pub

Fotografia: Vera Marmelo
Publicado a: 04/04/2022

Uma festa como poucas.

Bandua na ZDB: uma romaria que atravessou tempos e dimensões

Fotografia: Vera Marmelo
Publicado a: 04/04/2022

É bom parar e escutar. Escutar aquilo que nos rodeia, sentir as coisas que nos envolvem. Deixar que sejamos envolvidos pelos detalhes mínimos das texturas que nos tocam. Parar e escutar outra vez, repetir as vezes necessárias até que fique apenas um estado de comunhão entre sons, movimento e quem efetua a nobre acção de parar para escutar e sentir.

O uso da palavra “comunhão” não é em vão. É talvez a expressão mais aproximada para conseguir descrever aquilo que decorreu na passada sexta-feira (1) na Galeria Zé dos Bois (ZDB), em Lisboa, local e noite escolhidos para os Bandua – duo formado por Edgar Valente (Criatura, Os Compotas, They Must Be Crazy) e Bernardo D’Addario (ou Tempura) — apresentarem as canções do seu disco homónimo de estreia, lançado em Fevereiro passado com selo da editora internacional Frente Bolivarista (Holanda/Brasil).

Todavia, é necessário que se crie ambiente correcto para que as coisas funcionem bem. Com a ajuda de BirdzZie, isso cumpriu-se. Enquanto o público ia exercendo outro tipo de rituais – o do fino, o de colocar conversas em dia e o de encontrar o lugar certeiro para ver os Bandua numa ZDB a encher até se encontrar totalmente lotada –, o produtor e beatmaker alentejano ia intercalando momentos de electrónica com outros de música tradicional portuguesa, dando o mote para aquilo que se seguiria em palco uns minutos depois deste concluir o seu set

Curiosamente, ou talvez não, é a união entre o mundo da electrónica – mais especificamente, da electrónica downtempo – com o folclore da Beira Baixa (região onde ambos os seus membros têm raízes) que move os Bandua. Não se meçam palavras: aquilo que Edgar e Bernardo fazem é fascinante. Até se pode dizer que é novo, mesmo que a influência de João Aguardela ou de uns Darkside salte à vista. Já soava tudo isso em disco, mas em palco a música do duo torna-se uma experiência espiritual, uma romaria onírica recheada de surpresas constantes que se transforma numa sintonia entre a herança do passado, a esperança do futuro e a união entre público e artista do presente. De certa forma, o que ocorreu ali foi uma espécie de convite lançado pelos Bandua a alguma Lisboa para sair da sua bolha de privilégio, descentralizar-se um pouco e conhecer o universo do cancioneiro da Beira Baixa. E é necessário que se aceite esse convite de braços abertos, de forma que haja uma simbiose em total envolvência com o que ocorre na música desta criatura mística que chamamos de Bandua. 

Quando Bernardo e Edgar entraram em palco, a recepção calorosa do público ao duo indicava que quem ali se encontrava presente tinha a lição estava bem estudada da coisa e sabia ao que vinha. Do lado direito do palco, Bernardo surge para tocar um drone místico, servindo de banda sonora à entrada de Edgar neste cenário misterioso, trazendo com ele sálvia para acendrar as energias (talvez não fosse preciso, mas para se iniciar rituais como o dos Bandua, é preciso garantir que o mau-olhado não está à cuca). 

O toque do uso da sálvia não foi a única coisa a acontecer para incrementar a sensação de envolvência. O espectáculo de luzes que se entremeava pelo fumo e pela sálvia que pairavam pelo ar tornava as figuras de Edgar e Bernardo em apenas silhuetas em movimento, às quais se juntaria uma terceira figura, a de Sara Mercier, para ajudar a tornar viva os sons do grupo. Com tudo a postos, assim se fez silêncio durante um instante para se iniciar “Cinco Sentidos”, faixa mais que apropriada para iniciar-se a cerimónia.

O que se seguiu durante os próximos minutos no interior da ZDB foi praticamente toda a extensão de Bandua a ser transposta para cima de palco (do álbum, faltou apenas “Sexto Sentido” e “Borboleta Dourada” serem tocadas). Essa transposição foi feita praticamente sem nenhuma interrupção entre cada canção, fazendo com que as suas interpretações em palco se tornassem num espectro contínuo de sons, grooves e texturas desnorteantes, tornadas tanto maiores pelo alcance vocal de Edgar, cantando como se a sua alma carregasse o peso dos seus antepassados a quererem ter a sua parte neste ritual, como pela presença em palco destas três figuras. Em particular, um momento durante a performance emotiva de “Encandeia” em que os três intervenientes do palco se colocaram no seu centro a tocar adufe, tornaram a música num autêntico regabofe, onde toda a gente acompanhou como conseguia.

Não faltou, com certeza, amor e carinho ao longo desta comunhão cujo ponto mais alto terá ocorrido mesmo antes de “Encandeia”, quando Bernardo indicou que no público se encontrava uma pessoa muito especial a quem conferiu o crédito de “começar isto” – o seu avô. É a sua voz que se ouve na faixa que abre Bandua, “Era Assim (Intro)”, tocada em formato de homenagem recheada de ternura, num momento que permitiu um respiro depois do aquário da ZDB ter virado pista de dança durante “Macelada”, um dos apogeus musicais da noite, que ainda ofereceu espaço e tempo para uma pequena improvisação de baixo por parte de Tempura.

Contudo, e como tanto acontece nesta vida da música, o melhor ficou mesmo de facto para o fim, com a interpretação de “A Lua”, uma das faixas-destaque do longa-duração. Com as emoções ainda à flor-da-pele dos agradecimentos comoventes para quem tinha tornado tudo isto possível, ficando ar a promessa de que ainda estamos “no princípio”, como referiu Edgar em palco, “A Lua” foi um final mais que digno para o tempo regular. Terminado o espectáculo, surgiu a ovação merecida por parte de um público que, ali e acolá, gritava “Viva a Beira!”, antes de um encore que incluiu a “demo” de duas novas (e futuras?) adições ao repertório dos Bandua, tão bem conseguidas que só desejamos voltar a ouvi-las em breve (até espaço para uma pequena coreografia de dança contemporânea deu para ocorrer por parte de Sara durante este prolongamento do espetáculo). 

Depois do remate final, o sentimento que se vivia no ar era de pura felicidade, tanto de artistas como do público. O concerto era passado, mas as memórias ali vividas eram presente. Fica o apelo com base naquilo que vimos: se tiverem a oportunidade de ir a um concerto de Bandua, vão. Não pensem duas vezes. É um espectáculo libertador e imersivo que nos permite conhecer novas facetas do folclore português e, talvez mais importante que isso, fazer-nos sair das bolhas burguesas onde podemos acabar inseridos se não navegarmos as ondas do privilégio com os cuidados necessários. E quando o sentimento é assim, é mesmo bom parar e escutar. Um bem-haja a quem o fizer.


pub

Últimos da categoria: Reportagem

RBTV

Últimos artigos