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Fotografia: Daryan Dornelles
Publicado a: 18/05/2021

O momento de festejo no pós-violência.

Aurora Pinho: “Sinto que este disco, no fundo, também é um objecto que me permite estar com os meus”

Fotografia: Daryan Dornelles
Publicado a: 18/05/2021

Há conversas que importam mais do que outras. As conversas com Aurora Pinho são sempre importantes, por isso voltámos a falar com ela a propósito do lançamento de FLESH AGAINST FLESH, o seu novo álbum. Uma vez cá fora, pronto para ser absorvido por nós e pelo mundo, quisemos saber os efeitos na artista desta exposição emocional/catarse musical que conta com presenças de Rezm Orah, Herlander, Pássaro Macaco, Cigarra, Diogo, nëss, Evaya, Moullinex, Odete e Misfit Trauma Queen.

FLESH AGAINST FLESH, que conta as histórias e as vivências de Aurora, mas não só, será apresentado no próximo dia 19 de Maio no Musicbox, em Lisboa, na companhia de André Garcia e Lola Herself, uma oportunidade para se assistir à renovada força da sua corpa através das novas músicas, que partem de um sítio de extrema violência e chegam, finalmente, a um lugar (interior) mais pacífico.



Sei que há um ano, mais ou menos, falaste com Rimas e Batidas sobre o FLESH AGAINST FLESH, mas tenho umas questões um bocadinho diferentes. Agora que o álbum está finalmente cá fora, quem é a Aurora depois deste segundo trabalho?

Ui! A Aurora é outra coisa neste momento. Então, depois da pandemia, ainda é outra coisa [risos]. Eu comecei a compor basicamente no final de 2019, quando fui submetida a uma cirurgia e era uma cirurgia [pela qual] já estava há imenso tempo a aguardar. E há imenso tempo ansiosa para que ficasse resolvida, e que começasse a reconhecer finalmente toda minha corpa e não só partes da minha corpa. Então, esse foi o ponto-de-partida. Começou numa extrema violência, mas passou a um processo de cura. Eu comecei a escrever imenso, imensas letras e depois, como tive que ficar dois meses e tal em recuperação, acabei por também começar com os beats e a experimentar tudo. Portanto, digamos que a “sopa” começou aí, a junção de todos os ingredientes. Comecei a repensar quais as urgências que eu sentia, fosse de discurso, de colaborações com outras pessoas que eu achava que fariam sentido para este disco. No fundo, este disco é um bocado a minha base. Eu sinto um bocado [como] a minha base. Do momento em que eu comecei a resolver tanta coisa interna, desde processos de quando era criança, a processos com a minha família, desde processos com a minha outra família, que eu mais tarde pude escolher… Comecei a ver uma bigger picture e a experienciar uma coisa nova, que é o facto de estar confortável com a minha corpa, estar a analisar toda a base de quem é que é a minha família, quem faz parte da minha comunidade, o que é que eu represento, quem é que me representa…Então tive um cuidado diferente dos outros EPs, porque enquanto que esses EPs eram só violência que eu estava a imanar cá para fora, toda a dor auto-destrutiva que eu sentia… Sinto que [este disco] é o meu renascimento: é a Aurora. É toda aquela deusa que alguma vez quis alcançar.

Eu não diria a fase final, mas sentes que é o culminar de tudo aquilo que fizeste para chegar aqui? Finalmente chegaste ao ponto que tu querias estar? Achas que este trabalho representa isso?

Sem dúvida.

Representa um alívio de todo este processo que tem sido?

Sim, é um novo prazer. É o pós-violência, [um] novo prazer. Como é que eu depois de todo este percurso e toda esta minha luta consigo respirar, como é que eu agora consigo olhar, e como é que eu agora consigo sentir toda esta informação do que é sentir-me tão disfórica. O que é que é neste momento essa disforia. Tornou-se uma coisa micro, enquanto antes tomava toda a minha disponibilidade. Então é um festejo, um festejar também desta corpa. É o festejar da minha essência e do que é que eu realmente sou, sob processos de violência, e o que é que é resolver uma série de traumas para neste momento conseguir respirar e viver as coisas e olhar para as coisas de forma diferente.

Achas que podemos dizer que a Aurora depois deste disco é uma Aurora completa a 100%?

100% completa, feliz. É uma Aurora apocalíptica feliz.

Há um ano disseste que o álbum era “é o encontro com um novo corpo e a ânsia de curar a minha identidade, o meu passado.” Podemos concluir que o álbum é uma forma de celebrar esta conclusão?

Exactamente.

E quais é que são as etapas que agora queres explorar?

Neste momento é celebrar em união. Nesta pandemia, neste momento, estamos tão solitárias e tão confinadas, que é difícil continuar com a conexão que sentíamos para com os outros. E eu sinto que este disco, no fundo, também é um objecto que me permite estar com os meus. Permite-me trazer as pessoas com quem eu fiz colaborações, outros músices, faz-me também repensar quais são as urgências que eu sinto neste momento, que posso representar e que na minha plataforma também elas poderem viver e experienciar todo este renascimento, ou toda esta urgência, sejam as minhas manas, as minhas amigas trans, sejam bailarines que eu acho que fazem sentido repensar no momento em que eu tenho outro discurso; e quais são também as pessoas com quem eu gostaria de fazer alguma coisa. Portanto, de que forma é que eu agora com este disco consigo fazer apresentações em que eu não estou sozinha, em que eu não estou a viver aquele momento como uma loba solitária, mas sim uma loba que neste momento tem disponibilidade para partilhar e também tempo para festejar com a minha comunidade e com a minha própria família.

Há uma coisa que reparei neste álbum, que para além de contares a tua história, que é bastante pessoal, tem uma entrega muito íntima. O facto de haver tantas colaborações dá a entender que, para além de quereres partilhar isso com o mundo, estás também a contar a história de inúmeras Auroras e essa questão da partilha. Como é que te sentes enquanto voz de um movimento que tem ainda muito para andar e fazer?

Acima de tudo sinto-me privilegiada por ter uma plataforma ou por ter neste momento forma de produzir artisticamente. Este momento é também para repensar as pessoas que eu quero cuidar, que precisam de ser cuidadas e que precisam de ser representadas. E é isso. É tipo ser o foco em que eu estou a dizer uma coisa que é nova para mim. Tudo será novo a partir de agora. Estamos noutra era, estamos noutra fase, estamos a ver o mundo de uma forma totalmente diferente e ter de viver com isso, não é? O facto de o vírus estar sempre aqui e é uma coisa que nos afasta e faz repensar sempre cada passo que damos. E de que forma é que as pessoas que me são doces e que me ajudaram e que sempre me mostraram o que é o amor, cuidar, o que é que é amar independentemente de todos os processos de violência a que foram submetidas. E o que é também festejar sobre esses processos de violência e sobre essas urgências e ter também um lugar em que podem ter a sua voz e ter uma força, digamos que uma corpa no momento em que está em união com várias corpas ganha outra força. E a leitura será diferente. Porque é isso, nós somos todas diferentes e no momento em que há essa representação, do que é ser diverso, do que é ser fora do comum, do que é que é viver num mundo que não está preparado para nós, como é que nós resistimos… e como é que nós conseguimos ser empoderadas, sabes? Sobre este sistema que nos reprime, que nos abafa, e que nos rejeita…

O que achas que é preciso ainda ser feito para que este sistema se torne mais inclusivo e mais igualitário?

Eu acho que, primeiro, o sistema precisa de conhecer os privilégios. E só aí já é uma fase que nós nunca ultrapassamos. E eu acho que o sistema também precisa de reconhecer que não existe igualdade, por muita luta que tenha existido, ainda não existe. Por muito que vá abrindo algumas frechas, alguns espaços, é muito lento e não é suficiente. Nós queremos estar em todo o lado, nós precisamos de estar em todo o lado. E não é só estar no underground, ou não é só estar em espaços que à partida, independentemente de serem pequenos ou não, nos vão receber. Nós temos que furar isso, nós temos de ir para o público que não nos quer receber, começar a ocupar esses lugares, começar a ocupar todos os teatros, todos os grandes festivais… Quando esse balanço começar realmente a acontecer, aí sim está a acontecer uma grande mudança. Até lá, são pequenas mudanças que não são suficientes, e nunca serão suficientes, porque toda a violência que uma corpa trans, por exemplo, ou uma corpa não-binária, ou uma corpa queer, e toda a luta diária que carrega, só de ir à rua, só de ir comprar um pão, de não ter acesso a uma série de coisas, tem de ser representado e as pessoas têm de começar a mastigar tudo isso e a debaterem-se com isso. E por essa razão que todas estas corpas têm de estar nestes espaços, todas estas corpas têm de tomar conta de um lugar que à partida está totalmente fechado e que não nos permite ter acesso.

Sentes que há uma barreira por parte da própria cultura, dos próprios programadores, dos que fazem a programação cultural, ou os públicos também rejeitam de certa forma esta integração?

Acho que são ambas. Não há essa representação no público, de momento, logo não é um público preparado para essa diferença, para ver outro tipo de linguagens, porque é o desconhecido e em Portugal eu sinto que as pessoas ainda estão muito na sua concha, ainda não conseguem ultrapassar o tipo de arte que já foi instituída. E então não há preparação do público para nos receber. Mas também essa separação existe porque também não estamos a ocupar esse espaço, não nos é permitido ocupar esse espaço. Seja por programadores, seja por festivais, seja pelo público ou whatever… E quer queiramos, quer não, o homem cis é o homem que ainda domina o mundo. Porque não há assim tanta representação de mulheres na música, é sempre um nicho. E depois tu vês os homens cis em todo o lado, a crescerem e então é isso, é uma luta que também falta, que tenho sentido durante esta pandemia, depois de tanto tempo a processar essas urgências, que é começarmo-nos a unir e não fazer só parte da minoria ou só do LGBTQI+. São as pessoas que não fazem parte desta comunidade começarem também a abrir, a expor, a educar, a educarem-se também. Também há muito essa falta de informação. E em união começar a furar esses espaços, perceber esta urgência e, sobretudo, abdicarem do seu privilégio.

Ou seja, é urgente a mudança de narrativa não ser só exclusiva a uma comunidade e deixar de existir esta linha ténue em que se eu quiser posso entrar, como posso sair, mas torná-la uma comunidade integrativa na sociedade, na cultura e em todos os pilares fundamentais. Extrapolando, o que é que preciso fazer para além da cultura?

É preciso as pessoas começarem a repensar os seus discursos, começar a repensar quais são as pessoas que não têm acesso a uma série de possibilidades para viver, quais são os privilégios e reconhecerem. Não há mal nenhum nisso, eu própria tenho os meus privilégios, todas nós temos privilégios dentro do não-privilégio. É também necessário começar a posicionar politicamente. Como sociedade e como país, como é que podemos enriquecer em conjunto? Como é que conseguimos reconhecer o espaço de cada um, e como é que esse um se torna um todo?

Como é tu vês este ressurgimento de ideologias fascistas que têm vindo a ganhar força nos últimos tempos?

É assustador porque faz-me repensar, porque cada vez vai ganhando mais espaço, e estamos num retrocesso gigante. E é cíclico. Parece que sempre que se atinge um certo direito, esse direito pode nos ser retirado amanhã, então estamos sempre ali naquela pontezinha em que o abismo está sempre à vista. Confesso que quando comecei a ver o que estava a acontecer nos últimos tempos, do Partido Chega, do escroto do André, e por aí, é tão assustador porque essa realidade está tão próxima. Eu achava que nós não íamos chegar novamente a esse ponto. Portanto, foi um retrocesso tão gigante que eu tive aquela coisa de pensar “o que é que eu faço se isto acontecer? Se ele ocupar esse espaço, como é que eu me posiciono?” Pensei logo, “eu vou sair daqui, eu não quero viver com um escroto desses no poder”. Eu olho para o Brasil e fico oh my fucking god, eu olho para os Estados Unidos e fico cmon, quando estava lá o outro escroto também. Então é assustador como é que um partido de extrema-direita começa de repente a ocupar um espaço que eu achava que já não havia possibilidade.

Acho que não ajuda quando há países dentro da Europa, como a Polónia, que limitam cada vez mais.

É completamente extremista.

E vivemos numa comunidade de países que os direitos humanos são só para alguns e isso é assustador. E tu dedicas o teu álbum à memória da Gisberta, da Luna, da Lara Crespo, do Matias Pinto, da Mia Rosa, da Angelita Correia e do André aka Lisboeta Italiano. São nomes importantes e fazemos questão de mencioná-los a todos. Queria perguntar-te como é que queres que eles sejam lembrados?

Eu acho que há muitas pessoas que fizeram parte da minha vida e da minha construção, como a Gisberta, por exemplo, eu nunca mais me vou esquecer do momento em que, na passagem dos 14 para os 15 anos, soube desse desfecho trágico, e como isso ecoou na minha corpa, como é que isso me fez recuar no momento da minha vida que estava a ser crucial, que era expor o facto de ser trans e ao mesmo tempo como é que isso radicalmente me mudou e como é que isso me construiu. Como a Lara Crespo, que foi uma das pessoas muito importantes na nossa luta cá em Portugal, que moveu montanhas para ver os nossos direitos a serem representados, e nós termos outro tipo de qualidade de vida que nos estava a ser completamente abafado. O Matias foi das pessoas mais importantes da minha vida quando eu fiz o meu coming out, e tivemos um momento muito próximo e era uma pessoa que me era muito querida e, mais uma vez, devido a toda a violência a que foi submetido, não conseguiu estar mais connosco. A Mia Rosa também foi uma miúda que me procurou e falou sobre as urgências dela e nós criámos uma ligação. A Angelita também conheci no Porto e é uma pessoa que… ainda é muito fresco e eu ainda sinto na pele o que é toda a violência, o que é que é projectar a ausência de uma pessoa que ainda devia estar connosco. O André é uma pessoa que trabalhou comigo e também fez parte do meu processo e, infelizmente, também já não está cá, mas a obra dele vai ecoar sempre. E estes nomes têm que persistir, têm que ser relembrados, fazem parte da nossa história e representam-nos. São nomes que não ficam esquecidos e são nomes eternos.

Isto faz-me pensar que este álbum é do individual para um colectivo, mas também de um colectivo para um individual. É uma coisa muito bonita que fazes neste trabalho, não só com pessoas, mas com estilos. Abordas vários estilos e é incrível ver como é que te inspiras nas histórias de outras pessoas, na tua própria história e como é que as tuas influências de infância continuam a influenciar o teu processo criativo. Fala-me sobre esta nostalgia, como é que é este misturar de nomes, de narrativas, de histórias que fizeram este álbum possível?

Eu sinto que ainda é um sonho. Era um desejo que eu tinha desde sempre, que era trabalhar com artistas que me inspiram, trabalhar com material que vive na minha corpa e [perceber] como é que eu também consigo criar um objecto que me represente totalmente — quando ouço o disco, consigo ver essa viagem completa. Consigo ver a miúda que eu fui, consigo ver toda a violência que eu senti quando comecei a dançar hip hop, quando estava na escola, quando sofria de bullying, como é que eu consegui resistir a tudo isso e ultrapassar todos esses traumas, como foi passar por um processo de coming out e conhecer imensas manas e muitas manas já não estarem cá e outras manas continuarem a fazer parte da minha vida, continuarem a inspirar-me a ser a pessoa que sou hoje e ajudarem-me também a ultrapassar todos esses traumas e ultrapassar também os traumas delas. De que forma é que conseguimos criar uma força que deixe de ser auto-destrutiva e passe a ser destrutiva para o mundo no momento em que nós existimos e pegamos fogo à cidade ou às ruas ou ao mundo inteiro, se for preciso. Como é que nós queimamos essa dor e como é que nós resistimos com a nossa existência e com o lugar que ocupamos e é urgente. E, ao mesmo tempo, toda esta experimentação que eu tive na música durante todo este tempo de processos de violência, como é que eu agora consigo ter um novo discurso, porque a minha corpa é outra, o meu lugar, neste momento, é outro. E como é que toda esta construção de anos ressoa na voz que eu quero ocupar e quais são os lugares urgentes que eu quero furar, e deixar esta voz contaminar os espaços juntamente com todas estas vozes que me sustentam, que me protegem e que, ao mesmo tempo, nesta inspiração, projectam-se da mesma forma que a minha.

Em 2019 disseste que a música era o único sítio onde te permitias falhar, que na performance não querias, mas que na música te permitias a fazê-lo. Quais é que foram os “erros” que neste segundo álbum conseguiste ultrapassar? Quais é que foram as coisas que quiseste aprender para fazer diferente?

Neste momento, como a minha disponibilidade é outra, eu comecei a escutar e a refazer todos os meus discursos, comecei a criar novas formas, comecei a desafiar-me também, ao ponto de, no momento em que estou confortável comigo, de que forma é que eu também me entranho na minha pele. E como é que o som, neste momento, a apresentação do som ou a produção deste disco, depois de tanto desafio, tanta experimentação, como é que eu agora consegui criar uma outra corpa, e como é que eu agora consegui ir a toda a minha profundidade aquática, e todo o desmame, e extrair o prazer de toda essa violência também. Porque essa violência construiu o que eu sou agora. Essa violência construiu as urgências que eu fui desenvolvendo durante estes anos, todos os objectos que eu fui criando, seja na performance, seja na música. E quando dizia falhar, eu própria não acreditava em mim. E, neste momento, eu consigo acreditar, consigo ouvir este disco e acreditar que ele é bom! Ao contrário dos outros EPs que eu desenvolvi, aquilo para mim era sempre muito caótico, e eu olhava e ficava “hmm, girl, como é que vais fazer isto? Vais para um palco!” Só esta coisa, sabes, de “vais para o palco tocar”. E eu ficava super nervosa e não conseguia também aproveitar todos estes momentos que eu fui tendo na música, todos os espaços que eu ocupei, porque estava um turbilhão à minha volta. E neste momento, eu sinto que estou serena, estou calma, estou pronta. Calma no sentido de “resolvida”. E pronta para pegar fogo!

Pronta para pegar fogo a um palco?

Isso estou! Estou esfomeada!


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