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Texto: Vítor Rua
Fotografia: Maria Barroco
Publicado a: 10/09/2025

Três almas noctívagas em diálogo íntimo com as estéticas lusófonas.

ALMA ATA: ethos da canção portuguesa com cadência hipnótica do pulsar electrónico contemporâneo

Texto: Vítor Rua
Fotografia: Maria Barroco
Publicado a: 10/09/2025

[O Nascimento de Um Corpo Colectivo: O Trio e a Noite como Matriz]

O colectivo ALMA ATA surge no limiar entre 2020 e 2021 como um organismo musical plurissensorial: três indivíduos — Miguel Afonso (aka Caronte), Pedro Carvalho (aka Pedro, o Mau e VULTO.) e Tomás Sequeira (aka Tomaz) — fundem-se numa entidade que respira a noite. Essa noctívaga afinidade é o primeiro fenómeno musicológico: o tempo crepuscular torna-se palco de criação, ou seja, uma performatividade da noite que molda o ethos estético do grupo.

Estilisticamente, fundem a electrónica contemporânea com a rica tradição da canção portuguesa, derivado de uma dialéctica entre persistência do passado e vanguarda sonora. Uma etnomusicologia da cidade — Lisboa — toma forma no labirinto sonoro que habitam.

[Linguagem Estrutural: Entre EPs e Álbum, o Passeio de um, dois, três até ALMA//ATA]

A discografia de ALMA ATA segue um caminho quase ritualístico e numerológico: três EPs intitulados um, dois, três, todos lançados entre Novembro e Dezembro de 2021, seguindo-se o álbum completo ALMA//ATA em Agosto de 2022, e um outro curta-duração mais recente TROPIGAL em Novembro de 2023.

Do ponto de vista formal, este percurso sugere uma exploração gradual do espaço tímbrico e da arquitectura morfológica: os EPs actuam como movimentos introdutórios — estudos de textura e harmonia — culminando no álbum que articula as tensões exploradas com maior densidade estrutural. Essa progressão demonstra uma atenção meticulosa à morphogenèse sonora: cada lançamento é uma variação sobre uma matriz melancólica, um estudo etnomusicológico sobre modos — modos tonais e modais, uso da harmonia pseudo-pop atonal, cadências pendulares —, com o trio a elevar a melancolia a arquitectura musical narrativa.

[Harmonia Nostálgica e Contraponto Electrónico]

A prática sonora de ALMA ATA é a conjunção entre harmonia reservada, quase uma tonalidade suspensa, e elementos rítmicos electrónicos que dançam lentamente — “caixas lentas e dançantes” criam polirritmos subtis, suspensos em mezzo-piano perene.

Musicologicamente, podemos referir uma harmonia modal que evoca a canção portuguesa (saudade, melodia em modos menores), atravessada por layerings electrónicos que provêm da IDM ou do downtempo. O resultado são “melodias melancólicas e sóbrias” — segundo o seu manifesto inicial — sobre as quais Miguel deposita letras “soturnas, alegóricas, familiares e nostálgicas”.

Essa sobreposição cria um contraponto: enquanto a harmonia se desenrola num registo quase silencioso, os elementos electrónicos dão-lhe fragrância de eco — chão micro-ritmado em techno de baixa rotação?

[Voz e Palavra como Ornamentação Vocal e Imagética Poética]

Miguel Afonso assume-se como o narrador-letrista, o arquivista da emoção portuguesa: a sua voz é ornamentada não por trilos ou vibratos, mas por metáforas que ampliam a paisagem emocional do ouvinte.

Etnomusicologicamente, isto remete para a tradição oral e para a canção-cultura popular, onde a voz é veículo de memória e afecto colectivo. Aqui, esse veículo atravessa a electrónica e torna-se um timbral ornament, modulando o som com densidade literária.

[A Arquitectura do Guitarra-Teclado: Tomás Entre Blues e Jazz — Reflexos no Tecido Sonoro]

Tomás Sequeira, autodidacta da guitarra a partir de influências como Stevie Ray Vaughan, Eric Clapton ou Jimi Hendrix, ingressa posteriormente em cursos formais de jazz (Hot Club, Berklee) e, em 2019, co-funda o projecto ALMA ATA, que é descrito como uma fusão entre a música electrónica contemporânea e a canção portuguesa.

Esta formação instrumental (blues + jazz académico + actuação performativa) infunde o colectivo com contrastes entre a improvisação modal e a arquitectura harmónica da canção. Assim, a guitarra de Tomás não é solista cristalina, mas timbre que liga fragmentos harmónicos, orquestrando o espaço sonoro entre piano (ou teclado), voz e batida electrónica.

[Improvisação, Memória Nativa e Reinvenção — Um Olhar Poético-Musicológico Final]

Se a música é a arqueologia do silêncio e da memória, ALMA ATA ergue um templo aos instantes que habitam o crepúsculo da canção portuguesa — mas fá-lo numa linguagem que elide fronteiras entre timbre tradicional electrónica moderna.

Em cada EP e no álbum, ecoa uma reflexão musicológica: a saudade, esse modo tonal culturalmente enraizado, é modulada por beats electrónicos, camadas tímbricas suspensas e vocabulário melódico que paira entre o fado recitado e o pop introspectivo.

Podemos ver toda a trajectória do projecto como um estudo sobre spatialisation sonora: retém a intimidade do trio, mas espalha-a por camadas de electrónica que desafiam a linearidade narrativa da canção. Ao mesmo tempo, a voz conserva o ethos da memória oral lusófona — um casamento híbrido, formalmente inovador e emocionalmente envolvente.

[Cartografia Harmónica e Topografia Tímbrica de um Crepúsculo Sonoro]
Análise modal, rítmica e textural da arquitectura musical de ALMA ATA

A música de ALMA ATA constrói-se sobre uma base harmónica em que o modo menor natural e o modo dórico se alternam subtilmente, criando zonas de instabilidade modal que sustentam a melancolia característica. O uso de acordes suspensos (sus2, sus4) prolonga a tensão harmónica, evitando cadências perfeitas que conduziriam à resolução; em vez disso, privilegia-se a cadência interrompida e o movimento paralelo de vozes, aproximando-se de um continuum modal.

A estrutura rítmica assenta em padrões electrónicos de kick, snare e hi-hat programados em tempos lentos (entre 70 e 90 BPM), mas com swing ligeiro, o que introduz uma sensação de suspensão temporal. Estes padrões são frequentemente enriquecidos por polirritmias discretas — sobreposição de subdivisões ternárias e binárias — que acrescentam micro-variações sem desviar a atenção do ouvinte da voz e da harmonia.

Do ponto-de-vista tímbrico, a paleta sonora recorre a camadas sintetizadas de baixa frequência, muitas vezes filtradas com low-pass, que criam um colchão harmónico quente. Sobre este plano, surgem guitarras com reverb profundo e delay de feedback curto, evocando tanto a tradição ambient como a herança pós-rock. O piano, quando presente, surge como elemento percussivo e harmónico, explorando a região média e aguda para contrastar com a densidade grave das bases electrónicas.

A produção privilegia a espacialização: vozes com panning central e timbres instrumentais distribuídos lateralmente em campo estéreo largo, criando um espaço acústico imersivo que remete para a experiência de escuta com auscultadores. O uso de automatização subtil em filtros e volumes dá uma sensação de respiração ao arranjo, como se cada faixa tivesse um pulso orgânico.

Em síntese, a arquitectura musical de ALMA ATA revela um domínio consciente das ferramentas harmónicas, rítmicas e tímbricas, conjugando tradições modais da canção portuguesa com técnicas de produção electrónica contemporânea. É um trabalho de orfebre sonoro, onde cada elemento ocupa um lugar preciso no espaço e no tempo, servindo um discurso musical que se quer tanto íntimo como expansivo.



[A Arquitectura da Melancolia em ALMA ATA]
Entre a suspensão harmónica e a confissão lírica: um estudo sobre “MÃE, NASCI PARA SOFRER.”

Escolhe-se “MÃE, NASCI PARA SOFRER.” como núcleo de análise. A canção abre com uma declaração que funciona como mote existencial — “MÃE, NASCI PARA SOFRER” — e, a partir daí, ergue uma dramaturgia íntima onde culpa, ansiedade e auto-imagem se encadeiam como motivos recorrentes. Em breves rasgos, o eu lírico confessa: “O coma é o meu quarto de hotel”; “Tudo aquilo que eu toco morre triste e devagar”; “Tenho o toque de merdas.” — frases curtas, incisivas, que operam como ostinatos semânticos, comprimindo a narrativa numa sucessão de ícones emocionais.

[Timbre e espaço]

O registo vocal é contido, quase falado, apoiado por um leito electrónico de baixa rotação. Os ataques secos da percussão programada e as camadas graves filtradas sugerem um andamento lento, com respirações subtis de produção que fazem a mistura pulsar como um organismo vivo. O espaço estéreo é amplo, com voz centrada e texturas laterais que ampliam a profundidade psicoacústica. Aqui, a textura não ornamenta o sentido — é o próprio sentido encarnado.

[Harmonia e modo]

O perfil melódico e o voicing dos teclados insinuam campo menor com desvios modais, evitando cadências perfeitas e preferindo suspensões e aproximações paralelas de vozes. O efeito é de resolução adiada, coerente com a semântica da letra: um corpo em suspensão, “corpo suspenso em cordel”. O baixo sustenta notas longas em função de pedal, enquanto pads granulares prolongam a sensação de sostenuto emocional.

[Ritmo e forma]

A batida é lenta, dançante, mas não catártica; o groove vale pela insistência. A música encena um sujeito urbano em fricção com a cidade: “Se a cidade nomeasse o mais perdido, era eu.” O arranjo cresce, retém, quebra — e regressa ao refrão-ferida.

[Semântica, saudade e imaginário português]

No plano filosófico-cultural, o texto trabalha uma dor sem heroísmo, quase antitrágica, feita de micro-humilhações quotidianas. A saudade aqui não é elegia pastoral, é pressão: ansiedade como métrica, culpa como clave.

[Etnomusicologia do presente]

ALMA ATA exemplifica uma canção urbana lusófona onde as práticas de estúdio são tão identitárias quanto melodia e poesia. Graves sustentados sugerem gravidade, reverberações longas evocam distância e memória, e loops repetitivos revelam compulsão. Tudo serve a narrativa: sustentar o peso das palavras sem o diluir.

[Género e corpo]

Entre confissão e máscara, a voz masculina reconhece fragilidade (“Surdo, mudo, triste, baço”) e desmonta expectativas tradicionais da canção pop. A masculinidade abandona a poesia e torna-se porosa; o arranjo recusa o grito e privilegia o sussurro ampliado — um corpo auditivo vulnerável.

[Filosofia do gesto]

O refrão comportamental — “Tudo aquilo que eu toco morre triste e devagar” — é um teorema negativo de acção: tocar é estragar. A produção responde diminuindo brilhos, limando transientes, como se o desenho sonoro mimasse um “toque de Midas ao contrário”. A canção não resolve pela catarse, mas pela composição de distâncias: letra e timbre mantêm-se tensos, como linhas paralelas.

[Coda intertextual]

Noutras canções, como “CLARO” ou “DEIXA-ME IR”, reaparecem motivos de perda, perdão e desapego. Lidas em conjunto, constroem um ciclo coerente: culpa, afastamento, tentativa de lúcida sobrevivência — um tríptico afectivo que confirma a assinatura sonora e poética do colectivo.

[Estruturas Tropicais do Silêncio e do Pulso]
Uma navegação íntima pelos contornos sonoros de TROPIGAL — onde a cidade respira, pulsa, cala

TROPIGAL emerge como um território sonoro matizado: cada faixa é uma constelação emocional que orbita entre melancolia urbana e claridades eléctricas. O álbum habita um espaço em que o ritmo electrónico de baixa rotação se insinua como pulsação vital, enquanto os teclados suspensos e texturas de sintetizador filtadas moldam horizontes noctívagos de profundidade segundosobre. A mistura tímbrica cria paisagens interiores que se repetem, fracturam e reacendem, como reflexo de uma cidade que não dorme, mas observa.

À semelhança de camadas sedimentares, TROPIGAL estrutura-se por sobreposições dinâmicas entre harmonia modal — onde dórico e menor ganham destaque — e polirritmias discretas que desafiam o compasso. A cadência é meditativa, evitando a resolução plena, intensificando a sensação de tensão suspensa: cada acorde, cada pausa, guarda em si o eco de uma incógnita.

A produção abraça o conceito de espaço sonoro imersivo. Existe uma espacialidade calculada, onde a voz — contida e centrada — se ergue como ponto gravitacional, enquanto os pads, reverbs e texturas laterais expandem os contornos acústicos. É um gesto que transforma os auscultadores num abrigo íntimo, num cenário onde o gesto tímbrico ganha densidade.

A estética urbana do álbum reflecte uma melancolia contemporânea: um pacto entre o ancestral da canção portuguesa e os despontes da electrónica. Aqui, a voz desaparece e reaparece, ora sussurrada, ora filtrada; o arranjo torna-se acto de nomear ausência, de descobrir poesia no ruído amortecido. A cidade deixa de ser cenário e passa a ser personagem: habitada, invisível, pulsante.

Em TROPIGAL, cada faixa propõe uma topografia emocional própria: o álbum não canta a cidade, mas escuta-a — os seus tons cinzentos e latentes, a sua solidão partilhada. A secção de graves sustém com delicadeza enquanto os agudos flutuam como lembranças; a linha melódica, embora contida, desenha um arco entre desassossego e reconforto.

Este disco não busca finalidades dramáticas. Como um poema sonoro em fluxo contínuo, propõe uma experiência de escuta meditativa, em que o ouvinte é convidado a suspender o tempo e a habitar um espaço íntimo, recorrendo à textura do silêncio e ao pulso da electrónica como instrumentos de introspecção. É um convite para sentir — mais do que ouvir — o peso suave do presente, no corpo acordado da noite.

[Epílogo]

No conjunto, ALMA ATA representa uma reinvenção poética e musicológica da canção portuguesa, onde três intérpretes/narradores moldam um espaço sonoro híbrido. É uma celebração da melancolia na modernidade, um laboratório de fusões, uma cartografia emocional modelada pela noite, pela electrónica e pela palavra. A sua música é uma navegação entre timbres sombrios, pulsos hipnóticos e voz poética — quase como se ouvíssemos a canção portuguesa dobrar-se sobre si mesma até se tornar electrónica fluvial, profunda e ancestral.


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