“Diz a shawty sou um hustla”, reza nas t-shirts da numerosa comitiva de Kid Robin — e do próprio. É, realmente, o estado de espírito transversal aos artistas portugueses escalados para o segundo dia desta terceira edição do Beat Fest: desde o rapper do Bairro da Jamaica a Piruka, com Leo2745 pelo meio, o hip hop nacional voltou a ter forte representação na Ribeira da Venda, com três artistas que têm na superação uma tónica comum das suas canções.
Confirmam-se, então, em tendências as impressões recolhidas no primeiro dia de festival: apesar de os concertos arrancarem sempre depois da hora de jantar, por volta das dez da noite, a adesão ao palco único só vai ganhando expressão à medida que a noite avança em direcção à madrugada. Os nomes sonantes guardados para as últimas horas explicam esse fenómeno que não abona a favor de quem tem a nem sempre fácil tarefa de inaugurar as hostes.
Acresce que, ao contrário de quem assumiu o mesmo desafio no dia anterior, este “jovem negro iluminado” acusa dores de crescimento também ao nível da conexão com quem, não obstante, não o deixa ficar mal em apoio moral. As sucessivas falhas técnicas e solavancos típicos de quem, novamente, acumula ainda pouca experiência estrada fora também não ajudam. Nada que um saturado “Esta merda é que é boa” nos entretantos não disfarce. Mas é pela sinceridade que Kid Robin se redime e, visivelmente emocionado, confessa estar orgulhoso de, ao fim de duas edições enquanto espectador efectivo no Beat Fest, chegar à terceira pela porta dos bastidores que lhe assiste enquanto artista. E a recta final de “Blocka”, “Melhorar a Vista” e “Hustla” salva uma performance longe de sólida a princípio — com “On Go” a merecer um bis em fim de tempo pela generosa receptividade do público.
De meio gás a gás e meio, Leo2745 entra com todo o ímpeto de quem está em plena afirmação de carreira depois de uns quantos hits junto das gerações mais novas. E são eles, os mais novos, que agora em maior número puxam pelo rapper da Linha de Sintra — que tanto se faz sentir em casa no Gavião como em Queluz —, já aquecidos por um duradouro set de Kuptz que passou do drill ao funk satisfazendo gregos e troianas.
“Os polícias daqui são muito abusados” e “Rapazes, como é que vocês fazem para comprar roupa?” são as duas adendas feitas em início de actuação. Da nossa parte, garantimos que, assim como Leo nos descreve, o controlo feito pela GNR a caminho do recinto foi igual e indiscriminadamente exaustivo deste lado. E, convenhamos, há em Gavião e arredores muito mais que ver para lá de lojas de roupa. Agora, essas tiradas revelam à partida a personalidade (artística, pelo menos) do jovem MC: confiança em palco não lhe falta, e também não tem grandes dificuldades em comunicar com o seu público na mesma linguagem. Daí que puxar pela multidão com a velha divisão por sexos, a ver quem faz mais escarcéu, lhe seja um recurso natural, apoiado num expressivo auto-tune que nunca o deixa ficar mal ao longo do concerto.
“Ninguém anda sem telemóvel hoje em dia, senão apanha depressão”, deixa que serve para mais um momento incontornável por estes dias neste género de espectáculos — o mar de lanternas acesas e levantadas da plateia —, é reflexo do ambiente que se vive nesta hora: depois de “Barco”, inédito que há-de juntar Leo a um afamado produtor francês, “Calendário”, tema dedicado ao seu malogrado pai, “Viagem”, faixa lançada precisamente no dia anterior, e “Fama”, o seu grande sucesso até à data, “Moncler” convida um “menino” — sobem dois, um “malandro” a mais (que formam a dupla Nuno + Silva) — e uma “menina” (de seu nome Filipa) ao palco para cantarem, à vez e à desgarrada, a última de todas.
Nova confirmação que nos leva a crer que, hoje, um artista vai dos zero aos cem em cada vez menos segundos. Pela “Fama” que canta, há no distrito de Portalegre uma boa fatia de fiéis ouvintes da música de Leo — tema maior esse que justifica, por isso, um encore final com o rapper debruçado sobre a primeira fila. E mais rápida é ainda a correria que, ainda o cantor não tinha saído do palco, leva dezenas de fãs a formar fila à espera de uma fotografia com o artista.
Com Piruka, a situação viria a repetir-se, mas em proporções obviamente maiores: ainda o rapper da Madorna se preparava para subir ao palco, já uma mão cheia de admiradores impacientes suplicavam por uma selfie. Mas a banda estava à espera e a hora de André Filipe de Oliveira havia chegado mais cedo do que previsto: depois de uma falta de comparência inexplicável de Treyce (pelo que nos chegou da produção, a cantora brasileira deixou-se ficar refastelada pelo hotel na hora de actuar na Praia Fluvial da Comenda), o concerto do MC da Linha de Cascais adiantou-se uns quinze minutos.
Apesar de não ser nada consigo, Piruka aproveita para não deixar em branco essa falha imperdoável: “Dar valor ao que é nosso” é o apelo que o autor de Iluminado — que nos falou sobre esta mesma actuação dias antes dela acontecer — faz aos seus fãs (que não são poucos, também por aqui). Daqui em diante seguir-se-iam clássicos em revista, mais do que uma apresentação do material recentemente editado em novo disco.
Independentemente de continuar a dividir gostos no panorama do rap nacional, o sucesso de Piruka é flagrante, facto que o tem posto na estrada como a poucos dos seus pares. “Em 30 dias toquei 18 vezes”, ouvíamos horas antes da sua própria boca, e essa rodagem torna-se palpável na alta rotação que imprime ao longo da sua performance. “Eu ‘tou tipo rock ’n’ roll shit” e “Pareço o Elvis a cantar esta merda” acabam, por isso, por fazer sentido no contexto em que o vemos: está mais que oleado com os seus instrumentistas e o seu hypeman, e continua com a mesma entrega ao fim de centenas (sem exagero, parece-nos) de actuações ao longo dos anos. Honesto na sua proposta e com uma mensagem de valores a transmitir aos jovens que o seguem apaixonadamente, justifica toda a mobilização que traz consigo por onde passa. Gavião é prova disso mesmo, garantimos nós.