pub

Fotografia: Daniel Orge
Publicado a: 26/05/2022

Unir os pontos para chegar ao topo da montanha.

André B. Silva: “Eu gosto de coisas por explorar e os meus projectos partem de ideias um bocado incomuns”

Fotografia: Daniel Orge
Publicado a: 26/05/2022

Seis anos depois de ter começado a imaginá-lo, André B. Silva concretizou Mt. Meru (a gravação aconteceu em Dezembro passado, a edição — pela Clean Feed — em Março deste ano). José Soares (saxofone alto), Raquel Reis (violoncelo), Sophie Bernardo (fagote), Paulo Bernardino (clarinete baixo), André Carvalho (contrabaixo) e Ricardo Coelho (bateria, percussão e vibrafone) foram os músicos de serviço para este disco que se move algures entre um jazz composto e uma música de câmara contemporânea intuída.

O guitarrista, compositor e professor nasceu e foi criado em Lisboa, mas, depois de uma ida até ao Norte para entrar na ESMAE, deixou-se encantar pela cena do Porto, ficando por lá até aos dias de hoje — uma estadia interrompida por uma passagem de dois anos por Nova Iorque. Para lá dos discos em nome próprio ou de The Guit Kune Do (com António Pedro Neves AP, Eurico Costa, Francisco Rua, Virxilio da Silva, João Próspero e Diogo Silva), o músico faz parte ainda do grupo The Rite of Trio (com Filipe Louro e Pedro Melo Alves).

Tudo isto serviu de motivo para uma conversa preenchida em que não se deixou pedra por levantar.



Como é que isto da música nasce para ti? Há um contexto familiar ou algo que te tenha empurrado para este caminho?

Acho que, nesse sentido, sou uma carta fora do baralho [risos]. Acho que a minha família é das que estão mais afastadas da música e das artes em geral. Eu comecei a tocar bastante tarde. Os meus pais não tocam nada. Ninguém na minha família toca absolutamente nada. Os meus pais ouviam boa música da geração deles.

Levas essa vantagem sobre mim. Eu ganhei este interesse pela música quando não havia um disco — nem o mínimo de interesse — em minha casa. Pelo menos tinhas isso: os teus pais ouviam música.

Sim. E o mais importante, para mim, foi eles terem-me metido em aulas de piano bastante cedo.

Lá no Porto?

Não, não. Já agora, vamos começar pelo início: eu sou de Lisboa [risos]. Nasci em Lisboa e fui criado em Lisboa. Fui viver para o Porto há 11 anos, quando fui para a ESMAE. Fiz o Hot Clube aqui, depois fui para a ESMAE e apaixonei-me pela cidade. Estava farto de Lisboa. Viver em Lisboa não está nos planos. Posso ir para outro lado qualquer. Já vivi em Nova Iorque durante dois anos.

Então e essas aulas de piano?

Eu não gostava daquilo, pura e simplesmente. Aquilo roubava-me as manhãs de sábado, que era quando eu gostava de ficar a ver desenhos animados e a brincar [risos].

Bem sei o que é isso [risos]. Eu era a cena dos escuteiros e o ter que ir à missa à mesma hora dos desenhos animados.

Exactamente. É tipo, “não! Nós passamos quase todas as manhãs nas aulas. Sábado e domingo de manhã queremos ficar a ver desenhos animados”. [Risos] Mas eu ainda andei naquilo durante uns quatro ou cinco anos. Às tantas, decido entrar para o conservatório. A minha prova de admissão foi tocar o “Hino da Alegria” com uma mão, que é uma coisa que qualquer pessoa que nunca tocou piano pode aprender em uma hora [risos]. Essa foi a minha prova de entrada para o conservatório, depois de anos a estudar piano. Tinha 13 anos. O conservatório foi uma experiência horrível. Odiava as aulas. Chorava antes de ir para as aulas. Ao fim de seis meses — acho –, desisti. A música podia ter acabado para mim ali, para sempre. A experiência foi traumática o suficiente [risos]. Aos 16 anos, com a cena da adolescência, os amigos com guitarras e não sei quê, comecei a tocar. Já é uma entrada tardia da música. Esse interesse cresceu tarde. Ainda tirei outro curso e já nem achava que ia ser músico. Só que deu-se aí uma coisa interessante, que foi o eu começar a escrever músicas. Essa cena, de se ser cantautor, é uma coisa na qual muito pouco pessoal se aventura — gostam só de tocar. Isso, se calhar, já é algo no qual eu comecei cedo.

Tinhas que idade?

Comecei a tocar guitarra com 16. Escrever músicas terá sido um ou dois anos depois disso. Pela minha experiência com a malta que tocava comigo, ninguém pensava em escrever músicas. A música era só tocada. Não havia o compor, o escrever letras, canções…

É um chip diferente. Uma coisa é estares a copiar os Nirvana, outra coisa é estares a pensar numa composição própria.

Sim. Mas, obviamente, existiam bandas. O pessoal criava coisas mas… Eu naquela altura estava a escrever músicas com base harmónica, base rítmica, base melódica, letras, tudo. Era uma cena que me despertava bastante interesse. Cheguei a ter um projecto como cantautor e cheguei a gravar um disco. Acho foi isso que me deu mais vontade de explorar do que aquela cena do teenager que pega na guitarra.

Esse disco saiu?

Saiu. Por acaso até vou a casa buscar um, porque alguém me pediu um recentemente. Esse disco saiu em 2009 e foi gravado com músicos que andavam comigo no Hot Clube, na altura.

Creditado a?

O grupo chamava-se Best Before Full Moon. É um trabalho que ainda hoje ouço e-

Não te envergonha?

Não me envergonha. Porque eu já tinha a mente aberta o suficiente naquela altura. Já andava a estudar jazz e à procura de sons diferentes. Acabou por ser uma cena de singer/songwriter com algumas influências harmónicas de coisas que eu comecei a ouvir na altura.

Curioso.

É interessante. Infelizmente, eu não cantava incrivelmente bem. Para mim, é a única coisa que não torna o trabalho super sólido. E as letras, que já estão um bocado desactualizadas [risos]. Mas não me envergonha, de todo. Depois aconteceu uma coisa muito interessante, que foi a crise dos Estados Unidos, em que nós fomos, de alguma forma, afectados tremendamente com isso. Fomos colocados no grupos dos PIGS — Portugal, Ireland, Greece, Spain —, sabe-se lá bem porquê. Isso foi quando a minha geração está a acabar a universidade e não havia trabalho para ninguém. Para médicos ainda havia. Mas montes de malta de engenharia e de outras coisas glamorosas — como eu, que tirei Sociologia por opção [risos]. Olho para o panorama e vejo que está tudo na merda. “Ninguém se está a safar. Mal por mal, deixa-me tentar tocar e ver o que acontece”. Eu não tinha nada a perder. A verdade era essa.

Então, temos a agradecer a tua carreira ao Madoff.

Isso. E aos Lehman Brothers [risos]. O que aconteceu foi que eu disse aos meus pais, “vou estudar música durante um ano e ver o que é que acontece”. Entrei no Hot Clube. No final desse ano já estava também a dar aulas de música e fui aceite num projecto de dança contemporânea com direcção musical do Carlos Bica. Tinha duas coisas que me davam rendimento, coisa que eu achava impossível nesta área, enquanto músico, numa altura particularmente complicada para o pessoal ganhar dinheiro. Isso deu-me esperança e foi uma carta fixe para eu apresentar aos meus pais, e dizer-lhes que vou mesmo fazer isto e que vai ser assim daqui para a frente.

Estás com que idade?

Estou com 35.

Que jovem.

Que jovem? Eu acho que estou numa idade em que pessoas de ambos os espectros me dizem o contrário. Uns dizem “que jovem”, outros “que velho” [risos].

Ainda há o Porto e a ESMAE. Como é que foi a tua formação aí? Há um clima qualquer que é particular daquele sítio, não é? Tu deves ter um ponto-de-vista interessante porque tens a comparação com Lisboa.

Sim. Em Lisboa estava sempre a tocar. Era incrível. Gigs de merda — cafés, bares, restaurantes. Mas estava sempre a tocar. Havia muito trabalho e, possivelmente, ainda há — é a ideia que tenho, pelo que o pessoal me fala. No Porto não há essa cultura, que eu acho que tem muito a ver com turismo e com dinheiro. Contratar uma banda de jazz é um bem de luxo. As instituições com dinheiro não estão abertas a ter um grupo de jazz, a não ser que seja algo recente em Portugal. A teoria que eu desenvolvi — não sei se está certa ou errada, mas é o que me parece e eu fui muito afectado por ela, tanto quando estava em Lisboa como no Porto — é esta: havendo falta de trabalho e de coisas para o pessoal fazer, as pessoas têm de inventar coisas para fazer.

É essa a teoria que explica o nascimento do grunge, em Seattle. Quando não há nada para fazer, a música é a única opção.

É isso [risos]. Eu sou um bocado suspeito a falar disso, porque faço parte da cena, mas há muita gente de Lisboa que me diz, “fogo. Eu gostava de fazer parte de uma cena criativa. Há tantos projectos a aparecer, criativos e super inspiradores”. Em Lisboa não tens assim tantos, se comparares a dimensão da cena. Acho que é porque há sempre coisas para fazer em Lisboa. Há gigs aqui, gigs ali. Não há tempo para ensaiar, para pensar em projectos, para compor. E não há necessidade também, não é? Se a coisa está a funcionar, porque é que hás-de estar a criar problemas? No Porto não. No Porto, as pessoas têm de criar as suas próprias coisas e isso deu origem a cenas muito fixes. É a minha teoria. Pelo menos comigo funcionou.

Como é que tu te integraste na cena do Porto? O que é que encontraste ali e que te puxou, ao ponto de te teres fixado lá? Até porque tu hoje dizes “eu sou do Porto”.

Começando pelo mais óbvio: a cidade é lindíssima. Lisboa também, mas o Porto tem um encanto especial, introspectivo, que eu gosto muito. Tem uma qualidade de vida muito boa. Podes andar para todo o lado. Depois, há a parte humana da cidade, que eu acho que é muito diferente da de Lisboa. Eu cresci em Lisboa, estive ausente nos últimos anos e agora, quando volto, já não sinto que esta cidade tenha algo a ver comigo. Lisboa mudou tanto nos últimos 10 anos, por causa do turismo, das pessoas que, de repente, passam a frequentar e a habitar a cidade.

O Porto também se está a transformar.

Também. Está a transformar-se há muitos anos já. Espero que não vá muito para além disto. Sinto que ainda existe um equilíbrio fixe. Há um balanço fixe. E ainda se preserva muito da sua “cena” original. Lisboa não. Pelo menos eu não o sinto. Sinto que é uma cidade totalmente diferente. Já não moram lisboetas em Lisboa — são muito poucos. Os lisboetas de antigamente, de há 50 ou 60 anos, já não existem. Os novos lisboetas, também acho que poucos habitam em Lisboa, foram para as periferias. Não sei se isso é a causa ou é o efeito, mas sinto que o trato, a forma como as pessoas se interligam umas com as outras, é diferente. A mim entristece-me. Acho que em Lisboa as pessoas são mais frias, competitivas, super focadas no que precisam de fazer.

E o que é que te levou a Nova Iorque? Estudos?

Sim. Fui para lá estudar.

Em que ano?

Em 2018. Voltei em 2020, com a pandemia.

Em 2018 já levavas essa experiência toda do Porto. Já tinhas The Rite of Trio, etc.

Sim, sim. The Rite of Trio já existia há vários anos. Estávamos mais ou menos estabelecidos na cena. Essencialmente, sinto que no nicho do jazz em Lisboa não é tão fácil as pessoas darem-se. Existem muitas divisões para um meio tão pequeno e que sofre tanto.

Cenas estéticas? Tipo, “tu és do free ou do tradicional?”

Não, não. Mesmo em termos das pessoas se darem. Toda a gente saber que fazemos parte da mesma família mas as pessoas passam na rua e não se falam e fingem que não se conhecem.

Tem a ver com a economia? “Tu estás a roubar-me trabalho.”

Talvez seja dessa competitividade. É possível. Ou pode ter a ver com uma certa arrogância que, às vezes, está tradicionalmente associada a este estilo musical — embora para mim, que fui até à fonte, nunca tenha encontrado isso. Isso existe cá.



E no Porto não o sentes?

Zero. Independentemente de há quantos anos tocam ou da experiência que têm naquilo. Toda a gente é muito aberta e inclusiva. “Estás aqui, queres conhecer? Queres fazer parte? Anda. E se precisares de alguém para tocar ou fazer outra coisa qualquer, nós estamos aqui para ti”. Toda a gente sempre foi assim. É incrível. Se quiseres, aproveitas e tocas com alguns dos músicos mais incríveis da cidade do Porto. É só mandares uma mensagem e respeitares a agenda preenchida deles.

Fala-me do teu percurso discográfico dentro do jazz. Qual foi o primeiro momento em que tu foste a estúdio, já dentro desta linguagem? Foi através de The Rite of Trio?

Sim. The Rite of Trio foi o primeiro disco de “jazz”, ou de…

De música improvisada?

Do meu percurso enquanto músico de jazz.

Podemos introduzir aqui uns parêntesis: tens problemas com essas designações ou carimbos, de “isto é jazz”, “isto é música improvisada”, “isto é música contemporânea”…

Eu não tenho problemas com eles. Se as pessoas os utilizarem, não me incomoda, de todo.

Mas não te definem?

É complicado. Definem-me de alguma forma, mas não me definem de muitas outras formas. Com a música que eu faço e aquela que me interessa, de forma geral, é sempre complicado colocar rótulos. Mas pronto. As pessoas podem chamar-lhe jazz.

E isso não é redutor? Tu estás a querer seguir numa determinada direcção e, de repente, encaixam-te naquela caixa.

Eu estou-me a cagar para isso, sinceramente. Não quero saber de onde é que me encaixam ou não. Para mim é mais uma coisa de tentar ser preciso com o termo que eu utilizo para descrever. Eu não vou dizer que The Rite of Trio é jazz. Isso não seria extremamente preciso, para mim. Mas se as pessoas dizem que é jazz, tanto se me dá.

“Chamem-lhe o que quiserem, mas deixem-nos tocar.”

É exactamente isso [risos]. Acho que já estamos tão longe para ainda andarmos a tentar encontrar fórmulas que descrevam o que se faz hoje em dia. Na verdade, acho que é um exercício um bocado fútil. É necessário, talvez, para quem escreve sobre. Mas acho que é um bocado fútil querer descobrir como é que se vai descrever esta música.

A Porta-Jazz é uma das grandes instituições do Porto e tu relacionaste-te com eles para lançar alguns discos. O que é que te levou a querer trabalhar dentro daquele ecossistema que eles criaram?

A Porta-Jazz é, provavelmente, a melhor coisa que já aconteceu ao jazz do Porto. Isto é óbvio: a cena jazz do Porto de hoje existe por causa da Porta-Jazz. São pessoas incríveis, que têm as ideias no sítio certo.

Há ali um espírito de família, não é?

Também. Mas mais importante do que isso: questionam-se constantemente. Questionam decisões que tomam, questionam os processos e os padrões que têm tido ao longo dos anos. Isso é incrível, porque as coisas, por vezes, tendem a solidificar-se de formas menos boas. Ao questionarem-se constantemente, encontram formas de tentar fugir aos podres que começam a aparecer ao longo dos anos. Isso é muito importante.

As relações humanas são complicadas.

Claro. E ainda por cima quando as decisões importantes estão na mão de poucas pessoas, isso é sempre complicado. Eles sempre tiveram uma atitude super democrática em relação a isso. É incrível. Ainda hoje, sempre que falo com eles, fico com aquela sensação de “estes gajos continuam a fazer as coisas bem”. Obviamente foi um gosto. A questão dos The Rite of Trio e, depois, mais tarde, os The Guit Kune Do, foi incrível. O processo foi parecido. “Apetece-me fazer isto e vou fazer. Ponto final”. Faço-os, apresento-os e o Brandão estava presente em ambos. Chega-se ao pé de nós e diz, “vamos tentar lançar isto pela Porta-Jazz?”

“‘Bora lá.”

Exactamente. O processo é um bocadinho complicado, porque tem de ser aprovado pela associação toda. Mas é tão bom, sentires que construíste uma coisa, que é aquilo que tu queres e que não estás a seguir nada.

A tua arte foi submetida a um processo democrático. Tão bom.

Quer dizer, primeiro foi um processo ditatorial [risos]. Porque foi o Brandão que se chegou e disse, “isto é fixe. Manda-me para nós ouvirmos”. Depois, a decisão é democrática. Eu sei que, muitas das vezes — e foi o que aconteceu com este, pela Clean Feed — tu mandas e rezas. “Por favor, aceita!” Aqui não. Porque foi ele que se chegou à frente e disse, “isto é fixe e nós queremos apoiar esta cena”. Tem um sabor especial.

Fala-me dos desafios que representam o ser-se guitarrista neste panorama musical muito específico — chamemos-lhe jazz, música criativa, improvisada, whatever — em Portugal por esta altura. Isto porque existe o Delgado, o Gonçalves, o Mané Fernandes… Enfim, é uma zona bastante povoada. Houve algum momento em que tenhas questionado, “se calhar devia ter prestado mais atenção à aulas de piano?”

Não [risos].

Mas achas que há guitarristas em excesso ou em falta no nosso país?

Nem em excesso nem em falta. Há com a conta certa. Há guitarristas absolutamente incríveis. Somos um país sortudo nesse aspecto. André Matos, Pedro Branco… É interminável a lista. Temos pessoas muito boas e muito talentosas. Nunca me questionei, até porque eu era contrabaixista e guitarrista enquanto andei no Hot Clube — tinha mais concertos como contrabaixista. Eu nunca tive de escolher nenhum, mas há um momento em que, no meu segundo ano a estudar os dois instrumentos em simultâneo, percebi que aquilo já ia ser difícil o suficiente só com um instrumento. Prosseguir com os dois ia ser um bocado impossível. Tive de optar e optei por guitarra. Pode parecer ridículo, mas optei por guitarra por achar que o desafio era maior. E como é ser guitarrista aqui? É complicado, de facto. Gostava de ter menos problemas e de ser chamado para os problemas dos outros [risos]. Criar projectos é incrível mas também traz muita chatice logística e financeira. Às vezes era bom poder descansar um bocadinho dessa parte para estar mais presente nos projectos dos outros. É complicado quando há tantos guitarristas tão bons, mas faz parte do desafio.

Mencionas um momento de decisão entre, “sou um sideman ou sou um líder?” Cada uma dessas coisas conduz para um conjunto de desafios muito específicos, não é?

Sem dúvida. Mas no jazz é muito comum os líderes serem sideman e os sideman serem líderes. Faz parte da tradição de há anos e anos. Mas há pessoal que só é líder, tanto como também existem quem seja apenas sideman.

O que é que te traz maior tranquilidade? Ou o que é que te pagou mais rendas de casa até hoje?

Como líder, sem dúvida. Isto é uma coisa que eu digo muitas vezes aos meus alunos, quando eles se deparam com aquela realidade de, “há guitarristas incríveis no mundo. Como é que há lugar para mim?” Para mim, o segredo é: se fizeres três projectos por ano vais ter muito trabalho; principalmente se forem projectos bons. Se trabalhares o suficiente e construíres muitos projectos, vais ter bué de chatices mas também vais ter montes de trabalho. É isso que me tem pago rendas. Os meus projectos continuam a tocar em sítios e festivais fixes e a trazer-me guito. Se eu tivesse parado em casa, à espera que me chamassem para gigs, se calhar estava numa situação muito pior.

Em relação ao The Guit Kune Do: imaginando que eu era um guitarrista a querer afirmar-me, eu não vou chamar outros guitarristas para estarem ao meu lado e a tirarem-me o foco. Que raio de ideia foi essa?

Eu costumo descrever The Guit Kune Do como uma “ideia de merda” [risos]. Porque o é. Não faz sentido nenhum. Eu percebo o que quiseste dizer, mas a razão é só mesmo-

Queres brilhar entre iguais?

Não é entre iguais. Eu não quero estar a falar em níveis ou o que quer que seja, mas um deles foi meu professor, outros são guitarristas da cidade há décadas, outro é o Virxilio da Silva que, para mim, é o melhor guitarrista da Península Ibérica [risos]. São pessoas que eu, não querendo estar a falar muito de níveis, considero que estão acima de mim. É altamente inspirador poder tocar com eles. Tenho de ser humilde. É um exercício fixe de anulação do ego. Eu não quero estar preocupado com essa coisa, se estou ou não a brilhar à frente desta gente toda. Eu quero servir a música. E este grupo, especificamente, está a servir a música acima de tudo, a meu ver. Quando isso aparece — e é uma coisa comum, que aparece e com a qual temos de lutar — deixamos de estar a falar de música.

Mas tu mencionas a palavra “nível” várias vezes no teu discurso. Há um ranking de guitarristas em Portugal? Ou de saxofonistas, pianistas…

Há modas e há pessoas que são mais requisitadas por alguma razão — não quero dizer que não haja nível. Eu acredito que existem sete mil milhões de génios musicais no mundo.

Uns expressam-se e outros nem por isso?

Exactamente. Por alguma razão, há uns que são mais requisitados do que outros. Quando eu falo em “nível”, falo de cenas pessoais, de como admiro a forma como eles tocam ao ponto de pensar, “eu gostava de fazer isto.”

No ranking que tu elaboraste na tua cabeça, quem é que está no topo e quem é que está em baixo ou no meio?

Não sei se posso dizer isto assim, em público [risos]. Todos os nomes que já mencionámos. O Eurico, que toca comigo em The Guit Kune Do, o André Moreira, o AP… Isto em termos de malta do Porto. Há agora uma nova geração a surgir que também está a tocar muito bem. No sul, o André Santos, o Bruno Santos, o Afonso Pais, Nuno Ferreira, o André Fernandes… É tudo malta que eu admiro imensamente. Lá está, fazem parte dos sete mil milhões de génios musicais diferentes. Há coisas que eles têm que eu adoro e que penso, “adorava conseguir fazer isto”. Há outras coisas que eles têm que eu acho, “fixe, isto soa bem mas não é para mim”. Essa cena do ranking é triste. O ranking surge da economia, porque há recursos limitados. É uma verdade e é uma tristeza, porque acho que isto também torna as pessoas amargas e faz surgir esta questão da competitividade nos músicos. É triste porque nós já somos uma família tão pequena, tão reduzida e que passa tantas dificuldades, mas por haver escassez de recursos criam-se estas dinâmicas mais tristes. Acabamos por não aproveitar aquilo que os outros têm de bom para nos oferecer. Contra mim falo, porque isto é um processo de luta constante.

Mencionaste que dás aulas.

Sim.



E que tipo de alunos é que tu tens? São mulheres, homens, brancos, negros?

Mulheres não tanto. É algo do qual tenho pena. Acho que a guitarra ainda é um dos poucos instrumentos muito associados à questão do género. Não sei se é do instrumento ou se são as mentes das pessoas.

Um dos poucos? São todos! O único instrumento que eu sinto que está reservado às mulheres, no jazz português, é o microfone.

Sim. Mas sinto que há outros instrumentos em que começa a ser mais comum. No piano, no saxofone… Olha, esta é uma questão sobre a qual eu já pensei a propósito de The Guit Kune Do. Eu deparei-me com a situação de que há uma presença demasiado masculina em palco, com tudo o que isso acarreta. Ou seja, há uma cena energética que poderia ganhar muito com a presença de mulheres. Em Mt. Meru, isso passou-me pela cabeça. Eu não escolhi os músicos por serem mulheres ou homens, mas eu queria que a energia fosse o mais mista possível. Acho que ganhou imenso. Nos The Guit Kune Do não é possível. Em Portugal, que guitarrista mulher é que eu posso convidar? Não há, simplesmente.

Neste momento, tens alunas?

Já tive. Não a estudar jazz, especificamente. Tive alunas que queriam estudar guitarra e guitarra eléctrica, mas mais orientadas para outros estilos. Na ESMAE, por exemplo, nunca houve uma aluna guitarrista. Acho que, em Lisboa, começam a aparecer algumas.

E quanto a afro-descendentes?

Homens, sim. Tive um aluno, no ano passado.

Um?!

Um. Sim. Continuam a ser minorias.

Eu lembro-me de, no mínimo há 20 anos, ver anúncios na minha revista inglesa favorita, a The Wire, em relação programas do Ministério da Cultura local, a oferecer bolsas para bandas de jazz que quisessem ir tocar junto de escolas primárias. Em Inglaterra, esse trabalho junto das comunidades está a ser feito. Eu não quero fazer acusação nenhuma, mas acho que esse mesmo trabalho não está a ser feito cá, pelas instituições que defendem o jazz português. A cultura não está a ser usada como uma ferramenta de integração.

A cena é que as escolas — pelo menos aquelas às quais estive ligado, como a ESMAE — não têm sequer dinheiro para funcionar. Quando eu andava na ESMAE, não havia sequer dinheiro para comprar papel higiénico ou para acender as luzes à noite. Eu sei que eles têm responsabilidade social e que tentam fazer algumas coisas, mas é difícil chegar a todo o lado. Eu acho que o problema é um problema geral. É o problema do 1% [do Orçamento de Estado] para a cultura [risos].

Em relação ao Mt. Meru: é um disco diferente, com um ensemble diferente e que traz desafios diferentes para quem o está a escutar. Como é que esta música nasceu?

O nascimento é muito pouco entusiasmante. Eu gostava que fosse mais [risos]. A história dos The Guit Kune Do, por exemplo, é mais interessante. Eu gosto de coisas por explorar e todos os meus projectos partem de ideias um bocado incomuns. É tipo, “eu tive esta ideia, agora vamos tentar fazer isto funcionar, de alguma forma”. Em Mt. Meru, a primeira coisa que apareceu foi a instrumentação. Esta formação foi decidida há seis anos. Foi “eu quero fazer um projecto com estas pessoas, especificamente. Não sei ao que é que vai soar.”

Então fizeste os castings antes de teres escrito o argumento.

Mais ou menos. Depois houve algumas variações. Mas sim.

Decidiste quais iam ser as vozes antes de escreveres o texto.

Sim. Eu acho que decidi o som do disco antes de o escrever. A minha escrita funciona da seguinte forma: eu tenho uma ideia e essa ideia vai tornar-se muito clara; depois, é como aqueles livros de passatempos em que tens de ir unindo os pontos.

Na prática, como é que isso se manifesta? Há pautas escritas para cada um dos instrumentos?

É música escrita. Muita música escrita. Isto é um trabalho de composição clássico. O projecto surgiu mas evoluiu de uma forma muito diferente. Quando eu comecei a trabalhar nele, estava muito orientado para uma cena de groove, de beat. Na altura, andava muito focado na mistura entre jazz e hip hop, que estava muito na moda — e está.

Está muito na moda?! Em Portugal?!

Em Portugal, há-de estar na moda daqui a uns 10 anos [risos]. Mas tenho pegado nesses conceitos do jazz e da neo-soul — melodias jazz mas com a cena rítmica do hip hop muito presente. Andava super focado nisso naquela altura. Tanto que, a primeira música a ser escrita foi a “5-06”, que é a música assumidamente com mais groove. Depois, as coisas mudam [risos]. Não na música, mas noutras coisas. A música é que acaba por ser um reflexo da vida. Eu vivia no Porto, na altura. Depois fui para Nova Iorque. Depois veio a pandemia… Foi muito tempo. Eu comecei a escrever há seis anos e acabei de escrever em Outubro passado.

E a tua ida a Nova Iorque? Porque raio não ficaste na América? Tocaste por lá?

Também. Toquei em clubes, andei nas jams. Mas fui, essencialmente, para tirar um mestrado. O ensino lá é um bocado diferente que o de cá [risos].

Jura!

É diferente. E é diferente pelos melhores motivos. O ensino é, de facto, incrível. Eles levam tudo muito a sério. Não só os professores, mas também os próprios alunos. Cá, os professores também levam as coisas muito a sério, só não são pagos o suficiente. Lá não. E tens de trabalhar para caraças. Ou seja, acabei por não conseguir fazer tanto nem aproveitar o suficiente a cidade. Ia fazer isso no ano a seguir, porque eles dão-te uma extensão de um ano ao visto de estudante, em que podes inclusivamente trabalhar lá. Isso não aconteceu. Basicamente, fiquei num quadrado em Nova Iorque, a pagar uma renda caríssima. Podia ter tentado aguentar, mas ninguém sabia quando é que isto acabava. Já foi trágico, mas podia ter sido ainda mais. Tive de voltar e refazer a vida toda por cá. Ainda tive viagens canceladas. O projecto era para ter saído até Agosto de 2021 mas foi adiado por duas vezes. Isto por não ter forma de reunir os músicos — dois deles são de Nova Iorque. O projecto foi todo construído num momento pré-pandémico. Quando a pandemia aconteceu, tive de reformular uma série de coisas.

Mas essa sessão de gravação acabou por acontecer.

A sessão aconteceu bastante recentemente, em Dezembro de 2021.

“Anteontem”.

Exacto. Quase “anteontem” [risos]. Foi um recorde, quase, desde a captação até ao lançamento. Uns três meses. Um recorde. O primeiro disco dos The Rite of Trio demorou um ano e meio. O The Guit Kune Do demorou quase dois anos [risos].

Como é que foi essa sessão?

Foi intensa [risos].

Muitos telefonemas no dia anterior? “Olha, amanhã é às 15h, não te esqueças!”

A cena foi que o grupo nunca se tinha reunido. Eu marquei uma semana, de segunda a sábado. A gravação aconteceu quinta, sexta e sábado. Terça e quarta foi ensaiar, ensaiar. Essa foi a primeira vez que o grupo se reuniu.

Onde é que foi gravado?

No ermo do caos, não sei se já ouviste falar. É uma associação da qual eu faço parte, mais o Pedro [Melo Alves]. Mas foi nessa segunda-feira que esta música se fez ao vivo pela primeira vez, para irmos para estúdio na quinta-feira. E a música é muito complexa… A música não se mede a metro, mas estamos a falar de 250 páginas de música escritas. É um livro [risos].

E eles vinham todos com a lição estudada?

Sim. O que é certo é que aconteceu e eles são todos músicos mesmo absolutamente incríveis. Se não fossem eles, isto não tinha acontecido.

Olha: achas que temos o contexto politico-cultural ideal para que pessoas como tu consigam realizar as suas ideias?

Há pouco perguntaste-me sobre o que é que eu digo aos meus alunos. É muito difícil — especificamente nos dias de hoje; há três anos não era assim — ver os meus alunos com todas aquelas questões, que são legítimas. “Não sei se devo fazer isto. Não sei se vou continuar…” A partir da posição em que eu estou — não apenas por experiência própria, mas também pelo que vejo à minha volta — custa-me dizer-lhes, “vai, que vale a pena”. Quando eu vejo artistas bem-sucedidos, de renome a nível internacional, sempre a tocar e a fazer projectos — nem estou a falar de mim; estou a falar de pessoas que conheço e que estão na crista da onda — mas cujas vidas, financeiramente, são uma luta do caralho… É muito, muito difícil dizeres aos teus alunos, “vai, que isto vai valer a pena”. É a primeira vez que estou a sentir isto na minha vida. Eu não sentia isto há três anos.

Quando eu, enquanto coordenador de curso na ETIC, tinha de entrevistar alunos no início do ano lectivo, acontecia alguns desses alunos virem com as mães. Elas perguntavam, “mas isto tem saída?” Eu dizia assim: “se a mãe quiser procurar um curso com saída, eu recomendo Medicina. Porque eu não conheço nenhum médico desempregado ou pobre. Músicos pobres conheço tantos…”

A questão que eu lanço é: “para ti, o que é sucesso?” Se for sucesso financeiro, vai para outro lado. Porque tu vais ter de batalhar tanto por esta merda, que mais vale meter os recursos noutro lado e ficas milionário. O que lutas dentro da música é o suficiente para, noutra profissão qualquer, seres milionário [risos]. Se o sucesso, para ti, significa outra coisa — criação artística, inspiração, inspirar outras pessoas… — então vem por aqui. Mas é uma vida de sacrifícios! Tenho esta conversa, com amigos, de que é um bocado impensável ter filhos. Falamos disto entre nós. É triste e não devia ter que ser assim. Há sacrifícios? Tudo bem, até porque é uma vida que, por outro lado, também tem muitas coisas boas. Faz sentido que tenhamos de sacrificar alguma coisa. Mas há coisas que não deveriam ser necessárias de sacrificar.

Para terminar: este disco vai manifestar-se em palco?

Sim. Ainda estou a… Vai ser outro pesadelo logístico [risos]. Tenho pessoas em Lisboa, outras em França. Todos eles são músicos incríveis e mega ocupados. Mas vai ter uma manifestação em palco. Já estamos em conversações com a Antena 2, para fazer a apresentação no Liceu Camões, em Lisboa. Vou aproveitar isso para tentar uma mini-tour pelo país.

Tens datas?

Segundo semestre. Talvez Outubro. Por aí.


pub

Últimos da categoria: Entrevistas

RBTV

Últimos artigos