é elevar esse número a dois, ou seja, estou a falar de mim mesmo. E depois também há aí um trocadilho engraçado com o E=mc², que é uma potência, sendo que E é a energia e depois tens a potência. Está aí a desconstrução da fórmula. Eu reescrevi muitas vezes essa barra para ela funcionar dessa forma, porque às vezes as palavras têm de estar numa posição muito específica. É uma preocupação que eu tenho na minha escrita, e para este álbum e esta canção estive muito focado nisso. Estive mesmo obcecado com o frasear certo. Esse é um grande exemplo, todo esse refrão foi bastante limado. Eu tive umas quatro ou cinco versões desse refrão com cenas mínimas diferentes.  

A barra antes dessa que tu mencionaste, há aí algumas preocupações importantes. “Só me foquei em pô-la polida, se não a limo nada a vida vai-me dar limões”, ou seja, “polir” é limar; e se não trabalhar a vida vai-me dar uma coisa amarga, mas eu foneticamente tomei esse “se não há limonada a vida vai-me dar limões”, para dar força à expressão “when life gives you lemons, make lemonade”. Ou seja, meter a inflexão para que se perceba, simultaneamente, “se não a limo nada” e “se não há limonada”. Uma cena do rap que eu bato muito pé neste assunto que é: o rap, acima de tudo, não é textual, é auditivo. No mundo perfeito eu nem teria texto para isso. Tu ouves o que tu quiseres dessa barra. A minha preocupação, quando eu faço música, é que aguente múltiplas audições. Quando estou a escrever, eu tenho a preocupação do instantâneo; mas eu quero dar a oportunidade de tirar uma segunda ou terceira coisa. E eu sinto que este álbum está cheio disso. Foi uma das minhas maiores preocupações, fazer coisa que foneticamente tenham essa multiplicidade. Isso é das coisas que eu mais aprecio no rap, sem sombra de dúvida. 

Tens mais alguma coisa preparada para sair ainda este ano?

Nunca digas nunca, mas há uma grande probabilidade de já só sair a partir de 2022.


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