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Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 10/11/2023

O colectivo actua na primeira edição do festival Vale Perdido.

Batucadeiras das Olaias e o “sonho” comunitário: “Estamos a andar na onda do batuku”

Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 10/11/2023

Do Festival Iminente ao Museu da Cidade, passando por inúmeras festas de bairro, as Batucadeiras das Olaias têm estado cada vez mais presentes nos cartazes de eventos culturais na região de Lisboa. No próxima sexta-feira, 17 de Novembro, o grupo actua no novo 8 Marvila, no âmbito da primeira edição do Vale Perdido, um festival idealizado pelos programadores Sérgio Hydalgo, Joaquim Quadros e Gustavo Blanco, que também vai passar pelo B.Leza, LISA e pela Igreja St. George. A programação, que cruza artistas internacionais e música local, arranca no dia 15 e prolonga-se até 19 de Novembro.

Acima de tudo, as Batucadeiras das Olaias são um projecto comunitário nascido no bairro lisboeta. “Comecei a reparar que as mulheres que estão cá há 30 ou 40 anos praticamente não conhecem Lisboa. Trabalharam, descontaram para este país, deram a sua contribuição, mas não desfrutaram, não conhecem”, explica a porta-voz e grande instigadora do projecto, Clarice Monteiro, 55 anos de idade, natural da ilha de Santiago, mas residente na zona das Olaias desde os 22. Começou por viver num pré-fabricado antes de a população ser realojada no bairro social.

“Hoje a população mudou completamente, mas normalmente não há o hábito de nós, africanos, irmos ao café sentarmo-nos numa esplanada com o marido… É trabalho-casa e cuidar dos filhos. E, como imigrantes, estamos a trabalhar a pensar em dois sítios. Estamos cá e também temos família fora com necessidades. O pouco que conseguimos aqui é para tentar sobreviver e remediar a família que está lá.”


batucadeiras das olaias


Foi como forma de potenciar o tempo de lazer, e para alcançar uma catarse através do “afogar das mágoas”, que Clarice Monteiro reuniu meia dúzia de senhoras em 2019 para começarem a batucar em conjunto. “Podem não ir a um museu ou a um espectáculo, mas aqui têm o batuku.” Tradição ancestral do arquipélago de Cabo Verde, o batuku é uma música e, ao mesmo tempo, pode ser uma dança que evoluiu consoante os séculos, sendo que, pela sua vertente comunitária e por discriminação ideológica, foi proibida durante o colonialismo português.

Clarice Monteiro cresceu com esta tradição na sua terra-mãe. Diz que era onde a aldeia se juntava, para celebrar ou resolver os problemas. Não havia o instrumento que hoje utilizam no batuku, mas usavam latas ou sacos de plástico com um pano no interior. A canção era triste, para expurgar os males. A porta-voz das Batucadeiras das Olaias estabelece mesmo um paralelismo com o fado.

“Eu gosto muito de fado e comparo-o um bocadinho com o batuku, porque estou sempre a dizer que, no batuku, conseguimos dizer aquilo que no dia a dia não dizemos. Uma canção arranja-se no momento, de repente sai uma letra, uma pessoa pode cantar a sua própria dor ou alegria. E tudo isto forma o batuku. Mas também há letras e hoje ensaiamos e preparamos tudo.”

Não começou por ser fácil conciliar agendas, tendo em conta as exigentes horas de trabalho, mas lá conseguiram formar um pequeno grupo de senhoras locais e também de Chelas, não muito longe para começarem a partilhar aquele momento de convívio musical. Com a pandemia, claro, tiveram de deixar a ideia em suspenso.

“Parámos, mas ficámos com aquilo já a mexer connosco. E, ao sair da pandemia, havia uma necessidade de nos envolvermos no batuku.” A ideia inicial, relata Clarice Monteiro, era juntar as “mulheres de idade” do bairro, proporcionando um sentimento comunitário. Pessoas de várias faixas etárias, de outras periferias de Lisboa, incluindo rapazes, acabaram por se juntar ao colectivo.


batucadeiras das olaias


Aos poucos, foram construindo um núcleo duro alargado que tem começado a ser requisitado para mais e mais performances. A primeira actuação “mais a sério” aconteceu apenas em 2022, na grande festa que todos os anos desde 2008 tem ocupado o bairro Portugal Novo, nas Olaias, na passagem de 14 para 15 de Agosto, feriado que é o dia de Assunção de Nossa Senhora, mas também de Nossa Senhora da Graça, a padroeira da Cidade da Praia, a capital cabo-verdiana. Mais do que uma celebração musical, é acima de tudo um grande convívio social: cozinham a lenha na rua, em espírito de comunhão, e é um “fervor tal que ninguém dorme”.

As Batucadeiras das Olaias também já actuaram no Museu Nacional de História Natural e da Ciência e, por duas ocasiões, no B.leza. “Até houve uma senhora que me veio dizer: ‘É que eu já vivi cá não sei quantos anos, criei filhos e netos, hoje tenho bisnetos e nunca pensei que iria entrar numa discoteca’. Mas não fui eu que fiz isto, foi o batuku que nos levou, nós estamos a andar na onda do batuku. E também foi a minha primeira vez a pisar uma discoteca”, conta.

Numa dessas ocasiões, tocaram com o rapper MRCOMEDINA, concerto teatral a que o Rimas e Batidas teve oportunidade de assistir. No Iminente, juntaram o seu batuku às rimas de Loreta, Juana na Rap e Primero G; às cordas das Active Mess e de Mbye Ebrima, korista natural da Gâmbia. Estão abertas a colaborações e só querem continuar a tocar e a partilhar este espírito, porque “o sonho já existe”. “Tudo isto motiva-nos ainda mais para continuarmos e vamos continuar. O grande objectivo é captar os miúdos e deixar-lhes esta herança.”


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