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Ilustração: Carlos Quitério
Publicado a: 05/04/2022

O jazz em primeiro plano.

Notas Azuis #92: André B. Silva / Hugo Costa | Hernâni Faustino | João Valinho

Ilustração: Carlos Quitério
Publicado a: 05/04/2022

Na coluna Notas Azuis vai abordar-se jazz, música livre, música improvisada de todas as eras e nacionalidades, editada em todos os formatos.



[André B. Silva] Mt. Meru / Clean Feed

André B. Silva, na guitarra, dirige, conjura, compõe e arranja este Mt. Meru chamando para a sua beira José Soares, saxofone alto, Raquel Reis, violoncelo, Sophie Bernardo, fagote, Paulo Bernardino, clarinete baixo, André Carvalho, contrabaixo, e ainda Ricardo Coelho, bateria, percussão e vibrafone. O ar é aqui importante: o que se deixa transportar pela vibração de cordas, peles ou lâminas de metal e ainda o que, arrancado a bons pulmões, percorre as entranhas dos sopros. É também um disco grave, no sentido sónico da palavra: o fagote, o violoncelo, o clarinete baixo, o contrabaixo, o bombo – todas estas ferramentas servem para erguer fundações sólidas na arquitectura pensada por B. Silva para contar uma história longa: o material de Mt. Meru foi escrito ao longo de seis anos e reflecte, garante o próprio em entrevista que em breve se publicará por aqui, as mudanças que a vida foi trazendo, de Nova Iorque à pandemia e mais além. “Gosto de coisas que sinto que não foram ainda exploradas, que podem partir de ideias ou de formações que sejam mais incomuns”, admite o homem que em The Guit Kune Do achou que era boa ideia colocar cinco guitarristas a tocarem com uma secção rítmica – “a pior ideia de sempre”, diz ele, em tons obviamente irónicos. E, de facto, movimentando-se algures entre um jazz composto e uma música de câmara contemporânea intuída, este álbum – que resulta extremamente visual, ressalve-se – começa por conquistar por soar, precisamente, de forma invulgar. Há espaço para surpresas, claro: em “5.06” escuta-se algo que poderia ter sido escrito por alguém como J Dilla se em vez de uma MPC tivesse à sua disposição um ensemble de câmara – tem síncope não quantizada, fluidez, expressivos e dramáticos arranjos, e aquele swing que obriga a cabeça a mover-se. “Expurgo e Catarse”, nos seus quase 17 minutos, é a “tour de force” do alinhamento, uma “longa-metragem” carregada de cenas de tensão, uníssonos dramáticos, papéis definidos para cada instrumento numa intrincada trama musical que poderia servir de fundo a um qualquer thriller político de Sidney Lumet ou Alan J Pakula nos anos 70. Há por aqui solos para todos os gostos: atonais e rugosos, poéticos e fluídos, cubistas ou impressionistas, com os “actores” escolhidos por André B. Silva a mostrarem-se todos à altura do desafio. José Soares soa especialmente feérico no já mencionado “Expurgo e Catarse” – o seu solo é puro expurgo, diga-se, um reverso para a “catarse” enunciada por Raque Reis no violoncelo. Já o clarinete de Paulo Bernardino, envolto em efeitos, é, sem dúvida, o que traduz a estupefacção do protagonista do filme imaginado por André B. Silva quando entra na sala de espelhos da feira, tentando escapar aos seus perseguidores. E aqui – como, de resto, em todas as outras faixas – a secção rítmica apresenta-se sólida, capaz de fazer curvas em ângulos rectos, como as motos em Tron, numa declinação ultra-cerebral da ideia de groove. Pura matemática.



[Hugo Costa, Hernâni Faustino, João Valinho] Garuda / Subcontinental Records

Com edição do selo indiano Subcontinental RecordsGaruda é o álbum que documenta o primeiro encontro do saxofonista alto Hugo Gosta (Anticlan ou Albatre são duas das suas frentes de combate) com a secção rítmica de Hernâni Faustino (“hardest working man on double bass business” com entradas no currículo para No Nation Trio, Wire Quartet de Rodrigo Amado, RED Trio ou, entre vários outros projectos, Nau Quartet de João Lencastre – e tendo em conta as certamente incompletas entradas listadas no Discogs, há 14 – !!!! –  álbuns de 2020 com o seu nome na ficha técnica) e João Valinho (outro incansável operário, com registos em 2021 assinados para editoras como a Multikulti Project, Phonogram Unit ou Creative Sources). 

Garuda, ensina-nos a Wikipedia, é divindade multi-devocional, rei dos pássaros, com uma espécie de super-poder Marvel que lhe permite ir a qualquer lado enquanto o diabo – ou a serpente, sua inimiga – esfrega um olho. Um poder útil para qualquer músico – como acontece aqui com estes três – que se proponha tocar num contexto de livre improvisação. “A música”, explica a frase das parcas notas de lançamento que surge entre aspas, embora sem autor revelado, “oscila entre improvisação e free jazz dinâmico”. A explicação pode ser económica, mas a sua pontaria é total: realmente, em Garuda, o trio revela uma dinâmica generosa, uma capacidade recíproca de adaptação instantânea a qualquer ideia que possa surgir na colisão de partículas sonoras que cada um dispara para os respectivos microfones. São quatro as peças no alinhamento, todas com diferentes fôlegos – o tema título, o mais longo, aproxima-se bastante dos 20 minutos, enquanto “Jabbing”, a mais curta, se queda abaixo dos 3 minutos -, mas idêntica força, com cada um dos membros do trio a demonstrar estar investido sem reservas nesta aventura de partilha e submissão ao momento. Costa é expansivo nos seus riffs e fraseados, musculado quase sempre, mais poético e melódico quando calha; Valinho é uma torrente, capaz de explorar o kit em toda a sua extensão, em permanente movimento propulsivo, como que a empurrar os companheiros para o desconhecido, sem medos; e Faustino aquela inesgotável fonte de subtil classe, sempre encaixado no fluxo, mas sempre também capaz de surpreender, com apontamentos que demonstram que não é homem para se deixar aprisionar por fórmulas, como tão bem, aliás, demonstra no solo que assina em “Garuda”. E a partir daí a música jorra, inquisitiva e inquieta, com os músicos a apresentarem diferentes ideias em cada momento, com a soma das respectivas partes a revelar mais do que o que a simples matemática faria esperar. O que é natural, já que é de derrube de regras que se faz uma música de espontânea elegância, que apesar de totalmente improvisada nunca chega a resvalar para os abismos mais fundos da atonalidade (ainda que os “gritos” de Costa possam pontualmente roçar a estridência) conseguindo até, pelo contrário, soar por vezes tão coesa que se diria que o trio tem os olhos postos numa qualquer partitura com orientações bem precisas, como o arranque de “A leap into space” parece sugerir, antes de uma espiral se desenrolar num crescendo de expressividade que culmina numa explosão a três que é justo ponto final para tão intensa viagem. Deixando-nos, enfim, recuperar o fôlego.

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