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Fotografia: Paulo Nogueira / Theatro Circo
Publicado a: 20/06/2023

Música com contexto, feita de lutas e de sonhos.

Batida no Theatro Circo: uma noite particular, uma dança em forma de vínculo

Fotografia: Paulo Nogueira / Theatro Circo
Publicado a: 20/06/2023

No princípio era o néon, já se disse e vale a pena insistir, que o tempo anda dado ao esquecimento. O engasgo com o nome faz jus à estranheza com a expressão composta e com a conversa que ela suscita: Neon Colonialismo. Que é como quem diz uma peça de luz. Um álbum. Um ensaio aberto. Um concerto. Um conflito. Um diálogo em construção. O néon lá estava, no Theatro Circo, em Braga, ainda antes da iluminação geral do palco e das ideias — não confundir, por favor, com iluminismo, que esta iluminação é escurecida na intenção e também por contraste com a parafernália de luzes que àquela hora já alumiavam as ruas da cidade, destacando as barracas de churros e farturas que faziam a moldura do São João de Braga (“O Verdadeiro”, garantem os cartazes promocionais). Lá dentro, dizíamos, a iluminação é escurecida e ainda soava a noite, com o palco em penumbra, grilos a ecoar, enquanto a pouco e pouco iam chegando os cúmplices da quarta Noite Particular, promovida por Batida.

No palco um corpo deitado, ainda não apresentado, dividia a curiosidade com o espanto dos frescos do teto, que fazem efeito-íman sobre as cabeças de quem chegava. Mas logo se regressava à cena, olhos postos sobre os muitos pormenores de uma cenografia aparentemente contida. Havia instrumentos, vários, dos eletrónicos aos acústicos, dos industriais aos manufaturados. E tecnologia, claro, que os adornava e completava, pronta a ligar e a cozer as diferentes expressões que compõe a linguagem de cena. Havia também uma televisão no chão – será a terceira desta temporada de ensaios? – mesmo ao lado de um globo e de uma câmara que projetava para uma grande tela. E também várias luzes, cuidadosamente desenhadas em sítios e objetos, traçando os contornos da cenografia. As grades de água Luso também lá estavam, velha obsessão de Batida, construídas em parceria com a Marvilab, suportando e sustentando instrumentos – e não confundir, novamente, ou se calhar confundir mesmo, a contrapelo, “luso” com “lusitânia”, “lusofonia”, “lusotropicalismo”, “luso-negacionismo”, “luso-quê?”… Ao fundo, do lado esquerdo, lá estava o néon, agora iluminado, e voltemos a ele, princípio desta história de pesquisa e experimentação, que não pode ser contada sem trazer o colonialismo para a conversa.

Enquanto procurávamos os pormenores, uma voz ecoa na sala, poucos minutos depois das nove e meia: era o previsível anúncio, imediatamente questionado pela própria voz anunciante, de que não se poderiam captar imagens e sons. A voz é de Pedro Coquenão, o corpo está agora apresentado, para logo se dedicar a escrutinar, um a um, todos os mecenas do teatro.

O público sorri com a entrada, também ela particular, e que logo se faz monólogo de abertura, já que nesta noite, como naquelas que a antecederam, a linguagem é múltipla e o discurso assume centralidade, sob diversas formas artísticas, uma delas a palavra. Batida percorre o palco e os objetos, que todas as peças e todas as escolhas têm histórias para contar e se relacionam com o tempo vivido e por viver: o passado-presente, claro, que o colonialismo ainda define a conversa que precisamos de ter; mas também o do presente-futuro, que aqui abre espaço para pensar o que significa, afinal, essa tal “inteligência” que é “artificial”; essa tal “autoajuda” que se espreita nas livrarias; os “pés de meia” que escasseiam no meio artístico; ou essas várias histórias de resistência, ou melhor, de re-existência, que percorrem o país e que obrigam o próprio presidente, qual ChatGPT-com-pernas, a ter de se moldar, ainda que patuscamente, entre banhos e com muita conversa fiada, à exigência de trazer o racismo para a conversa.

Batida diz-se sobretudo fiel às utopias, mas também não lhe falta lealdade aos seus primos, que se apresentam ao público depois de uma breve e particularmente encenada pausa no monólogo. São eles, aqueles que agora ocupavam o palco: Mick Trovoada, na percussão, Manel Pinheiro, na bateria, Milton Gulli, no baixo e na guitarra, Ikonoklasta, como MC, e Gonçalo Cabral, na dança. Agora sim: “Bem Vindos”, música que inaugura o novo disco, mas que aqui também abre uma nova dança, um novo espetáculo, mais um argumento num diálogo que não tem parado e que se faz de ciclos que se fecham, para logo se voltarem a abrir. Batida terá o seu lado solitário, certamente, mas também vive cheio de gente dentro, e isso transparece mal a música que registou em disco ganha uma nova vida, revivida por quem agora o acompanha em palco.

A música, essa, é irresistivelmente corporal, daquela que distende a espinha, os músculos e a mente, mesmo numa sala de cadeiras bem almofadadas e que parecem seduzir para algum relaxamento. Foi imediata a dança dos corpos em cada lugar sentado, ou até mesmo de pé, que houve quem não aguentasse ficar de cu sentado na cadeira perante o ritmo e o contágio induzido, instantaneamente, pela presença e pela intenção de Gonçalo Cabral, qual corpo-globo iluminado, que em movimento projeta todas as tensões, as marchas, o encontro e a força do vínculo criado em cena e para além dela.

O alinhamento segue, fluído, entre a música e a palavra, a dança e a imagem, o ritmo e o discurso. E ainda se apresentariam convidados, como sempre. O primeiro, Ikonoklasta, é mesmo família, e tem estado sempre presente, acompanhando Batida na música e na vida. E também lá estava connosco quase desde início da noite, sentado no palco, boné a fazer sombra ao rosto, de livro em punho ou na cabeceira, antes de ocupar o centro, em diferentes momentos, com a força da palavra e a sua voz inesquecível. Mas também por lá passaram outros parceiros, sob uma forma de projeção que evoca a presença, desde logo Nástio Mosquito, em “Ferramenta”, ou Mayra Andrade, em “Bom Bom”, com direito a dose dupla, depois de um improvisado (?) plesbicito popular.

Neon Colonialismo foi guiando o alinhamento, sem pressas e sem demasiado conforto, que aqui o apelo à dança é sempre acompanhado pelo desafio ao pensamento. E assim sucede também entre músicas, sempre que Batida se aparta do microfone, lembrando, sem ter que o dizer explicitamente, que a sua música não nasceu para o descanso anestésico da boa consciência, mas para um desafio permanente e que se estende para lá daquela sala e daquela noite. Há contexto nestas músicas que se ouvem, nestas histórias que se contam, nesta dança que contagia. Batida não explica tudo, mas não deixa que o essencial fique por dizer — como quando, com a câmara projetando a representação de África no globo que está em palco, lembra como as potências europeias impuseram as linhas-fronteiras que artificialmente dividiram o continente; ou como quando lembra uma lei da nacionalidade para quem nem todos podem ser cidadãos; ou como quando, a propósito de “Pobre e Rico”, um dos momentos de passagem por Dois, evoca um tempo de efervescência cultural e política, antes e depois das independências, que antecipava outros futuros em aberto.

Nesta música que é dança, e é palavra e pensamento, cabem tantos desses sonhos, dessas lutas, utopias e possibilidades: heranças que a música mantém em aberto, hoje resignificadas e projetadas para lá dos caminhos que a história percorreu. Um porvir que nasce do diálogo e do desafio, futuro à espreita nos olhares sobre o passado e fertilizado por cada um destes encontros: batida pujante de um lado, dikanza frenética no outro, muitos sorrisos na cara, alguma esperança nos corpos. Particular é dizer pouco.


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