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Fotografia: Rita Carmo
Publicado a: 24/03/2024

Espalhem a palavra.

Amaro Freitas no Belém Soundcheck do CCB: entre o Tejo e o Amazonas

Fotografia: Rita Carmo
Publicado a: 24/03/2024

Na noite da passada sexta-feira (22 de Março), um fenómeno estranho teve lugar no Pequeno Auditório do Centro Cultural de Belém: por ali cresceu, descendo do tecto e das paredes, subindo debaixo dos nossos pés, espontânea e instantaneamente, uma folhagem densa e tropical em múltiplos tons de verde e amarelo. Mais ainda: aves exóticas do paraíso, invisíveis ao princípio, fizeram ouvir o seu canto, exibindo cores vibrantes mal os nossos olhos se habituaram à penumbra intermitente que ocorre quando o sol se contorce preguiçoso ao procurar furar por entre as copas das árvores. E ouviu-se chapinhar de água contra as rochas, pressentindo-se que corria pelo centro da sala um rio cheio de vida. Ou foi isso que sucedeu ou então Amaro Freitas, que se apresentou sozinho ao piano na sua estreia em Lisboa, tem a mágica capacidade de nos transportar para um lugar remoto na selva amazónica de cada vez que mergulha dentro do piano e de lá extrai uma música que soa nova e ancestral ao mesmo tempo.

Amaro é um prodígio. A sua figura é imponente, com as vestes coloridas e o afro altivo a reforçarem a natural nobreza que do seu rosto emana. De sorriso permanente, quando se dirige ao público o pianista mostra também uma afinadíssima capacidade de comunicação, explicando com detalhes preciosos o que faz e ao que vem: “É sempre muito emocionante”, admite Amaro, “poder subir a um palco e tocar a música em que a gente acredita”. Este é um homem que buscou muito fundo dentro de si, lá para os lados de Manaus, junto da comunidade Sataré-Mawé, um sentir ancestral, anterior à colonização, o sentir de quando os povos indígenas do Amazonas viviam em perfeita harmonia com a natureza, um estado a que os seus próprios antepassados foram subtraídos pela escravatura. Nesta antiga capital de império, esta música que se liga a um tempo remoto religa-nos também a outra noção de humanidade. Mesmo quando um telemóvel toca na plateia no preciso momento em que Freitas nos fala da Amazónia e da homenagem que a sua música também presta a Naná Vasconcelos.

Na entrevista de antevisão deste concerto, citámos uma das declarações de Amaro Freitas ao New York Times. “Há momentos em que me divido entre as sementes do Amazonas, os ritmos africanos, e, na outra mão, toco melodias europeias. É como se a minha mão esquerda seja África e a direita a Europa”, disse ele a Carolina Abbott Galvão, procurando explicar as duas dimensões que sente existirem no seu pianismo. De facto, entende-se como pela sua mão esquerda, curiosamente talvez a mais “monkiana”, desfila a criativa matemática dos ritmos que resistiram ao passar dos séculos e a que o povo deu nomes como frevo, maracatu, ciranda ou bumba-meu-boi. Pela direita, tão rápida como o seu pensamento, passa não apenas o que a academia lhe ensinou, com claros ecos de mestres da música clássica a despontarem aqui e ali (Debussy?) no seu discurso musical, mas também uma livre inventividade que traduz o seu tão singular quanto tropical posicionamento.

Mas é quando quase literalmente mergulha no piano que algo mais acontece. Com fita auto-colante transforma a tonalidade de algumas cordas do piano, entorpecendo o efeito dos martelos ao ponto de fazer esse instrumento, que tanta história acumulou nos grandes salões europeus, soar quase como um thumb piano, o instrumento de lâminas metálicas afinadas tão comum nas culturas ditas “primitivas” de África. Curiosamente, e invertendo essa lógica, Amaro também toca um thumb piano, altamente processado, que consegue fazer soar como um piano eléctrico Fender Rhodes, tão leve e solto e atmosfericamente esvoaçante como o dos melhores momentos de Chick Corea em Return To Forever. E depois, com molas de roupa, sementes e chocalhos, o piano torna-se nascente de rio e de vida, quando Amaro se espraia pelo reportório de Y’Y, o seu mais recente álbum cujo título, como nos explicou, significa na língua da comunidade Sataré-Mawé “água ou rio”.

Uma palavra para a invisível interacção entre Amaro Freitas e o seu engenheiro de som: usando de forma criativa um pedal de loops, o pianista ofereceu à sala matéria sonora que depois foi esculpida em envolvente desenho acústico a partir da mesa de mistura, com um preciosismo detalhista que preencheu o espaço aural de vibrantes cores harmónicas. O seu som — a sua música — envolveu-nos de facto. E envolveu-nos ao ponto do arrebatamento.

No final, e após os tão merecidos quanto efusivos aplausos, Amaro Freitas ainda nos brindou com “Gloriosa”, um tema novo baseado “numa melodia muito simples” com que homenageia a sua mãe, Gabrielle. Foi talvez a passagem mais “keithjarrettiana” do espectáculo, com o seu piano a guiar depois o público que se viu pelo artista transformado em surpreendentemente afinado coro, sinal claro de que toda a gente se ligou numa mesma frequência.

Para o fecho do concerto ficou reservada uma versão de um clássico de Tom Jobim, “Olha Maria”, talvez encenando um regresso ao momento em que o Brasil se encontrou com o jazz. Mas a sua versão não foi canónica, não facilitou no repensamento dos seus contornos, tornando a tão memorável melodia num pretexto para se ir mais longe ou mais fundo, e exibindo ali, naqueles demasiadamente breves minutos finais, toda a exuberância do seu estilo e da sua arte. E como cantava Chico, nesse mordaz e censurado “Fado Tropical”, dessa forma, através das mãos de Amaro Freitas, “o rio Amazonas que corre trás-os-montes” desaguou no Tejo com a intensidade de uma tempestiva pororoca. Foi mesmo assim. Sem tirar nem por.

Se na sua próxima visita a Lisboa aplaudirmos Amaro Freitas no Grande Auditório do Centro Cultural de Belém, ao invés de o fazermos no espaço de concertos mais reduzido da mesma instituição, como aconteceu na passada sexta-feira, não poderemos ficar demasiado surpreendidos. Não que a sala tenha esgotado, deixando muita gente sem a possibilidade de desfrutar desta estreia lisboeta do pianista pernambucano. Ficou muito perto disso, na verdade, mas ainda assim havia alguns lugares vazios. Os efusivos aplausos de pé no final da sua apresentação deixam, no entanto, antever que a palavra se vai espalhar. Além disso, datas já anunciadas para Ovar e Braga irão, certamente, contribuir para que mais pessoas fiquem a par das extraordinárias capacidades artísticas de Amaro Freitas pelo que esse crescimento deverá ser tão natural quanto inevitável. A confirmar…


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