Juntos, Bernardo “Tempura the Purple Boy” D’Addario e Edgar Valente formam os Bandua, grupo que se estreou há dois anos com um álbum homónimo que partiu das raízes musicais (e sobretudo poéticas) da Beira Baixa para as levar por caminhos downtempo e através de outras texturas electrónicas.
Em apenas dois anos, afirmaram-se no panorama musical português — também graças ao destaque que tiveram no Festival da Canção —, deram concertos marcantes e gravaram versões suas de canções tradicionais. Um desses temas, que já vinha a ser tocado ao vivo e que foi agora editado de forma desdobrada em duas versões diferentes, é “Pena no Peito”.
É o resultado de uma residência artística, promovida pela Omnichord Records e pelo Casota Collective, realizada ainda antes do lançamento do álbum, feita na aldeia de Penha Garcia com a cantadeira Idalina Gameiro. Os Bandua preparam-se para lançar outras versões do cancioneiro popular português, reinventadas à sua maneira; têm na calha um disco de remixes do álbum; e já começam a preparar um segundo disco de originais.
Tudo isto são motivos que apontam para o concerto que apresentam esta sexta-feira, 17 de Maio, no Musicbox, em Lisboa, onde poderão ousar esticar os limites da sua música, uma vez que é no palco que testam a sua maleabilidade artística. O Rimas e Batidas conversou com os dois músicos uns dias antes do espectáculo.
O que é que podem antecipar sobre o concerto? Vai incluir estas faixas novas, terá os temas do vosso álbum? Também sabemos que vem aí um disco de remixes para breve.
[Edgar Valente (EV)] O Addario está neste momento a viver em Berlim, a fazer um curso na Catalyst, um mestrado em investigação de folk e electrónica. Eu já estive lá, estivemos nuns estúdios incríveis — aquilo fica na Funkhaus, que é onde o Nils Frahm, por exemplo, tem os seus estúdios — e acabámos por estar a criar algum material novo nesse contexto. Essa ida a Berlim também abriu várias coisas. Gravámos um vídeo dos “Cinco Sentidos” e da “Macelada” que ainda não saiu, mas para uma cena chamada In The Nook Sessions. E temos estado interessados em partilhar cada vez mais os nossos live sets. Inclusive temos uma página aberta no SoundCloud, lançámos o concerto do Boom do ano passado e agora lançámos o do Lux. Ali já tens versões como, por exemplo, a “Lua”, que ali tem uma versão a que a gente chama a “Lua da Selva”, que é uma espécie de jungle com adufes, uma coisa bem maluca.
E por isso é que também quiseram disponibilizar alguns sets, por terem versões distintas e especiais?
[EV] Exactamente. E a gente tem mais uns quantos guardados só do ano passado para continuarmos a lançar. Também percebemos que na nossa lógica de música electrónica o público é muito do SoundCloud. Queremos entrar muito por aí, também numa vertente mais internacional, são dinâmicas que vamos compreendendo melhor por o Addario estar em Berlim, por estar muito dentro desse contexto… No Verão vamos ter algumas datas em Berlim, vamos fazer um festival muito importante em Agosto, vamos fazer um novo club que abriu e possivelmente vamos também a Amesterdão, aproveitando que estamos lá na área. Estamos a querer projectar-nos mais para fora. Com o Festival da Canção crescemos rápido cá dentro, mas desde o início que a visão da música era… “Como é que levo para esta dinâmica de uma música downtempo bastante internacional a raiz da música portuguesa e chego a este público de nicho?” E de repente crescemos muito aqui dentro, com a capa do Ípsilon, o convite do Festival da Canção… Num ano, ascendeu tanto que estávamos quase naquele patamar de música pop. Ao mesmo tempo, fizemos uma pausa, olhámos em redor: “Mas espera, queremos chegar a muita gente mas de uma forma mais expandida, lá para fora, e não tanto dentro destas lógicas do mercado nacional.” E é um bocado por aí que a gente agora tem estado. É um trabalho que se faz mais lentamente. Eu estive agora uma temporada no Brasil, o Addario é luso-brasileiro e também temos essa cosmovisão de que territórios como o Brasil por vezes estão mais perto do que pensaríamos, e quando falamos muito de voltar às raízes — da Beira Baixa, de Portugal — é muito importante no nosso trabalho, mas posso dizer desde já que estamos a querer abrir-nos. Não ficarmos só pelo downtempo e pela Beira Baixa, e acima de tudo conseguirmos potencializar pela natureza musical que a gente traz em cada um de nós e a ancestralidade que vem de cada um de nós.
O que podemos então esperar do concerto no Musicbox?
[Bernardo D’Addario (BA)] As pessoas podem esperar, claro, estas novas músicas que lançámos — e nós já as tocávamos antes, não é? Elas agora têm uma roupagem um pouco diferente, acho que vamos trazer um pouco dessas novas sonoridades. Em relação ao “Armeiro”, que supostamente teríamos lançado a 10 de Maio, trocámos um pouco as coisas. Nós estamos a montar essa faixa, que inclui umas participações especiais de alguns amigos nossos, que também foi o que aconteceu no primeiro disco, em que convidei várias pessoas para trabalharem comigo e darem o seu input às músicas. Uma coisa que começámos a perceber é que, como há tanta coisa a acontecer nas nossas vidas no meio disto tudo, vamos com um pouco mais de calma na produção das faixas, para elas próprias também terem o seu tempo para poderem nascer. Acho que, no caso do “Armeiro”, como já a visitámos n’A Música Portuguesa a Gostar Dela Própria, trazemos uma versão agora editada mesmo a sério, com uma produção um pouco mais requintada, com algo mais memorável. E como já temos outros produtos mais ou menos encaminhados, vamos trazer para a frente uma versão que gravámos ao vivo na Serra da Gardunha, numa barragem. Gravámo-la com um grupo que é o Soundscape, e trouxemos uma música que nunca tínhamos editado que é “Senhora dos Remédios”, uma música tradicional da Beira, já numa versão um pouco mais acelerada, a cair mais para o melódico e para o progressivo. Já tocávamos nos concertos, mas nunca tínhamos editado. Quanto ao “Armeiro” e a outras faixas que temos em andamento, elas hão-de chegar a seu tempo. Também temos o álbum de remixes praticamente preparado há imenso tempo. O nosso percurso, em dois anos… Já tocámos tantas músicas, já fizemos tantas que ainda não editámos que estamos agora a fazer uma espécie de back-catalogue: “O que é que ainda temos que editar?” Curiosamente, debatemos muito sobre se isto iria dar um álbum, sobre se faria sentido lançarmos vários singles e depois fazermos um álbum em cima disto, e acho que com o passar do tempo a gente vai descobrir o que vai fazer. Mas uma coisa é certa: ainda temos muito material para lançar, não temos pressa, neste momento agora também temos tanta coisa a acontecer no meio — com os nossos próprios projectos, eu a morar fora, que acho que o próprio tempo e música irá revelar os seus deadlines e aqueles que serão os momentos certos.
E sempre houve a intenção de editar estas canções apresentadas ao vivo ou em formatos especiais?
[BA] Sem dúvida. O “ao vivo” é sempre o laboratório. Lançámos alguns sets e temos para aí mais uns cinco ou seis para lançar. E é ao vivo que experienciamos a maleabilidade do nosso trabalho. Porque podemos esticar as coisas, não as fazemos exactamente como estão no disco, as pessoas quando vão aos concertos nunca esperam um exactamente igual ao outro, há sempre uma coisa diferente… E acho que, com o passar do tempo, por estarmos várias vezes no tal laboratório a experimentar e a revisitar, é claro que, a certo ponto, decidimos que temos de fazer uma versão para disco — e aquilo que é gravado acaba por influenciar o que é feito ao vivo. Mas a intenção está sempre lá. A música está lá para ser feita, para ser gravada, para ficar lapidada em pedra. A seu tempo.
Voltando ao concerto…
[BA] Iremos trazer algumas coisas novas, eu e o Edgar ainda vamos experimentar algumas coisas, temos aí algumas ideias, de músicas que não estão editadas, que nunca fizeram parte de nenhum disco… Vamos explorar e, acima de tudo, desfrutar daquilo que a gente faz. Também já não tocamos juntos há algum tempo, então vai ser uma boa reunião.
[EV] E com tudo o que está a acontecer nas nossas vidas e no mundo, há mesmo uma certa vontade de renovação, mas também trazendo aquilo que a gente já vinha a fazer antes. Já não tocamos há algum tempo, e isso não nos tira confiança porque cada um de nós está bem direccionado no seu caminho e de tempos a tempos a gente junta-se e vê: “Como é que esta fusão volta outra vez a ser?” E estamos num momento de processo criativo, com vista a criarmos mais música, um álbum que há-de vir entretanto a caminho… Não estamos com a pressa do mercado extrair de nós uma produção musical, mas a gente acaba por se vingar nestas oportunidades de tocarmos ao vivo juntos. Para quem vai, acaba por ser especial perceber que vai sempre receber uma coisa um bocado nova. Até porque temos formatos diferentes, às vezes trazemos aquele adufe gigante e o espectáculo muda com isso. Às vezes vem uma bailarina-performer que incorpora Bandua e também soma e muda a coisa. E, noutras vezes, estamos só os dois com uma bancada ao centro — que vai ser o caso do Musicbox — e é quando tomamos mais liberdade e é mesmo a música que segura esse espectáculo. Quando temos o adufe, a bailarina ou as projecções audiovisuais, a coisa tem outra estrutura porque estamos a trabalhar com mais equipa. No Musicbox, a gente teve vontade de fazer esta desbunda, porque já lá estivemos no Festival Emergente no final de 2022. Gostámos muito daquele concerto, daquele palco, daquela casa, foi uma noite bonita, então deu-nos vontade desta desbunda. Chegou essa proposta do Musicbox e foi: “Ya, ‘bora.” Mais do que uma desbunda, vai ser uma desbandua.
E suponho que estes concertos intimistas sirvam ainda mais de laboratório para vós.
[EV] Sim, sem dúvida.
[BA] Quando é um concerto mais intimista, gostamos de tomar um pouco mais de… Não diria riscos, mas gostamos de esticar um pouco mais a corda, ver até onde é que a gente pode ir. Às vezes também há concertos grandes nos quais temos esse à vontade, mas o espaço dita muito isso, onde é que a gente pode ir, e se as pessoas estão receptivas a isso ou não.
O Edgar falava de, em pouco tempo, terem conseguido integrar-se no mercado nacional da música pop, mas também quererem explorar um circuito mais ligado à electrónica, até a nível internacional. O facto de estares aí em Berlim, Bernardo, obviamente também não é por acaso. Querem falar um pouco sobre essa ambição?
[BA] O sonho de qualquer artista é poder não só viajar entre as cidades do seu país, mas também as de outros continentes. E a nossa música acaba por chegar aos ouvidos de várias pessoas pelo mundo inteiro. Seria um grande prazer poder fazer mais circuitos na Europa, quem sabe até no Brasil ou em outros lugares. A música electrónica acaba por ser uma linguagem muito universal. Apesar de o Edgar cantar em português e a nossa música ter uma raiz que vem de um sítio muito específico deste nosso território, ela vive dentro da pista. O ritual que trazemos é também um ritual moderno, o ritual da pista de dança, que vive e fala uma linguagem universal. Por isso, a nossa ambição é tocar em outros países. Apesar de a raiz ser portuguesa e de as letras serem em português, a música e o sentimento são compreendidos porque qualquer pessoa encontra essa ligação quando a ouve ou quando a atinge. O facto de eu estar aqui em Berlim claro que pode ser uma maneira de esse processo se acelerar, e temos duas datas na Alemanha em Agosto — e podem aparecer outras. E estamos muito contentes por darmos esse salto e apresentarmos Bandua a um sítio que não Portugal. É um primeiro passo para um sítio que eventualmente poderá ir dar a outros. Pode também não dar, não sabemos — o importante é que possamos transmitir e permitir que esta música viaje, não só dentro do território nacional, mas também pelo internacional.
A vossa ideia para o disco de remisturas foi algo que veio desde início? Cada uma leva a canção original para um caminho diferente?
[BA] Aquilo que une o disco é que fiz questão que todos os remisturadores fossem produtores portugueses, que tivessem uma conexão com o território nacional. Temos uma lista interessante, tudo pessoas com quem nos cruzámos nos nossos caminhos, e isso é o que os une. São cinco ou seis faixas que são feitas por produtores do nosso meio e que interpretaram cada música à sua maneira. Há umas mais, outras menos aceleradas, mas o que queríamos era que cada remisturador trouxesse a sua interpretação à música. “Está aqui o material, façam o que quiserem.” Para eles terem essa liberdade em mostrar o que fizeram. É um disco que fecha o ciclo do nosso primeiro álbum, que foi importante porque teve um impacto grande e, de certa forma, como disseram, também nos pôs um pouco no panorama da música nacional. Para nós é importante mostrar este último ponto final do nosso primeiro disco. Já começámos a dar início a um novo percurso, mas isto é mesmo para fechar com chave de ouro. E também queremos trazer mais trabalho, sabemos que as pessoas querem ouvir mais Bandua e estamos a viver um momento muito interessante da música nacional, com muitos artistas a irem beber à música popular. É uma coisa que já tinha sido feita, mas desde 2021 ou 2022, quando também começámos, parece que apareceu assim um leque de artistas a fazerem coisas nesse sentido. E para nós também faz sentido continuar a trilhar esse caminho. E como o Edgar disse, nós queremos também sair da Beira — e o “Armeiro”, que há-de sair este ano ainda, é um exemplo disso por ser uma canção alentejana. E há outros temas que queremos explorar. Enfim, nós queremos sair do downtempo. Bandua vai, eventualmente, buscar outras coisas — e acho que as “Pena no Peito” são um exemplo disso. A segunda é uma música um bocado ambiente, vai beber à onda meio Brian Eno, com estas coisas mais ambientais e a voz do Edgar… Nós queremos expandir para fora porque o leque de sons de Bandua vai muito mais além do primeiro disco. O primeiro disco foi apenas uma rampa de lançamento para aquilo que a gente pode fazer.
E a música popular também tem um espectro grande, entre as diferentes sonoridades e os poemas tradicionais. Sentem que é uma fonte inesgotável de inspiração e como base de criação?
[BA] Sim, no nosso primeiro disco um dos grandes factores foi basearmo-nos na letra, embora com algumas alterações. Mas não fomos buscar certas harmonias e melodias que as músicas tinham — deixámos que a letra nos guiasse. A “Lua” e a “Ceifa” são dois casos à parte, mas um facto é que a música popular, que é a nossa raiz, é uma fonte… Não sei se é inesgotável, mas a música como ferramenta é inesgotável porque há “n” combinações possíveis que a gente pode fazer. Esta fonte de que bebemos, com que iniciámos a nossa jornada, sem dúvida é um sítio a que poderemos voltar; mas não sei se será sempre o sítio a que iremos voltar. Mas é-nos familiar e poderá servir sempre de base para qualquer coisa que a gente faça. Sendo Bandua um veículo de transmissão musical, o que sair por nós… Nós somos os agentes desta música e estamos aqui para comunicá-la. O que vier vem e nós aceitamos e trazemo-la para este mundo mais tangível.
[EV] Há um período que se veio a evidenciar na última meia-dúzia de anos, na última década. Até então, havia um distanciamento muito grande nesta coisa das raízes, havia alguns projectos a surgir mas até cantar em português não estava muito em cima da mesa. Porque, de alguma forma, num processo cíclico cultural, em Portugal foi preciso começar a olhar para dentro. E sempre fomos um território que de alguma forma teve a necessidade de olhar muito para fora, talvez até pela nossa condição geográfica, de metade do país ter uma fronteira com o mar, tudo o que aconteceu lá atrás desta necessidade de sair mar afora, a mania da descoberta de novos territórios que na verdade já lá estavam antes de serem descobertos… Depois, todo o contexto europeu, de sermos sempre um país pequenino que está sempre na cauda e na ponta das coisas. E houve gerações que tentaram replicar, copiar um bocadinho aquilo que se fazia lá fora para tentarem ser mais desenvolvidos. Mas, curiosamente, há uns dias tenho estado a fazer um curso online que me trouxe uma coisa muito engraçada sobre desenvolvimento: a palavra também pode significar um des-envolvimento. Como esta coisa dos países desenvolvidos e em desenvolvimento. É um olhar do ponto-de-vista privilegiado, de um ponto-de-vista até bastante colonizador, que desconecta as pessoas do seu próprio sítio, da sua terra, das suas tradições. Neste momento, há uma vontade de envolvimento maior com isto e acho que, pela forma como o planeta começa a gritar, como percebemos as muitas formas insustentáveis de viver, e por aí fora, acho que há uma reacção de a malta estar a tentar ficar mais próxima da terra. Isto não significa querermos ser revivalistas — porque o tempo mudou demasiado, hoje a tecnologia é inevitável e super necessária, isso já muda todo o contexto, e inclusive está presente na nossa música. Isto é uma resposta de: “‘Bora para a terra, vamos recuperar essas sementes, mas ‘bora não esquecer que essa parte também existe aqui e que isto traz coisas novas que também são muito interessantes.” É também neste sentido de re-envolvimento com as pessoas, mais do que esta necessidade crescente de desenvolver e desenvolver, muitas vezes nem sabemos muito bem para onde. Mas de uma forma mais abrandada e equilibrada. “‘Bora trazer um pouco mais destes pólos, ‘bora tentar equilibrar isto e encontrar outras formas de vivermos e convivermos com isto.” É isso que também estamos a tentar transpirar de alguma forma na nossa arte. E aqui, em Portugal, nos últimos anos, é muito bonito ver como isso vai crescendo. Mas também é importante não entrarmos num orgulho de que isto é que é bom, que descobrimos a pólvora e que esta coisa nacional é que é espectacular… Calma aí, pessoal. Até porque há muitos aspectos muito importantes dentro deste território que não podemos esquecer. Temos de dar visibilidade a outras pessoas que não têm esse acesso privilegiado para esses sítios de visibilidade. E, neste caso, nós somos dois homens brancos neste país — e estamos a dar visibilidade a poemas e cantos de pessoas do interior, de sabedoria ancestral que muitas vezes foi esquecida, marginalizada e que continua a ser posta em causa. Continua a ser vista como algo que não interessa tanto como aquilo que é mais científico e apurado. Também estamos a trazer estas pontes para cima da mesa, para reflectirmos, dançarmos e cantarmos sobre elas.
Mas não sentem, quando olham para este panorama musical português dos últimos anos, em que há de facto mais essa ligação à tradição musical, de que muitas vezes pode não haver tanto esse envolvimento que tu descrevias e pode ser uma coisa mais estética, mais superficial, mais tendência? Sentem isso ou olham para o copo meio cheio?
[EV] Acho que existe mesmo um maior envolvimento. Espero é que não seja só uma moda estética que esteja a acontecer só porque sim. Quero que isto seja uma coisa na qual as pessoas realmente se envolvam. Que as pessoas vão aos sítios. Claro que é muito fixe que as primeiras experiências sejam processos de samplagem e aquilo abre-te as portas: “Fogo, nunca tinha descoberto o cante alentejano e agora vou samplar.” Mas que isso te leve ao sítio, que te leve a conhecer as pessoas, que te faça criar uma ligação real para perceberes, já que estás a usar isso, de que forma é que podes dar de volta. Como é que a troca realmente se estabelece e como é que ela é real e não se torna uma coisa que só acontece virtualmente? Às vezes até é mais interessante, mais do que ir buscar os cantos do passado, fazermos músicas em que já escrevemos as nossas letras como Bandua, porque já integrámos uma parte dessa ancestralidade. E sentimos essa legitimidade. Mas como é que se criam novas tradições? Como é que se escreve sobre essas coisas importantes, sobre esse envolvimento geral com a terra, com as espécies que te envolvem, com as pessoas da tua vizinhança com quem às vezes não falas, com as pessoas do interior do país? Porque chegam as eleições e percebemos que está tudo desconectado e que não percebemos bem a realidade que estamos a viver, porque há desconexão. Não só a música pela música, mas também o que acabamos por fazer através dela.
[BA] Muitas vezes pensamos nestas modas e trends, que certas sonoridades ou estéticas visuais vêm de ciclos ou de fases ou gerações… Nós e outros artistas que também estão a usufruir da raiz nacional para criar um idioma novo… Antigamente também havia um leque de artistas que o fizeram. Depois morreu um bocado e, passado algum tempo, voltou outra vez. Eu não sei até que ponto é que isto não possa ser um período que estamos a viver pela reflexão do tempo que vivemos e da nossa geração, e de como ela cresceu e os sons que atingiram os ouvidos destas pessoas. A única coisa que tenho a acrescentar é que, de certa forma, Bandua pode tornar-se parte de uma linguagem musical no leque do reportório nacional que é a música tradicional portuguesa e possa vir a adicionar e inspirar outras pessoas, lá mais à frente — quer isso demore 10, 20 ou 30 anos — a irem beber de onde bebemos, a ouvir o que nós fizemos e quererem criar algo ainda mais excitante, emocionante ou novo. Que se inspirem.
[EV] E ter esta noção, que sempre esteve na base do projecto, que é pensar que o dancefloor para a nossa geração é uma tradição. Porque é um ponto de conexão, é um ritual necessário para a gente purgar, para a gente se libertar, se transformar, para sairmos do club de manhã e pensarmos: “Uau, estou diferente, deixei as coisas ali.” A música tem esse papel de cura, tem esse papel de servir a comunidade e é uma forma, nos tempos que correm, de a gente trazer… Também com esta qualidade da terra xamânica, isto que trazemos para dentro da música, que também é fixe. Dentro da electrónica, ter este equilíbrio elementar acaba por criar uma alquimia importante. E só para dar um exemplo da visibilidade: o Addario vinha a trabalhar na música electrónica, mas tinha uma relação de ancestralidade com a Beira Baixa da parte do avô dele, mas ele chama-me para dentro deste trabalho por ele perceber que eu tinha uma relação realmente real com o território, graças ao trabalho com Criatura, a ligação às culturas da região, o José Relvas como construtor de adufes, os grupos de adufeiras, outros cantadores… E, curiosamente, antes de lançarmos o disco, fizemos lá uma residência, de onde até surgiu esta “Pena no Peito”, que é pré-disco. E trabalhámos com a Idalina Gameiro, que é uma cantadeira de lá. E lançámos estas duas versões, chegámos a pensar se a convidaríamos a cantar estas versões, mas por acaso e coincidência isso não fluiu e seguimos cantando as músicas. E das primeiras coisas que a Idalina nos disse é que gostava muito de ir ao Boom — e ela ia todos os anos um dia para fazer o passeio do Boom. Eu disse-lhe logo: “Idalina, um dia a gente vai tocar ao Boom e tu prepara-te porque vens connosco”. E ela: “Ai, adorava, era um sonho”. E aconteceu o ano passado, foi muito bonito. É falar sobre o interior, sobre a Beira Baixa, e apesar de a música e a cultura ser maravilhosa, de ser um poço de sabedoria e inspiração, é não falar só nesse aspecto… A Beira Baixa tem problemas, as pessoas do interior são esquecidas, é realmente descabido as portagens que se paga para ir ao interior, a mobilidade num país tão pequeno… Há tanta coisa no interior que não tem suporte que também é um motivo pelo qual fazemos esta música. Só para dar um exemplo de como esta troca se estabelece, e a Idalina foi fundamental para a “Pena no Peito”, é ela a grande guardiã do cancioneiro de Penha Garcia.
[BA] Aprendemos muita coisa nessa residência [risos]. Foi incrivelmente educacional para o reportório de Bandua e para nos conectarmos a uma pessoa muito enraizada na cultura. Ela tinha uma ligação familiar qualquer à Catarina Chitas, a grande referência da região. E aprendemos as canções como se aprendia antigamente.
[EV] Em duas horas e meia, ela cantou-nos 49 canções. Está gravado! Depois tivemos que escolher para apresentar uma com ela — e temos várias outras músicas com ela que ainda não editámos e que na altura ficaram por ali.